Em sua passagem pelo Brasil, Zygmunt Bauman concedeu uma entrevista ao jornalista Marcelo Lins, do programa Milênio, em que fala sobre as mudanças ocorridas ao longo do século XXI e suas perspectivas do futuro. As informações são do ConJur.
Marcelo Lins — O senhor viveu tempos difíceis no século 20, como a Segunda Guerra Mundial e a ascensão e a queda do comunismo, para mencionar dois exemplos. Qual acha que é a principal característica deste início de século 21?
Zygmunt Bauman — Este século é muito diferente do século 20. Se compararmos o que eu vivenciei quando jovem, cheio de esperanças e expectativas, com o que vivencio agora, em retrospecto, comparando, revisando expectativas e esperanças, eu diria que estamos num estado de interregno. Esse é o termo que gosto de usar. No “interregno”, não somos uma coisa nem outra. No estado de interregno, as formas como aprendemos a lidar com os desafios da realidade não funcionam mais. As instituições de ação coletiva, nosso sistema político, nosso sistema partidário, a forma de organizar a própria vida, as relações com as outras pessoas, todas essas formas aprendidas de sobrevivência no mundo não funcionam direito mais. Mas as novas formas, que substituiriam as antigas, ainda estão engatinhando. Não temos ainda uma visão de longo prazo, e nossas ações consistem principalmente em reagir às crises mais recentes, mas as crises também estão mudando. Elas também são líquidas, vêm e vão, uma é substituída por outra, as manchetes de hoje amanhã já caducam, e as próximas manchetes apagam as antigas da memória, portanto, desordem, desordem.
Marcelo Lins — Acha correto dizer que hoje recebemos informação demais, que não somos capazes de absorver todas elas? Temos acesso mas não sabemos o que fazer com ela?
Zygmunt Bauman — Você tem toda a razão. Colocou o dedo na parte mais dolorosa de nossa ferida. Como E. O. Wilson, o grande biólogo, expressou de forma muito sucinta e correta: “Estamos nos afogando em informações e famintos por sabedoria.” Não temos tempo de transformar e reciclar fragmentos de informações variadas numa visão, em algo que podemos chamar de sabedoria. A sabedoria nos mostra como prosseguir. Como o grande filósofo Ludwig Wittgenstein dizia: “Compreender é saber como seguir adiante.” E é isso que estamos perdendo. Não sabemos como prosseguir.
Marcelo Lins — O senhor mencionou o fracasso de nossas instituições políticas: os partidos, a representatividade, que é falha no mundo todo. O senhor testemunhou o fracasso do sonho comunista na Polônia e na União Soviética. Qual foi o maior erro do comunismo?
Zygmunt Bauman — O comunismo se encaixava nas medidas do século 19. O século 19 foi um período de grande otimismo. Em primeiro lugar, as pessoas estavam convencidas — e tinham orgulho disso — de que, com o desenvolvimento da ciência e da tecnologia, seria possível refazer o mundo, virá-lo de cabeça para baixo. Era uma relação leve e despreocupada com a realidade. A realidade existia para ser reciclada, modificada, aperfeiçoada etc.. Essa era uma coisa. A outra era a visão do caminho futuro, da estrada para a sociedade perfeita. Todos estariam trabalhando. Foi o período da revolução industrial. No final, todos se tornariam trabalhadores. Uma boa sociedade na grande fábrica com funcionários satisfeitos. Era o período da modernidade sólida e da sociedade industrial. Hoje vivemos na modernidade líquida e na sociedade pós-industrial do consumismo, e a passagem da sociedade de produção para a sociedade de consumo foi uma coisa muito poderosa e importante. Mudamos o foco da construção das bases do poder da sociedade sobre a natureza para o contrário: para a cultura do imediatismo, do prazer, da individualização… de identificar a visão da felicidade com o aumento do consumo… Todos esses fenômenos novos pegaram o comunismo totalmente despreparado.
Marcelo Lins — Se existe um consenso, e acho que podemos dizer que existe o consenso de que o comunismo perdeu essa guerra específica e o capitalismo venceu, sabemos que essa vitória trouxe, de certa forma, alguns fracassos. Faltam soluções para vários problemas. Quais são os maiores problemas da sociedade de mercado na sua opinião?
