Vidas Desperdiçadas – Zygmunt Bauman: uma resenha

Vidas Desperdiçadas de Zygmunt Bauman descreve três modalidade de exclusão na sociedade moderna e na dita pós-moderna. Entenda além do comum de sua interpretação social, veja!

Vidas Desperdiçadas de Zygmunt Bauman precisa ser discutido com uma sensibilidade teórica tipicamente da sociologia contemporânea. Neste livro, nós enxergamos um oposição que está para além do antagonismo de classe: a oposição entre os incluídos e os excluídos. Este é um tema central na obra de Bauman, que tenta definir o excluído, o estranho, aquele que – em uma sociedade de tolerância – não é nem mesmo levado em consideração.

Para isso é necessário se debruçar nos estudos de Mary Douglas sobre a sujeira e a limpeza. A autora concluiu que o limpo e o sujo estão dentro de uma noção de ordem e de caos. Esta noção envolve um querer por parte da exclusão: não se exclui a sujeira para dar lugar à limpeza, mas se exclui a sujeira porque ela deve ser excluída, se trata de um movimento positivo que é parte integrante de qualquer criação.

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A criação só existe a partir do que já está feito, portanto, seu processo gira em torno de uma transformação que modifica uma coisa até ela se tornar outra. Necessariamente há um refugo desta criação, algo que sobrou das transformações feitas sobre a coisa concreta.

Este lixo é constitutivo da nossa sociedade. Zygmunt Bauman classifica o estado atual da sociedade em que vive como uma sociedade de consumo com uma cultura do lixo. O lixo deixou de ser uma parte separada do processo de produção e na sociedade da primazia do consumo é uma de suas partes principais.

O lixo é um conceito que está além da visão primária do senso comum, ele separada aquilo que é possível de estar entre a ordem e o que precisa ser rejeitado, excluído, eliminado e por fim, limpo da esfera social. Nossa sociedade tenta a todos os custos encontrar lugares para depositar o lixo, desde aterros (para o lixo físico) até lugares próprios para aqueles que não servem mais para nada, como o sanatório, a prisão ou as favelas. É partir daqui que chegamos no ponto central do livro.

Nosso planeta está cheio

Há três pontos abordados em Vidas Desperdiçadas em que Zygmunt Bauman sistematiza a exclusão: 1) por meio da construção da ordem, 2) por meio do progresso econômico e 3) por meio da globalização.

1) O refugo da construção da ordem: a modernidade foi a era dos projetos. Foi um momento da história em que o ocidente se debruçou sobre o mundo com a pretensão de modificá-lo e construí-lo segundo traços previamente concebidos. Os projetos nazistas, capitalistas e comunistas tinham (o capitalista ainda tem) objetivo de construir um mundo novo sob a égide de alguns referenciais considerados universais, como a força e a dominação, no caso do nazismo; o livre mercado, no caso do capitalismo; e a supressão das classes, no caso do comunismo. “A mente moderna nasceu juntamente com a ideia de que o mundo pode ser transformado”, afirma o autor.

Como é fácil de perceber, o projeto serve para ser aplicado e sua aplicação inclui aqueles que o projeto engloba e exclui aqueles que não são necessários. Essa exclusão é sempre “legítima”, é feita pelo próprio aparelho do estado ou pelas instituições sociais diversas. É algo positivo, não meramente negativa. A exclusão dos merecem ser excluídos pela ordem é uma prescrição, não o resultado da delimitação dos incluídos.

Bauman utiliza o homo sacer, de Agamben, para definir este sujeito excluído. “O homo sacer é a principal categoria de refugo humano estabelecido no curso da moderna produção de domínio soberanos ordeiros (obedientes à lei e por ela governados)”. Se trata do “homem nu”, da pessoa que não detém direitos (ou que o direito não é aplicado a ela). Na Roma antiga, o homo sacer poderia ser morto por qualquer um e seu assassínio não seria alvo de punição. Um exemplo brasileiro está na cracolândia: lá não há sujeitos planejados pela ordem. São todos refugos, sujeira que precisa ser limpa. Ao mesmo tempo, o exemplo de Bauman são os desempregados crônicos, que não fazem parte do exército reserva e não ocupam mais espaço na divisão do trabalho.

2) Serão eles demasiados? Os excluídos pelo progresso econômico encontram-se em uma situação específica dos excluídos pela ordem. Eles são excedentes, sua exclusão não é planejada.

A “população excedente” é mais uma variedade de refugo humano. Ao contrário dos homini sacri, das vidas indignas de serem vividas, das vítimas dos projetos de construção da ordem, seus membros não são “alvos legítimos” excluídos da proteção da lei por ordem do soberano. São, em vez disso, “baixas colaterais”, não intencionais e não planejadas, do progresso econômico. No curso do progresso econômico (a principal linha de montagem/desmontagem da modernização), as formas existentes de “ganhar a vida” são sucessivamente desmanteladas e partidas em componentes destinados a serem remontados (“reciclados”) e novas formas. Neste processo, alguns componentes são danificados a tal ponto que não podem ser consertados, enquanto, dos que sobrevivem a fase de desmonte, somente uma quantidade reduzida é necessária para compor os novos mecanismos de trabalho, em geral mais dinâmicos e menos robustos (Bauman, Vidas Desperdiçadas, p.53)

É assim que, na contemporaneidade, os desempregados crônicos são também os excluídos do progresso econômico. Eles não estão mais dentro do mercado de trabalho e nem podem estar. São supérfluos para a divisão social do trabalho, são atrasados. O fardo de uma sociedade presentista e em constante mudança é lidar com o lixo estacionário, que não acompanha a rápida corrida da dita pós-modernidade.

