Estratégia sem estrategista – Michel Foucault

O poder é relacional, é constituído por relações de força e, através delas, ele se arranja em suas formas históricas. Como a observação das relações de poder é uma observação sobre seu funcionamento, seu resultado é uma estratégia sem estrategista: um conjunto de relações de poder que, em sua combinação, resultam em táticas e estratégias possíveis ao exercício do poder.

Índice

Introdução

Na medida em que o poder é concebido como uma relação, o foco das genealogias foucaultianas tende a se concentrar no funcionamento do poder, ou seja, na prática da relação e em seu desenrolar. Há, nisso, um questionamento empírico e ontológico: “é introduzir a suspeita de que o ‘poder’ não existe; é perguntar-se, em todo caso, a que conteúdos significativos podemos visar quando usamos este termo majestoso, globalizante e substantificador”[1].

Este questionamento é acrescido de outro: se o poder só existe em ato, então uma observação macroscópica das relações de poder, como numa sociedade, tendem a não ser interessantes, na medida em que colocam a microfísica do poder em segundo plano, colocam a pesquisa das técnicas e dos mecanismos de poder como objeto secundário de uma busca maior e mais importante, a busca pelo local de concentração do poder, ou a busca por sua raiz e portanto das respostas acerca dos questionamentos sobre sua origem, sua razão de ser.

Entretanto, a noção de estratégia de poder é útil justamente por unir um entendimento do poder enquanto relação acrescido de um entendimento de que a combinação das diferentes relações tende a gerar um esquema, uma estratégia, que não necessita da intencionalidade de um sujeito para existir. O objetivo deste artigo é expor a noção de estratégia conforme abordado em O Sujeito e o poder, de Michel Foucault.


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O poder

Sabendo que o poder só existe em ato, em relação, é necessário isolá-lo:

Dispomos da afirmação que o poder não se dá, não se troca nem se retoma, mas se exerce, só existe em ação, como também da afirmação que o poder não é principalmente manutenção e reprodução das relações econômicas, mas acima de tudo uma relação de força.[2]

O poder não opera sobre as relações econômicas, ou seja, a estrutura econômica não é sua determinante. A determinação da relação de poder é a própria aporia de força contra força. O poder pode não existir enquanto ente filosófico abstrato, enquanto elemento de uma certa natureza social, enquanto criação a ser desvendada, mas ele existe concretamente no desenrolar das relações de força contra força.

Para Foucault, por exemplo, não é necessário encontrar uma lógica própria do poder, uma razão de ser ou origem para se compreender que o nascimento das técnicas disciplinares e sua incorporação no Estado moderno estabeleceu uma predominância de dispositivos disciplinares na Europa do século XVIII. A própria lógica disciplinar é o arranjo específico das relações de poder no local pesquisado.

E aquilo que se deve compreender por disciplinarização das sociedades, a partir do século XVIII na Europa, não é, sem dúvida, que os indivíduos que dela fazem parte se tornem cada vez mais obedientes, nem que elas todas comecem a se parecer com casernas, escolas ou prisões; mas que se tentou um ajuste cada vez mais controlado – cada vez mais racional e econômico – entre as atividades produtivas, as redes de comunicação e o jogo das relações de poder.[3]

Ou seja, o próprio desenrolar das relações de poder estabelece condições para o exercício de poder específico para docilização dos corpos com objetivo de tornar cada indivíduo útil em suas funções sociais, mas, acima de tudo, para que cada indivíduo se torne produtivo através da soma entre docilidade e utilidade. A estratégia disciplinar produz a realidade que permite a realização do capitalismo produtivo nascente no século XVIII, ao mesmo tempo, ela é uma ferramenta no próprio jogo da luta social: através do exercício do poder a classe proletária é submetida a um regime de automatização e extenuação corporal e individual.

A estratégia

Este regime de poder, seja ele qual for, poderá compor uma estratégia do poder. Uma estratégia que, por ser resultado da combinação das relações de poder, pode até favorecer determinados grupos, mas nunca terá um estrategista. A estratégia conforme utilizado por Foucault para descrever o poder disciplinar ou o biopoder não precisa de um estrategista, por que se faz no próprio desenrolar da história, no próprio desenrolar das lutas, das tentativas de dominação, da utilização de técnicas que atendam urgências específicas e que envolvam, evidentemente, a ação sobre a ação do outro.

