Ideologia para análise do discurso francesa (AD) – DROPS #67

BOCCHIO, M. J. C. Ideologia – Análise do discurso de matriz francesa pecheuxtiana. Canal do GEPALLE – FFCLRP – USP, transcrição por Vinicius Siqueira de Lima, 2022. Vídeo disponível no fim do texto.

Ideologia para a análise do discurso é um conceito fundamental. Faz parte do processo de constituição da disciplina e relembra os diálogos que Michel Pêcheux estabeleceu com outros autores. No fundo, insere a necessidade de compreender a relação do discurso com sua exterioridade.

Discutir ideologia, para um analista do discurso, é fundamental dentro da linha de análise do discurso francesa, pecheuxtiana. Não é possível analisar o discurso sem observar sua exterioridade, sem observar sua base ideológica.

É importante compreender que o conceito de ideologia foi amplamente discutido nas ciências sociais sob diferentes olhares. Este conceito foi construído, interpretado e sustentado por diferentes autores, no entanto, quem traz à tona a discussão sobre o conceito foi Karl Marx, que abriu um horizonte de discussão em que vários autores puderam participar, como Louis Althusser, muito importante também para a concepção utilizada na análise do discurso.

No período de Guerra Fria, há uma apagamento desta discussão. Um silenciamento no bojo de condições de produção de um discurso capitalista que cria raízes na sociedade enquanto lado vitorioso da guerra. O neoliberalismo, por sua vez, quando entra em seu enfraquecimento, a discussão sobre a ideologia volta a ser relevante. Há uma figura importante nesta retomada na década de 90: Slavoj Zizek, que retoma o conceito através de uma leitura psicanalítica em sua obra “Um mapa da ideologia”.

Desta forma, o conceito de ideologia para a análise do discurso não é idêntico àquele escrito por Marx, mas é principalmente influenciado pelo filósofo francês Louis Althusser. Para compreender o conceito de ideologia segundo a matriz francesa de análise do discurso pecheuxtiana, é necessário retomar a leitura de Althusser. Para o autor:

  • Ideologia não está vinculada simplesmente à naturalização de sentido. Esta naturalização expressa seu funcionamento,  mas sua definição é: “A ideologia se dá através da relação imaginária que o sujeito tem com suas condições, com seus modos de existência”. Aqui já é possível perceber uma grande contribuição de Althusser ao inserir as relações imaginárias na análise, pois esta utilização demonstra que o sujeito, neste tipo de análise, não é o centro da análise. Trata-se de um sujeito descentrado.
  • Por ser um sujeito descentrado, possuinte de um imaginário, Althusser avança em relação à Marx, que se utilizou da noção de indivíduo para elaborar o conceito, centralizando o sujeito na análise. A ideologia, para Althusser, provoca a interpretação, provoca a criação de formações imaginárias, trata-se de um conceito que possibilidade observar a variabilidade do sentido sem necessariamente apelar para sua subjetividade individual. O sentido, assim, é relaciona aos diferentes contextos que diferentes sujeitos estarão imersos.
  • Althusser elabora dois tipos de ideologia. 1) a ideologia em geral, que não está vinculada a um contexto sócio-histórico, porque está em toda a sociedade. Esta ideologia em geral expressa uma estrutura que marca todo o processo de vivência e construção da humanidade em sociedade. Ela não é datada, não tem um começo e um fim, já que ela existe na sociedade capturando e interpelando a todos sem condições dos sujeitos estarem fora de seu domínio. Este é um ponto relevante da releitura de Althusser, pois, aqui, a ideologia não é uma forma de falseamento e não há um “fora” da ideologia, um exterior verdadeiro. A ideologia em geral, portanto, existe para todos em todo momento. Nós não alcançamos o real, desta forma, não há um falseamento da consciência, mas há relações imaginárias. Este conceito é o de Ideologia com “i” maiúsculo.
  • Para além da ideologia em geral, existem as 2) ideologias particulares, que são marcadas por um contexto sócio-histórico. São as ideologias vinculadas a determinadas condições de produção. Enquanto a ideologia em geral é associada à estrutura da sociedade, as ideologias particulares são aquelas que podemos nomear por setores: ideologia jurídica, religiosa, da educação, da ética, são sempre particulares porque são vinculadas a um contexto sócio-histórico. Diferentes sujeitos estão dentro dessas ideologias, ou seja, sujeitos da classe dominante e sujeitos das classes dominadas estão inseridos em uma mesma ideologia e neste ponto podemos ver sua contradição. O que isso significa? Se ideologia é a relação imaginária que o sujeito firma com suas condições de existência e se há diferentes sujeito com diferentes condições de existência, então, na mesma ideologia, há sujeitos que possuem relações imaginárias diferentes. Dentro da ideologia particular é possível observar a contradição. É importante compreender que, como existem diversas ideologias particulares, o mesmo sujeito é atravessado por várias delas.

