Da série “Michel Pêcheux: Conceitos Fundamentais“.
Na Análise do Discurso Francesa (AD), encabeçada por Michel Pêcheux, existe um esforço em unir três diferentes áreas do conhecimento para compor seu quadro epistemológico: a linguística, a teoria das formações sociais (o marxismo) e a teoria do discurso.
A união dessas três áreas distintas envolve o uso estratégico de seus conceitos. Por exemplo: o marxismo aparece como a concepção da sociedade enquanto sociedade de classes, portanto, move a análise e teoria do discurso sobre a ótica da luta de classes. O resultado de tal embasamento força Pêcheux a criar conceitos como o de formação ideológica, “conjunto complexo de atitudes e de representação que não são nem ‘individuais’ e nem ‘universais’, mas que se relacionam mais ou menos diretamente a posições de classes em conflito umas em relação às outras”[1], e utilizar a noção de ideologia proposta por Althusser em seu ensaio Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado.
Em relação à linguística, preocupa-lhe o problema da enunciação, que foi deixado por Saussurre em aberto no Curso de Linguística Geral. O estruturalista separou o sistema da língua da enunciação, colocando o primeiro como um conjunto fechado e regido por regras, mas destinando a indeterminação ao segundo. Este foi o gancho necessário para que teorias da enunciação idealistas (como a de Benveniste, dirá Pêcheux) fossem criadas com base em seu curso.
Particularmente em Semântica em Discurso[2], o alvo privilegiado de Pêcheux é Gottlob Frege, filósofo lógico que se debruçou sobre a linguagem e a matemática em busca da construção de uma linguagem artificial que desse conta de todas as contradições possíveis na argumentação. Há um problema específico em Frege que Pêcheux resolve levar à frente para inserir sua perspectiva, culminando na noção de pré-construído, foco principal deste artigo.
Frege assume uma falha inerente ao funcionamento da língua, que “induz no ‘pensamento’ uma ilusão“[3]. Esta ilusão pode ser mostrada no exemplo abaixo:
“Aquele que descobriu a forma elíptica das órbitas planetárias morreu na miséria”.
A subordinada, diz Frege[4], tem um sentido que não pode ser expresso independentemente, pois “aquele que” não é um sujeito gramatical dedutível da própria oração. Sua função é garantir a ligação com o que se segue no fim, “morreu na miséria”, mas não há nada que implique no sujeito Kepler e mesmo o uso de Kepler numa frase como “Kepler morreu na miséria”, não implicaria no sujeito que descobriu as formas elípticas das órbitas planetárias, uma vez que o nome Kepler indica alguma coisa, mas não há nada inserido no sentido da proposição que indica o indivíduo específico que este nome nos faz supor.
Portanto, a subordinada acima provoca uma ilusão que induz ao pensamento a existência de um alguém, um sujeito único, Johannes Kepler. Pêcheux intervém neste problema específico com uma questão: “não deveríamos, ao invés disso, considerar que há separação, distância ou discrepância na frase entre o que é pensado antes, em outro lugar ou independentemente, e o que está contido na afirmação global da frase“[5]?
A ajuda necessária para traçar uma resposta nestes moldes vem de Paul Henry, filósofo e amigo de Pêcheux, que propôs “o termo ‘pré-construído’ para designar o que remete a uma construção anterior, exterior, mas sempre independente, em oposição ao que é ‘construído’ pelo enunciado. Trata-se, em suma, do efeito discursivo ligado ao encaixe sintático”[6].
Este encaixe sintático se encontra na localização do efeito de sentido da oração subordinada relativa determinativa colocada no exemplo acima. O sentido específico da frase que indica o sujeito que descobriu as formas elípticas das órbitas planetárias, Kepler, se assenta no fato de que há uma relação dissimétrica por discrepância entre aquilo que Pêcheux chama de “dois ‘domínios de pensamento'”[7]. O pré-construído expressa a irrupção de um domínio sobre outro, como se ele já se encontrasse aí. O domínio de pensamento dito por Pêcheux se trata de um conteúdo de pensamento que existe dentro da linguagem, na medida em que não há conteúdos de pensamento fora dela. Este conteúdo de pensamento já articulado na linguagem se apresenta sob a forma do discursivo, na AD.
