Da série “O pastorado“.
Índice
Introdução
O poder pastoral é uma estratégia específica de poder em que uma figura central chamada metaforicamente de pastor conduz seu rebanho, seus fiéis, seus agregados ou seguidores, como um rebanho em busca de terrenos favoráveis à sobrevivência e bem-estar de todos. Em busca, caso coloquemos no contexto religioso, da salvação.
Antes de tudo, é necessário lembrar que a “estratégia de poder” é uma noção foucaltiana em que o funcionamento das relações de poder é mais importante que a figura de um controlador. Ou seja, é o resultado da noção de poder relacional foucaultiana aplicada em um contexto macro, em que é possível correlacionar as diferentes microrrelações de poder, reproduzidas por instituições com eficiência ampliada no exercício do poder (como os aparelhos de Estado).
Sendo assim, nem pastor e nem rebanho são visto como atores sociais criadores de discursos ou fontes primárias de informações que para que se entenda a estratégia: são posições, espaços a ser preenchidos, nós da malha do poder. O objetivo deste artigo é detalhar quatro características fundamentais da relação entre pastor e rebanho utilizando como base o livro Segurança, Território, População de Michel Foucault.
O paradoxo
Apesar do pastor ser responsável pelo rebanho e por cada ovelha individualmente, há um paradoxo específico a que está submetido. Foucault denomina de “paradoxo distributivo” da pastoral cristã: ser responsável pelo rebanho, ser responsável pela salvação de todas as ovelhas e de cada uma tem como consequência prática ser responsável, também, pela ostracização de algumas ovelhas que causem perigos ao rebanho[1].
Desta forma, ser responsável por cada uma significa adequar o rebanho às necessidades individuais, por sua vez, ser responsável pelo rebanho significa adequar cada uma a um caminho fundamental, às normas básicas para o movimento do rebanho em busca da salvação. A punição a uma ovelha particular é o amor ao rebanho.
A ovelha que escandaliza, a ovelha cuja corrupção ameaça corromper todo o rebanho deve ser abandonada, deve ser, eventualmente, excluída, expulsa, etc. Mas, por outro lado – Está aí o paradoxo -, a salvação de uma só ovelha deve causar tanta preocupação no pastor quanto a de todo o rebanho, não há ovelha pela qual ele não deva, suspendendo todas as suas outras tarefas e ocupações, abandonar o rebanho e tentar trazê-la de volta.[2]
Perder uma ovelha é, portanto, certo sacrifício, pois simboliza a responsabilidade do pastor com todas as outras ovelhas, com o rebanho enquanto elemento coletivo, mas também o fracasso com uma ovelha, com um indivíduo. Uma falta menor que torna possível a sobrevivência da maioria.
Para além deste paradoxo, há quatro princípios que fundamentam a relação entre o pastor e suas ovelhas.
Quatro principais características
Quatro princípios que, segundo Foucault, aparecerem de maneira inovadora na história da humanidade e que foram adicionados ao elemento fundamental de responsabilidade do pastor dito anteriormente:
- Responsabilidade analítica: “o pastor cristão deverá, ao fim do dia, da vida do mundo, prestar contas de todas as ovelhas. Uma distribuição numérica e individual possibilitará saber se efetivamente ele se encarregou bem de cada ovelha, e toda ovelha que lhe faltar lhe será contada negativamente. Mas deverá também – é aí que intervém o princípio da responsabilidade analítica – prestar contas de todos os atos de cada uma das suas ovelhas, de tudo o que puder ter acontecido a cada uma delas, de tudo de bom e de mau que elas possam ter feito em cada momento”[3]. Ao mesmo tempo, o pastor é responsável por cada ovelha, pelo tratamento de cada uma, mas também é responsável por guardar informações sobre cada atitude de cada uma. Será através disso que ele próprio seja avaliado e, ao mesmo tempo, através disso ele próprio poderá avaliar a viabilidade de manter cada ovelha no rebanho.
- Transferência exaustiva e instantânea: “também totalmente específico ao cristianismo […] É que, no dia temível, o pastor deverá não apenas prestar contas das ovelhas e do que fizeram, mas de cada uma, de cada um dos méritos e deméritos de cada uma das coisas que uma ovelha fez, tudo isso o pastor deverá considerar seu ato próprio. O pastor deverá experimentar tudo o que acontece de bom, no exato momento em que esse bem ocorre com uma ovelha, como seu próprio bem. O mal que sucede à ovelha ou que ocorre através da ovelha ou por causa dela, o pastor deverá considerá-lo também como acontecendo com ele próprio ou que ele mesmo faz”[4]. Aqui, soma-se ao ponto anterior: a responsabilidade analítica não é uma prestação de contas impessoal, mas um testamento do próprio trabalho e das próprias experiências neste trabalho. O relatório prestado sobre suas ovelhas será, indiretamente, um relatório sobre si.