Mas há três maneira de entender a estratégia no texto foucaultiano. Podemos utilizar esta palavra para:

Primeiramente, para designar a escolha dos meios empregados para se chegar a um fim; trata-se da racionalidade empregada para atingirmos um objetivo. Para designar a maneira pela qual um parceiro, num jogo dado, age em função daquilo que ele pensa dever ser a ação dos outros, e daquilo que ele acredita que os outros pensarão ser a dele; em suma, a maneira pela qual tentamos ter uma vantagem sobre o outro. Enfim, para designar o conjunto dos procedimentos utilizados num confronto para privar o adversário dos seus meios de combate e reduzi-lo a renunciar à luta; trata-se, então, dos meios destinados a obter a vitória. Estas três significações se reúnem nas situações de conforto – guerra ou jogo – onde o objetivo é agir sobre um adversário de tal modo que a luta lhe seja impossível. A estratégia se define então pela escolha das soluções “vencedoras”.[4]

São três maneiras específicas de entender a estratégia: 1) em relação aos meios de se chegar a um fim, 2) em relação à vantagem contra um oponente e 3) em relação aos meios de se conseguir a vitória extenuando o oponente.

Foucault ainda delimita o entendimento de cada uma das maneiras ditas acima:

Ao nos referirmos ao primeiro sentido indicado, podemos chamar “estratégia de poder” ao conjunto dos meios operados para fazer funcionar ou para manter um dispositivo de poder. Podemos também falar de estratégia própria às relações de poder na medida em que estas constituem modos de ação sobre a ação possível, eventual, suposta dos outros. Podemos então decifrar em termos de “estratégias” os mecanismos utilizados nas relações de poder.[5]

Podemos chamar, por exemplo, de estratégia o conjunto de mecanismos de segurança utilizados para responder a

uma série de questões que vão ser perguntadas no seguinte gênero, por exemplo: qual é a taxa média da criminalidade desse [tipo]? Como se pode prever estatisticamente que haverá esta ou aquela quantidade de roubos num momento dado, uma sociedade dada, numa cidade dada, na cidade, no campo, em determinada camada social, etc.?[6]

Ou seja, pode-se chamar de estratégia a este conjunto de mecanismos com finalidade de atingir um objetivo específico de controle social tomando como base a noção de população. Ou seja, o biopoder, por exemplo, enquanto estratégia.

Considerações finais

É possível elaborar a seguinte questão: mas não há grupos dominantes que exercem poder ou controlam dispositivos de poder de maneira privilegiada? Pode-se dizer que sim, mas é necessário compreender que o nível de análise do poder em Michel Foucault está no mesmo nível das condições que permitem a existência de grupos privilegiados ou aparelhos estatais privilegiados para o exercício do poder.

Foucault toma como exemplo a centralidade da classe burguesa nas análises marxistas:

Entre a estratégia que fixa, reproduz, multiplica, acentua as relações de força e a classe dominante, existe uma relação recíproca de produção […] Pode−se, portanto, dizer que a estratégia de moralização da classe operária é a da burguesia. Pode−se mesmo dizer que é a estratégia que permite à classe burguesa ser a classe burguesa e exercer sua dominação.[7]

A estratégia de moralização da classe operária favorece a classe burguesa, permite que ela insira uma oposição no seio da classe trabalhadora: a oposição no nível moral entre o proletário e o lumpemproletariado. Ao mesmo tempo, a própria condição à existência e exercício do poder por parte da burguesia também está atrelada à estratégia.

A estratégia não é ontologicamente mais essencial que o estado de forças no momento em que é observado, pois ela não serve como modelo para se enquadrar e nomear os elementos em uma luta política. Ela é o resultado da observação deste elementos em jogo e, justamente por isso, pressupõe sua própria finitude.

Referências

[1] FOUCAULT, Michel. O sujeito e o poder IN P. Rabinow & H. Dreyfus, Michel Foucault – uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica (pp. 231-249). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995, p. 240.

[2] FOUCAULT, Michel. Genealogia e poder IN FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Roberto Machado (Org). 1978.

[3] FOUCAULT, Michel. O sujeito e o poder… p. 242.

[4] FOUCAULT, Michel. O sujeito e o poder… p. 247-248.

[5] FOUCAULT, Michel. O sujeito e o poder… p. 248.

[6] FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 289-290.

[7] FOUCAULT, Michel. Sobre a história da sexualidade IN FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Roberto Machado (Org). 1978.

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