Este é um ponto importante da relação de duas das três áreas do conhecimento articuladas por Pêcheux na formação da AD, conforme dito no início do artigo. Aqui, a teoria dos discursos encontra sua ligação com a linguística.
Pêcheux conclui que o pré-construído tem uma característica essencial, a separação entre o pensamento e o objeto de pensamento, contando com a pré-existência deste último,
marcada pelo que chamamos uma discrepância entre dois domínios de pensamento, de tal modo que o sujeito encontra um desses domínios como o impensado de seu pensamento, impensado este que, necessariamente, pré-existe ao sujeito[8].
A falsa transparência do significado referente à determinativa relativa está posta na certeza empírica de que há um sujeito único identificável, integrante da forma-sujeito como somos constituídos. A separação entre pensamento e objeto de pensamento é a condição para se pensar o objeto de pensamento, portanto, para dar luz ao nascimento do conceito, para se pensar sob sua modalidade.
É justamente com o uso dos nomes comuns, dos conceitos, que a unicidade da existência de um objeto (designado pelo nome próprio) desaparece.
Pré-construído e interdiscurso
Entende-se que o interdiscurso é o todo complexo com dominante das formações discursivas, é o que determina a formação discursiva (FD) e se situa nos interstícios de diversas formações. A constituição do sujeito, na teoria de Pêcheux, envolve a interpelação ideológica (formulada primeiramente por Althusser[9]), que desencadeia a identificação do sujeito com a formação discursiva que o interpela e o transforma de indivíduo concreto a sujeito concreto daquela FD.
A identificação é facilitada por elementos do interdiscurso, como aquilo que Pêcheux chama de “processo de sustentação” e o “pré-construído”. No discurso do sujeito, são esses elementos que constituem o sujeito e são reinscritos por ele em seu próprio discurso[10], afinal, particularmente, o pré-construído é a forma de um domínio de pensamento irromper em outro, mas não aleatoriamente. O significado que parece óbvio (e por isso não precisa de demonstração) de uma frase que não tem sentido explícito no texto escrito, mas se localiza na transformação do indivíduo em sujeito daquela formação discursiva que o interpelou e na reinscrição dos elementos de identificação no próprio discurso do sujeito.
O pré-construído, assim, não só possibilita a existência do indivíduo como sujeito falante de uma formação discursiva, como é instrumento de realização do esquecimento nº1, a ilusão de que o sujeito é produtor do sentido daquilo que fala, já que será através dele que o sujeito ignorará a origem dos enunciados de seu discurso e os colocará no fio do discurso automaticamente, como se seu sentido fosse evidente.
Ele é um efeito discursivo que tem como disparo o encaixe sintático, observado no exemplo acima das relativas determinativas, e que funciona como a presença de um domínio de pensamento em outro. Como vimos, o domínio de pensamento se expressa como pensamento na linguagem através da discursividade; sendo assim, o pré-construído aponta a presença de um discurso em outro. Essa presença é anterior. Existe algo dito antes da enunciação.
Sírio Possenti[11] traz uma observação interessante sobre o conceito de pré-construído em Pêcheux: se este conceito traduz aquilo que é anterior à fala, portanto, um conjunto de coisas já ditas que podem ser apropriadas na hora da enunciação do discurso, então não pode ser um conceito tão abrangente, pois não é possível se apropriar de qualquer coisa. O linguista admite a funcionalidade do conceito através de duas limitações:
- A universalidade implícita do pré-construído (já que ele é anterior ao discurso e serve de já-dito e fundamento para o que será dito) só pode valer para a formação discursiva específica que interpela o indivíduo concreto em sujeito concreto dela própria. Então a transparência da verdade do impensado do pensamento não é universal em sentido amplo.
- O pré-construído como um todo não está à disposição de todos os sujeitos. Somente os sujeitos que podem/devem falar poderão ter acesso, em seus momentos de enunciação e em suas posições dentro da formação discursiva e ideológica, utilizar um número limitado de pré-construídos para dar sentido ao que é dito.