- Inversão do sacrifício: “Em terceiro lugar, princípio também totalmente específico do pastorado cristão, o princípio da inversão do sacrifício. De fato, se é verdade que o pastor se perde com a sua ovelha – essa é a forma geral dessa espécie de solidariedade global de que lhes falava há pouco -, ele também deve se perder por suas ovelhas, e no lugar delas. Ou seja, para salvar suas ovelhas, o pastor tem de aceitar morrer”[5]. Pois a vida do pastor só faz sentido se for em servidão ao seu rebanho. Uma servidão específica, em que o servo guia e cuida dos servidos, em que os servidos precisam prestar obediência ao servo, pois, no fundo, o pastor é servo de Deus, mas não está hierarquicamente em posição inferior ao rebanho. O rebanho, servido pelo pastor, ainda é uma multiplicidade sob sua responsabilidade.Trata-se de um problema relacionado à direção da consciência e ao sacrifício de se colocar como hospedeiro do mal que cada ovelha carrega, da tentação que cada ovelha tem. “Será que esse mal que lhe relatam, esse mal de que ele vai aliviar a consciência do seu dirigido pelo próprio fato de este tê-lo expendido, não vai expô-lo à tentação?”[6].
- Correspondência alternada: “De fato, se é verdade que o mérito das ovelhas constitui o mérito do pastor, não podemos dizer também que o mérito do pastor não seria muito grande se as ovelhas fossem, todas, sempre e perfeitamente meritórias? O mérito do pastor não se deve pelo menos em parte ao seguinte: que as ovelhas são rebeldes, que estão expostas ao perigo, que estão sempre a ponto de cair”[7]? Este mecanismo, também próprio do cristianismo, transforma a imperfeição em necessidade, pois o mérito é inflado quando o rebanho é imperfeito. Mas o caminho inverso também é verdadeiro, pois as ovelhas adquirem mérito quando o pastor também erra: “E, inversamente, pode-se dizer também, e de maneira igualmente paradoxal, que as fraquezas do pastor podem contribuir para a salvação do rebanho, assim como as fraquezas do rebanho podem contribuir para a salvação do pastor”[8], a fraqueza é elemento meritório ao outro elemento, é mérito ao pastor guiar um rebanho imperfeito e é mérito do rebanho obedecer a um pastor imperfeito.
O pastor é uma figura como qualquer outra, é um humano como qualquer outro, é um fiel como qualquer outro. É um sujeito errante cuja responsabilidade da condução lhe foi dirigida e, com esta pena, com este fardo, ele deverá satisfazer uma vontade divina, pois
“é bom que o pastor tenha imperfeições, que conheça suas imperfeições, que não as oculte hipocritamente aos olhos do seus fiéis. É bom que ele se arrependa, explicitamente, que se humilhe, para se manter, ele próprio, numa modéstia que será uma edificação para os fiéis na mesma medida em que o cuidado que teria em ocultar suas fraquezas produziria um escândalo”.[9]
O pastor é escolhido para ser um servo responsável, um exemplo de servidão e, por ser o servo perfeito de Deus, um guia para o rebanho, ainda no processo de construção de sua fidelidade a Deus. O resultado é a salvação de ambos os elementos:
Por conseguinte, assim como de um lado as fraquezas das ovelhas fazem o mérito e asseguram a salvação do pastor, inversamente as faltas ou as fraquezas do pastor são um elemento da edificação das ovelhas e do movimento, do processo pelo qual ele as conduz para a salvação.[10]
Todos, ovelhas e pastor, imperfeitos e, mantendo-se num nível de humildade a alguém, escamoteia-se a imperiosidade da relação concreta de poder.
Considerações finais
A posição de pastor, no poder pastoral, não envolve certo status de autoridade, não envolve a propriedade do poder que é exercido sobre as ovelhas. Tanto pastor como ovelhas estão indissociados em seu destino e em sua avaliação final. Tanto o rebanho com o pastor serão avaliados um pela imperfeição e pelos atos do outros. Ambos recebem o mérito da imperfeição e uma relação de dependência mútua e servidão geral.
Daí, o poder exercido pelo pastor tende a ser escamoteado numa percepção tanto das ovelhas como do próprio pastor de que sua função é intermediária, resultado da servidão ao Deus. Desta forma, ninguém parece ser fonte do poder, o indivíduo que ocupa o lugar de pastor tende a não ter para si objetivos escusos, individuais, e sua vida passa a ser dedicada à salvação do rebanho, que obedece humildemente aos desígnios do pastor. O olhar de Foucault sobre o poder pastoral está na relação entre os elementos, não no tipo de consciência que cada elemento teria na aplicação do poder. Pois o poder não é aplicado, como se fosse possuído. Ele é exercido.
Referências
[1] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População: curso dado no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 224.
[2] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p. 224.
[3] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p. 224-225.
[4] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p. 225.
[5] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p. 226.
[6] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p. 226.
[7] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p. 227.
[8] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p. 227.
[9] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p. 228.
[10] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p. 228.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.