Zygmunt Bauman — As pretensões do comunismo fora da Cortina de Ferro forçou o capitalismo a limitar suas próprias propensões destrutivas, mantendo a desigualdade social dentro de limites aceitáveis, sem perder o controle sobre ela, e criando leis para garantir direitos aos empregados, não só aos empregadores. A ideia da desregulamentação do mercado de trabalho, por exemplo, seria impensável, simplesmente porque havia um concorrente, que não era cuidadoso e fazia propaganda. Não era fácil. Aí, de repente, tudo passa a ser possível. Ninguém o vigia. Você pode fazer o que quiser, pode usar todos os recursos que possui para promover seus interesses, e isso é potencialmente catastrófico. A falta de autolimitação é o que está acontecendo agora. Além disso, a primeira reação após a introdução do ideal neoliberal de sociedade por Margaret Thatcher e Ronald Reagan foi que tivemos 30 anos do que chamo de orgia consumista: gastamos um dinheiro que não tínhamos, tínhamos esperança de que o futuro reembolsaria o que estávamos pegando emprestado, e isso terminou, como você bem sabe, em 2007/2008, com a crise de crédito. Agora estamos novamente no ponto de partida.
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Marcelo Lins — Um dos maiores problemas desse novo ponto de partida é a desigualdade. O senhor escreveu muito sobre isso, e o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo, apesar de ser um país rico. Aparentemente, está claro que a riqueza de poucos não beneficia a todos. Como equilibrar melhor essa equação numa democracia?
Zygmunt Bauman — A desigualdade não está apenas aumentando, ela muda sua natureza, sua estrutura e está ligada a esses limites que o capitalismo se impõe para manter as coisas em ordem, digestíveis, toleráveis, aceitáveis. Eles desapareceram e, como resultado, a desigualdade mudou sua natureza porque as vítimas da desigualdade da sociedade eram, antigamente, as pessoas que viviam na pobreza, na base da sociedade, os párias da sociedade. Hoje não é mais assim, porque estamos testemunhando o processo que Guy Standing, um sociólogo muito ativo, chamou de “precariado”. O que chamamos de classe média, que era a parte da sociedade mais bem sucedida e confiante, está se transformando muito rapidamente no precariado, que é uma espécie de equivalente ao antigo proletariado: pessoas que estão inseguras em relação à sua posição. De acordo com as últimas teses dos economistas — pessoas que estudam o assunto melhor do que eu e calculam as estatísticas —, não é mais uma questão dos 25% mais ricos da população e dos 25% mais pobres, mas do conflito entre o 1% que está no topo e os 99% do resto da sociedade. Não sei se você notou que a riqueza dos Estados Unidos após a crise de crédito… Houve alguma recuperação, e o valor agregado da riqueza dos EUA aumentou depois da crise, mas 94% desse valor agregado ficou com 1% da população. Todo o resto teve que dividir os outros 6%.
Marcelo Lins — Mas, mesmo mostrando esses números impressionantes, ainda há economistas, jornalistas e analistas dizendo que o mercado pode regular até a desigualdade, que se deixarmos o mercado funcionar livremente, vamos melhorar em algum momento. Como rebateria esse argumento?
Zygmunt Bauman — O mercado é explícito e brutalmente incapaz de reparar os danos que causa. Ele cria problemas, mas não consegue resolvê-los. Não consegue resolvê-los. Para isso, é necessário um outro tipo de instituição. O mercado é poder puro liberado de qualquer limitação. Poder significa a habilidade de realizar coisas. O mercado é ótimo nisso, em criar demanda para seus produtos, em distribuir fundos do Brasil para a África, porque a mão de obra lá é mais barata… Ele tem um poder real, que pode influenciar as suas condições de vida, a de seus filhos, de seus netos, de seus bisnetos que ainda não nasceram… Isso ele faz, mas o poder sem controle é algo muito perigoso. Ele traz lucros transitórios para algumas pessoas, mas traz muitos problemas para a grande maioria. Para manter o poder sob controle e evitar que o mercado se autodestrua, a política é necessária. A política é a habilidade de decidir quais coisas devem ser feitas.