Althusser constrói seu conceito de ideologia pautado fora do conceito de falseamento e de unidade da ideologia, mas por meio do entendimento de que há uma pluralidade de ideologias.

A outra contribuição importante de Althusser para o conceito de ideologia está localizada no materialismo adotado pelo filósofo para interpretar a realidade. Por meio do materialismo enquanto concepção, Althusser afirma que a ideologia não pode estar localizada apenas no plano abstrato, no plano das ideias, mas a ideologia deve estar localizada e ser observada nas práticas que, por sua vez, só existem embasadas em uma ideologia.

Ao contrário de Marx, que separava o abstrato do concreto, o pensamento da realidade, Althusser salienta que não se deve separar esses planos, pois as práticas não são neutras, na medida em que expressam uma ideologia.

Neste ponto, devemos nos lembrar de outra contribuição do autor francês: os aparelhos ideológicos de Estado. São conjuntos de instituições que expressam a ideologia dominante no plano material. É possível, assim, observar o funcionamento do plano ideológico nas práticas das instituições.

Alguns autores, por sua vez, salientam que Althusser se preocupou em explicar o aspecto reprodutor da sociedade, mas não em explicar a transformação social. Althusser, pelo contrário, também explica a transformação por meio da discussão sobre a ciência e sobre a posição das classes dominadas. Para o filósofo, as classes que não são dominantes, deixam de ter total influência da ideologia dominante e, justamente por isso, conseguem promover a transformação social. No entanto, como não há um “fora” da ideologia, deve-se entender que a ciência enquanto conhecimento ausente de neutralidade mas, ao mesmo tempo, discutida e fundamentada teoricamente, o que a deixa sempre aberta.

O deslocamento da influência da ideologia da classe dominante se dá quando a classe dominada é exposta à ciência enquanto instrumento. Mas, sabendo-se que não há ciência neutra, aquela que pode ser instrumentalizada pelas classes dominadas e funcionar como base para transformação social é a ciência marxista-leninista, em contraposição à ciência burguesa, de base positivista, empiricista e idealista.

O sujeito, nesta compreensão da ideologia, não é centrado, apesar de ser singular. Trata-se de uma concepção de sujeito descentrada, ou seja, que está aberto à interpelação ideológica, sem controle dos processos de interpelação e sem consciência de sua própria interpelação, na medida em que faz parte do mecanismo fundamental da ideologia em geral.

Para explicar como a interpelação ideológica ocorre, Althusser terá como influência a psicanálise freudo-lacaniana para definir o conceito de sujeito. Sempre com ressalvas em relação às influências citadas, o autor define que o processo de interpelação ideológica não acontece de maneira consciente, mas se dá de maneira inconsciente através de um mecanismo especular, ou seja, através de um mecanismo de reconhecimento e desconhecimento.

Este mecanismo ideológico se apresenta pro sujeito da seguinte maneira: o sujeito, quando é interpelado pela ideologia, ele se reconhece naquele discurso, se identifica com aquele discurso, por isso que se trata de um reconhecimento, mas, ao mesmo tempo, o sujeito desconhece que está sendo capturado. Para o sujeito, isso acontece na ordem do óbvio, do natural, do esperado, não se tem a compreensão de uma captura ideológica. O sujeito, assim, se submete ao Sujeito, ou seja, às ideologias. A estrutura especular que se apresenta pro sujeito para reconhecimento e desconhecimento é próprio do mecanismo de interpelação ideológica. Assim funciona o processo de interpelação, de maneira inconsciente de tal maneira que o sujeito é atravessada por várias ideologias e, neste olhar, é múltiplo, mesmo sem reconhecer esta multiplicidade, mesmo sem reconhecer os diversos atravessamentos ideológicos.

 – Maria Julia Camargo Bocchio

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