A exceção soberana – Giorgio Agamben

A exceção soberana não é, necessariamente, um espaço geográfico definido, nem mesmo é uma criação opcional da soberania. A exceção é a essência da soberania, é seu efeito real e um sujeito perante a soberania está implicado em sua existência através de um movimento duplo de exclusão e inclusão.

Índice

Introdução

A vida sob um Estado soberano parece dada, natural, entretanto, o Estado é uma construção histórica e seu poder e legitimidade são questões que surgem com certa dificuldade de se compreender. O Estado, como aquele que detém o uso legítimo da força, não legitima o Estado soberano, mas legitima o uso da força. O Estado descrito como órgão de administração de classes, por sua vez, torna legítima a administração social, mas não autoriza ou define a imperiosidade soberana deste aparelho.

A soberania, assim, torna-se um ponto de investigação relevante de se observar. De que consiste e como se faz imperiosa, como cria espaços de exercício do poder e como se fundamenta são níveis de questionamento que Giorgio Agamben busca responder através do entendimento do papel exercido pela soberania de criação dos espaços de exceção, para além da descrição de Carl Schmitt sobre a instituição do Estado de exceção como sendo a intervenção que a definiria. Este artigo terá como base o livro Homo sacer: o poder soberano e a vida nua.

O soberano

O soberano é uma entidade política que fundamenta e, ao mesmo tempo, se exclui do ordenamento jurídico. Num só movimento, a soberania cria o espaço da imperiosidade da lei ao se colocar fora dela e torná-la um excedente administrativo, uma forma textual da ordem que foi criada anteriormente pela própria emergência da soberania.

O soberano, assim, está, ao mesmo tempo, dentro e fora da lei:

A especificação “ao mesmo tempo” não é trivial: o soberano, tendo o poder legal de suspender a validade da lei, coloca-se legalmente fora da lei. Isto significa que o paradoxo pode ser formulado também deste modo: “a lei está fora dela mesma”, ou então: “eu, o soberano, que estou fora da lei, declaro que não há um fora da lei”.[1]

É necessário pontuar este elemento: enquanto excluído da lei, o soberano a institui, pois abre seu espaço de aplicação. O soberano, portanto, é o ente político que, através de uma arbitrariedade, funda a possibilidade de uma ordem específica, pois “todo direito é ‘direito aplicável a uma situação’. O soberano cria e garante a situação como um todo na sua integridade. ele tem o monopólio da decisão última”[2]. Aqui, Agamben cita Schmitt.

Para Carl Schmitt[3], a essência da soberania estatal não é relacionada ao monopólio do poder ou da sanção, mas sim ao monopólio da decisão que, em última instância, é o monopólio da decisão sobre o Estado de exceção. O que está em jogo na exceção soberana, interpreta Agamben, é a própria validade da norma jurídica e o sentido da autoridade estatal, ou seja, a possibilidade da criação do estado de exceção é o fundamento principal do soberano, que ao se situar fora do ordenamento jurídico, condicionando sua existência, se eleva enquanto autoridade excluída da ordem, mas incluída no resultado da própria ordenação. Segundo Agamben:

O soberano, através do estado de exceção, “cria e garante a situação”, da qual o direito tem necessidade para a própria vigência. Mas que coisa é esta “situação”, qual a sua estrutura, a partir do momento em que ela não consiste senão na suspensão da norma?[3]

A estrutura desta situação é uma dupla exclusão, em que o sujeito é retirado de uma vida natural, inserido numa vida política e se tornando sempre exposto à vida nua. A estrutura é a exclusão enquanto movimento previsível de ação do soberano, que exclui justamente ao incluir de maneira imperiosa.


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A exceção soberana

Entretanto, a exceção promovida pelo soberano não retira aquele que é excluído da ordem, mas o retira do espaço em que a norma jurídica é aplicada, o mantendo associado a esta norma através da exclusão.