Marcelo Lins — Vamos falar sobre conflitos, sobre a crise e a reação a essa crise. Estamos vivendo a crise dos refugiados. Ela começou como a crise dos imigrantes ilegais, como se chamava no início, mas logo percebemos que se trata de uma crise de refugiados. Como analisa a reação das potências mundiais a essa crise?
Zygmunt Bauman — Não se trata de um evento único, nem é novidade. A novidade é a atenção dedicada ao assunto, porque ele foi dramatizado, em parte com a ajuda da cobertura televisiva, quando vimos a criança morta na praia e aquilo que aconteceu em Lampedusa, quando centenas de pessoas se afogaram em embarcações sucateadas. Mas a migração em massa acompanha a era moderna desde o início. O Brasil, por exemplo, é produto da migração em massa. Pessoas vieram da Itália, da Espanha e de Portugal para cá para criar uma vida própria. Por que vieram? Porque procuravam trabalho, água potável, condições decentes de vida, coisas que não tinham em seus países. A reação da Europa tem um impacto duplo. Por um lado, as empresas têm interesse em assimilar essas pessoas. Sua força de trabalho. Elas lucrariam mais, para resumir. Por outro lado, existe a reação esperada do medo de estranhos. “Eles estão chegando para tumultuar. Vamos nos afogar, eles vão inundar nossas cidades.” Os empregados, e não os empregadores, os enxergam como concorrentes que provocarão o arrocho de seus salários. Eles serão usados pelos patrões para rejeitar as demandas dos empregados atuais, que podem ficar sem emprego. São duas pressões diferentes novamente.
Marcelo Lins — Mudando de assunto, já que nossa conversa está chegando ao fim. Neste mundo hiperconectado, no qual qualquer tipo de informação está a um clique no seu computador, qual é o papel da educação tradicional nas escolas e nas universidades? E também do jornalismo tradicional, se podemos chamar assim?
Zygmunt Bauman — Novamente, você mencionou um dos problemas mais importantes e dolorosos de nossos dias. Acho que a educação tem um papel tremendamente importante. Na situação atual, gosto de me referir a um ditado chinês da época de Confúcio. Ele diz que se você planeja para um ano, semeie milho. Se planeja para dez anos, plante uma árvore. Se planeja para 100 anos, eduque as pessoas. É disso que estamos nos esquecendo hoje. Nosso sistema educacional atual é uma das vítimas do que mencionei antes: a cultura do imediatismo. Educação e imediatismo são termos contraditórios. Não se pode ter os dois. Ou se tem uma educação de qualidade ou se tem o imediatismo. Não dá para ter os dois ao mesmo tempo. E este é um problema terrível. Na história da sociedade humana, assim que os gregos antigos inventaram o conceito de paideia, a educação viveu constantemente algum tipo de crise, porque as circunstâncias mudavam e ela tinha que se ajudar às novas informações. Mas essa crise é muito básica e essencial. Você mencionou o contexto da tecnologia da informação, que é uma biblioteca de fragmentos, de pedacinhos, sem algo que os reúna e os transforme em sabedoria, em conhecimento.
Marcelo Lins — E o fluxo é enorme.
Zygmunt Bauman — E isso destrói certas capacidades psicológicas, como atenção, concentração, consistência e o chamado pensamento linear, quando você estuda um assunto de forma consistente, e o esgota, vai até o fim. Há mudanças na psique humana, é uma situação completamente nova, que põe os educadores numa posição muito difícil. Eles precisam repensar muitas coisas.
Marcelo Lins — Numa tentativa de não terminar nossa conversa de forma triste, o que lhe traz esperança quando olha em volta? Que iniciativas, projetos e coisas estão sendo feitas que lhe dão esperança no futuro da humanidade?