O problema é que, sendo assim, ele já não faria parte do interdiscurso, como propunha Pêcheux, mas sim das formações discursivas e de suas formações correlatas. Possenti termina sua análise retirando também o interdiscurso da generalidade que Pêcheux o havia deixado. Em vez de ser o determinante universal das formações discursivas, o exterior e o outro delas, o conceito se torna mais funcional quando limitado para cada formação discursiva.
O que Possenti quer dizer é que um todo complexo com dominante para todas as FD existentes não dá conta de explicar as funções específicas que o interdiscurso tem na formação do sujeito específico de uma formação discursiva e dos pré-construídos que lhe ficam disponíveis para utilizar (ou melhor, que ficam disponíveis para serem utilizados como parte integrante do desenrolar discursivo, sendo assim, não são instrumentos disponíveis para escolha de um sujeito livre).
Então, o interdiscurso é o todo complexo com dominante para uma ou para um conjunto definido de FD’s, afirma o autor, carregando um conjunto delimitado de pré-construídos que fornece sentidos que parecem óbvios somente para as FD’s a que eles estão ligados.
Considerações finais
O pré-construído se localiza no cruzamento da teoria do discurso com a linguística, fundamentando a pré-existência de um conteúdo numa ligação sintática que, sem esse já dito, não oferece qualquer sentido particular.
É através do pré-construído que podemos entender a particularidade do sentido das frases em cada formação discursiva, de tal forma que o conceito de pré-construído (e de interdiscurso) foi delimitado dentro da análise de Sírio Possenti, para conseguir dar conta do singular que cada formação discursiva produz.
Referências
[1] HAROCHE, C. PÊCHEUX, M. HENRY, P. A Semântica e o Corte Saussuriano: Língua, Linguagem, Discurso. Linguasagem – Revista Eletrônica de Popularização Científica em Ciências da Linguagem. Acessado em 2 de abril de 2017. Disponível em: https://goo.gl/j35QRE.
[2] PÊCHEUX, Michel. Determinação, formação do nome e encaixe IN Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Traduzido por Eni Pulcinelli Orlandi, Lorenço Chacon J. filho, Manoel Luiz Gonçalves Corrêa e Silvana M. Serrani, 2ª ed., Campinas: Editora da Unicamp, 1995, p.95 – 103.
[3] PÊCHEUX, Michel. Determinação, formação do nome e encaixe… p.96-97.
[4] PÊCHEUX, Michel. Determinação, formação do nome e encaixe… p.95.
[5] PÊCHEUX, Michel. Determinação, formação do nome e encaixe… p.99.
[6] PÊCHEUX, Michel. Determinação, formação do nome e encaixe… p.99.
[7] PÊCHEUX, Michel. Determinação, formação do nome e encaixe… p.99.
[8] PÊCHEUX, Michel. Determinação, formação do nome e encaixe… p.99.
[9] ALTHUSSER, Louis. Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado. 1ª Ed., Lisboa: Editorial Presença/Martins Fontes, 1974.
[10] PÊCHEUX, Michel. Determinação, formação do nome e encaixe… p.163.
[11] POSSENTI, Sírio. Observações Sobre Interdiscurso. Editora UFPR. Revista Letras, Curitiba, n. 61, especial, p. 253-269, 2003.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.
isto é o mesmo do que o conceito de Platão sobre o mundo das ideias e o Logos?
Cara, eu não sei dizer.
Obrigado pelo comentário!
Sobre o efeito de sustentação e a linearização como transverso? VC aborda em outro texto?
Ainda não, Cris!
Obrigado pelo comentário!
Cara, sou pós-graduando em Linguística, com enfoque em Análise de discurso materialista (pecheutiana) e devo dizer que raras pessoas discutem os conceitos de Pêcheux como você. Inclusive, acho que muito do pensamento desse filósofo-militante-MARXISTA-LENINISTA-linguista-etc. é desvalorizado e convertido em um neopositivismo irrefletido, na contramão do que ele visava: um rompimento com as velhas negações da política no campo das ciências sociais e intervenção intelectual e prática na luta de classes. Parabéns pelo seu trabalho. Comprarei seu livro e, se for tão bom quanto as resenhas, irei recomendar aos colegas daqui do Piauí. Boa sorte com seu trabalho!
Muito obrigado pelo carinho, Abraão!
Boa sorte com sua pesquisa também!