A exceção é uma espécie de exclusão. Ela é um caso singular, que é excluído da norma geral. Mas o que caracteriza propriamente a exceção é que aquilo que é excluído não está, por causa disto, absolutamente fora de relação com a norma; ao contrário, esta se mantém em relação com aquela na forma da suspensão. A norma se aplica à exceção desaplicando-se, retirando-se desta. O estado de exceção não é, portanto, o caos que precede a ordem, mas a situação que resulta da sua suspensão. Neste sentido, a exceção é verdadeiramente, segundo o étimo, capturada fora (ex-capere) e não simplesmente excluída.[4]

O sujeito excluído, sacro, que não é coberto pela legitimidade jurídica, homo sacer, não é simplesmente excluído da ordenação jurídica e, desta forma, separado do corpo jurídico-político protegido pela ordenação: sua vida, enquanto uma vida no espaço de exceção, é a vida de quem está excluído do ordenamento jurídico, mas associado a este justamente por sua exclusão, na medida em que seu assassinato não é considerado homicídio.

Na estrutura da soberania, então, a exceção é um ato de suspensão sob domínio do soberano, que abandona o espaço de exceção ao suspender a vigência do ordenamento jurídico, ou seja, ao suspender os efeitos de sua prática. O ordenamento jurídico abandona o espaço de exceção, se retira deste espaço:

Não é a exceção que se subtrai à regra, mas a regra que, suspendendo-se, dá lugar à exceção e somente deste modo se constitui como regra, mantendo-se em relação com aquela. O particular “vigor” da lei consiste nessa capacidade de manter-se em relação com uma exterioridade. Chamemos relação de exceção a esta forma extrema da relação que inclui alguma coisa unicamente através de sua exclusão.[5]

O espaço de exceção soberana é aquele cuja regra não se aplica e, ao mesmo tempo, não se configura como um espaço estabelecido, pois é o produto de uma suspensão da norma e não o estabelecimento de outra norma. É um espaço político destituído da política e, por isso mesmo tempo, é um lugar de abandono.

A situação, que vem a ser criada na exceção, possui, portanto, este particular, o de não poder ser definida nem como uma situação de fato, nem como uma situação de direito, mas institui entre estas um paradoxal limiar de indiferença. Não é um fato, porque é criado apenas pela suspensão da norma; mas, pela mesma razão, não é nem ao menos um caso jurídico, ainda que abra a possibilidade de vigência da lei.[6]

Justamente por ser um espaço de ausência, de ostracismo e violência, o espaço de exceção não pode ser materializado em espaço concretos de fácil tolerância: para Agamben, o campo de concentração é o resultado concreto da tentativa de tornar visivel este local de exceção[7]. Desta forma, em vez do cárcere como local de exclusão, o que se entende é que o campo é o local que traduz materialmente este espaço de exceção, na medida em que o campo é estabelecido pela legislação, pela ordem, mas seu interior é destituído de qualquer ordenamento jurídico, é o local em que os direitos são suspensos.

Não é o cárcere, mas o campo, na realidade, o espaço que corresponde a esta estrutura originária do nómos. Isto mostra-se, ademais, no fato de que enquanto o direito carcerário não está fora do ordenamento normal, mas constitui apenas um âmbito particular do direito penal, a constelação jurídica que orienta o campo é, como veremos, a lei marcial ou o estado de sítio. Por isto não é possível inscrever a análise do campo na trilha aberta pelos trabalhos de Foucault, da História da loucura a Vigiar e punir. O campo, como espaço absoluto de exceção, é topologicamente distinto de um simples espaço de reclusão. E é este espaço de exceção, no qual o nexo entre localização e ordenamento é definitivamente rompido, que determinou a crise do velho “nómos da terra”.[8]

Tendo como referência pressuposta a existência do ordenamento jurídico, a exceção soberana é o abandono do soberano de um espaço determinado. Este abandono não é sua exclusão do poder soberano, mas é sua exclusão da imperiosidade do ordenamento jurídico sobre o espaço político-jurídico. “A exceção soberana (como zona de indiferença entre natureza e direito) é a pressuposição da referência jurídica na forma de sua suspensão”[9], explica Agamben.