Zygmunt Bauman — Quanto mais envelheço, mais amplio a perspectiva na qual baseio minha avaliação da situação. Primeiro eu me concentrei em alguns excessos da modernidade, depois passei a analisar a lógica ou a falta de lógica da modernidade líquida. Foram estudos limitados pela perspectiva histórica, mas se eu… O que vou dizer não é invenção minha, mas sou pessimista em relação ao curto prazo e otimista em relação ao longo prazo. Porque, quando analisamos a história a humanidade, apesar da nossa tendência de esquecer a História, da crise da memória histórica, apesar disso, a história da humanidade é animadora. Ela era muito mais cruel e sórdida antes. É muito menos cruel e sórdida agora, apesar de tudo de terrível e ultrajante que acontece. E houve muitas crises na história da humanidade, muitos períodos de interregno, nos quais as pessoas não sabiam o que fazer, mas elas sempre acharam um caminho. A minha única preocupação é o tempo que levarão para achar o caminho agora. Quantas pessoas se tornarão vítimas até que a solução seja encontrada? Essa é minha única preocupação.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.
ótima entrevista, vem muito a calhar para o momento que estamos vivendo…
Sim, muito bom! Volte a nos visitar!
A primeira dúvida é com relação a essa ruptura mencionada na comparação entre o capitalismo do século XIX, caracterizado pelo predomínio do mundo fabril com o de hoje onde, segundo dizem, predomina o mercado, como se as duas coisas não fossem o desdobramento do sistema no seu processo de adaptação às circunstâncias. Afinal ele em suas características fundamentais, continua o mesmo, tendo como elemento central a extração do mais valor, resultado da relação capital-trabalho. Lógico que não se pode comparar seu funcionamento nos dias de hoje com sua fase inicial, que corresponde ao período em que ele fazia um esforço no sentido de destruir os resquícios das relações anteriores e incorporar todos os elementos da produção, sobretudo as pessoas, à sua dinâmica.
Assim, esgotado esse processo, as exigências tornaram-se outras e aí, o mercado teve que fazer sérias ginásticas para garantir a continuidade do sistema. Essa, segundo meu ponto de vista, é uma das razões da sua crise profunda, de caráter estrutural.
Hoje, não predomina o mercado, predomina o capitalismo financeiro.
Afinal, a produção no capitalismo pressupõe o mercado.
O que acontece é que a característica que define os sujeitos socialmente deixou de ser somente sua função na cadeia produtiva e passou a ser, mais que nunca, sua posição num esquema de consumo.
Bauman não fala que o capitalismo é “de mercado”, mas fala que a sociedade é de consumo. Não que a sociedade de consumo fosse o oposto da sociedade industrial, ela a absorve.
Genial essa entrevista, o Bauman é muuito instigante, vai fundo nas questões que trata. gosto muito!! Continuem postando coisas dele. Obrigada!!! Cris
Obrigado por nos visitar!
As construções humanas, tanto mentais quanto materiais, sempre foram baseadas em pensamento linear, apesar de que todas as relações no fundo são não lineares. Sistemas complexos (não lineares) sempre foram deixados de lado pela dificuldade de resolução, o que hoje já é possível com auxílio do computador. Todas relações são melhor representadas quando na forma complexa (não linear) e o exercício para se lidar com a forma complexa é o que está implícito no enorme fluxo de informação. Não se trata portanto de destruição das capacidades psicológicas, como atenção, concentração, consistência como ele afirma, mas a sua alteração. Um exercício bastante consistente foi desenvolvido na cultura chinesa, onde o todo tem significado preponderante ao da parte.
A quântica está aí desafiando e oferecendo respostas para todos esses sistemas e pensamentos não lineares. Mas, apesar de usarmos seus produtos ( computadores, tecnologia digital…) ainda não aprendemos a pensar ou usar a mente dessa forma mais complexa em nosso dia a dia. E, tudo indica, é a nossa única saída, como humanidade.
O mercado cria problemas, mas não sabe resolve- los…? Certo. O mercado não consegue resolver porque ainda “pensa” em termos de linearidade, e os problemas que cria estão em outro patamar, surgem de forma complexa, baseados na não linearidade. Exigem outro tipo de resposta que a estrutura mental do mercado atual ainda não superou. Essa é, a meu ver, toda a contradição, e o agravamento de crises que podiam ser resolvidas com mais leveza e menos sofrimento.
Valeu a pena cada minuto que ganhei ao ler essa entrevista! Genial!!!!