A diferença dos desempregados excluídos pelo progresso econômico para os desempregados da construção da ordem está no processo de sua exclusão. No caso, eles (os desempregados pelo progresso econômico) não foram excluídos por uma ação positiva do estado (como reduzir a pensão ou eliminar o seguro desemprego), mas foram excluídos pela própria transformação das tecnologias e das técnicas.

– Hipótese: os redundantes, excluídos pela construção da ordem já puderam ser os supérfluos, excluídos pelo progresso econômico. A exclusão pelo progresso econômico os transformou em sujeitos que precisam ser sustentados pelo Estado, “os que não simpatizam com essa resposta tendem a contestá-la em termos igualmente financeiros (sob a rubrica ‘podemos arcar com isso?’) – dada a ‘carga financeira’ que tais medidas impõem aos contribuintes”. Não poder se sustentar os colocou na posição de redundantes. Segundo Bauman, as vítimas do progresso econômico, ao não terem posição assegurada na estrutura social, tornam-se “alvo fácil para a descarga das ansiedades provocadas pelos temores generalizados de redundância social”.

3) O refugo da globalização: nesta terceira parte eu dou voz ao próprio autor.

Os refugiados, os deslocados, as pessoas em busca de asilo, os migrantes, os sans papiers constituem o refugo da globalização. Mas não, em nossos tempos, o único lixo produzido em escala crescente. Há também o lixo tradicional da indústria, que acompanhou desde o início a produção moderna. Sua remoção apresenta problemas não menos formidáveis que a do refugo humano, e de fato ainda mais aterrorizantes – e pelas mesmíssimas razões: o progresso econômico que se espalha pelos mais remotos recantos do nosso planeta “abarrotado”, esmagando em seu caminho todas as formas de vida remanescentes que se apresentem como alternativas à sociedade de consumo. (p.76)

Estes são também os coletores de lixo. A sociedade do consumo não aprendeu o que é o sofrimento e o desgosto da coleta do lixo, seus membros não querem e não sabem sentir dor (como já explicitado em Amor Líquido), não estão a fim de carregar o fardo da vida para além do prazer do consumo, não aguentam o tédio ou a responsabilidade desprazerosa da vida dura e das consequências do consumo desregrado. O resultado disso é que o refugo acaba se tornando o espaço pra formação dos coletores de lixo.

É necessário entender que os coletores de lixo são todos os cargos desprazerosos, longe do sonho da vida do consumo. São empregos que garantem a sobrevivência biológica dos pobres coitados excluídos da ordem, esmagados pelo progresso econômico ou expulsos do mundo globalizado. Limpar privada, lavar louça e bater pedra em minas é um serviço que simplesmente não pode ser negado por estas pessoas, pois é o que o mundo pode lhes reservar: algo fora da ordem, em seu limite, a garantia da vida física do lixo humano.

As vidas desperdiçadas, que Zygmunt Bauman descreve com maestria, são as vítimas de uma sociedade que se divide também pelos incluídos e pelos excluídos, uma sociedade plural que funciona como uma dispositivo de seleção da pluralidade aceitável: a não aceitável perece.

Curso de filosofia do professor Anderson

14 Comentários

  1. Escreveu muito bem, meu caro. Bauman vem sendo, para mim, também um farol em meio a tempestade que assola o mundo. Obrigado por compartilhar o PDF do livro. Sua postagem me inspirou na produção de minha aula sobre o papel da comunicação no processo de inclusão/exclusão.

    Divido com você e seus leitores, em retribuição, o link abaixo contendo oito obras do mestre Zygmunt. Boa leitura!

    LINK: http://ebooks-academicos.blogspot.com.br/2014/05/zygmunt-bauman-omal-estar-da-pos-modernidade-livros-online-pdf-gratis-download.html

  2. Muito bacana o texto. Eu quando estou como oficineira de artes e expressões, amo usar o lixo como materia prima, e propor uma discussão com os participantes: o lixo é a nova moda? Vide movimentos nos Eua pós crise desde a decada passada( diy, faça você mesmo, reciclagem criativa, customização e reaproveitamento de roupas usadas, trocas de roupas usadas em feiras coletivas, freegans etc). Agora, já que tem tanto lixo, a raça humana como um imenso ecossistema habilitou em contrafluxo pessoas para agirem como como formigas operarias, transformando o lixo das outras pessoas, consumindo -o e obtendo de graça, o luxo de que necessitam( e vendendo! como materia prima nova)

      1. Sim, eu sei que não é, mas Bauman geralmente é considerado pessimista ,por não propor uma solução para o conflito que expõe,… Apenas relatei uma experiência pessoal minha pois acredito que a retórica para síntese deste conflito exposto cabe a cada um … Porque s não construirmos um sentido pessoal a partir do que Bauman coloca, fica muito triste continuar vivendo na modernidade liquida, não acha?

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