O sujeito que se localiza no espaço de exceção soberana está ligado à norma jurídica a partir da prática do abandono, ou seja, a vida nua é vivida enquanto uma realidade imperiosa, não enquanto uma forma de exclusão de um indivíduo do corpo político que teria como horizonte a liberdade para se adaptar a outros espaços político-jurídicos. A exclusão se faz enquanto dependência. Como destino de morte.

Em toda norma que comanda ou veta alguma coisa (por exemplo, na norma que veta o homicídio) está inscrita, como exceção pressuposta, a figura pura e insancionável do caso jurídico que, no caso normal, efetiva a sua transgressão (no exemplo, a morte de um homem não como violência natural, mas como violência soberana no estado de exceção).[10]

A exceção soberana configura um tipo específico de pertencimento, de ligação, em que não há inclusão. Há pertencimento, pela própria caracterização da exclusão (excluído em relação a quê? Excluído por quem?), mas não há inclusão justamente pelo movimento de exclusão: a retirada do sujeito da ordem jurídico-político é sua manutenção nesta ordem enquanto alvo fácil, por isso o sujeito é abandonado a uma vida de violência.

Lícito e ilícito

A exceção soberana, então, sendo um espaço produzido pelo soberano que abarca a presença dos homo sacer, não determina a microfísica do poder jurídico, mas garante um espaço para sua aplicação. O espaço em que o soberano atua é o espaço em que o ordenamento jurídico tem condições de ser desenvolvido e aplicado.

Isso significa que a essência da soberania não é a criação de normas jurídicas, mas é a criação do espaço de garantia para seu exercício e, ao mesmo tempo, a criação da exceção.

O soberano não decide entre lícito e ilícito, mas a implicação originária do ser vivente na esfera do direito, ou, nas palavras de Schmitt, a “estruturação normal das relações de vida”, de que a lei necessita. A decisão não concerne nem a uma quaestio iuris nem a uma quaestio facti, mas à própria relação entre o direito e o fato.[11]

E é justamente por meio desta implicação, o soberano define, também, o limite da relação entre inclusão e pertencimento. O sacer pertence sem ser incluído. Trata-se do excedente da inclusão sobre o pertencimento, a demonstração de que um sistema não consegue tornar real a unidade utópica entre pertencimento e inclusão, se fazendo, assim, fechado. Há um fora da inclusão, que também pertence ao sistema justamente enquanto seu fora.

A ordem jurídica, por sua vez, aparece originalmente como a repetição da transgressão através de sua permissão momentânea:

Que a lei tenha inicialmente a forma de uma lex talionis (talio, talvez de talis, quer dizer: a mesma coisa), significa que a ordem jurídica não se apresenta em sua origem simplesmente como sanção de um fato transgressivo, mas constitui-se, sobretudo, através do repetir-se do mesmo ato sem sanção alguma, ou seja, como caso de exceção.[12]

A lei de Talião não garante a punição do agressor, mas configura um espaço e tempo em que a agressão perpetrada pela vítima é incluída na ordem jurídica, sendo assim, inserindo a possibilidade da violência através de um momento de exceção. Aqui, se vê a “a violência como fato jurídico primordial” e, por sua vez, a situação mostra que “a exceção é a forma originária do direito”[13].

Considerações finais

A exceção soberana não é, necessariamente, um espaço geográfico definido, nem mesmo é uma criação opcional da soberania. A exceção é a essência da soberania, é seu efeito real e um sujeito perante a soberania está implicado em sua existência através de um movimento duplo de exclusão e inclusão:

A vida, que está assim ob-ligata, implicada na esfera do direito pode sê-lo, em última instância, somente através da pressuposição da sua exclusão inclusiva da exceptio: ele se nutre dela e, sem ela, é letra morta.[14]

A inclusão na esfera do direito acontece por meio de uma exclusão da exceção e, na medida em que não se está excluído, é possível ser um sujeito de direitos, sendo assim, o direito que confere característica ao sujeito só é na medida em que tem seu local específico de aplicação delimitado como aquele que não é a exceção soberana.

Neste sentido verdadeiramente o direito “não possui por si nenhuma existência, mas o seu ser é a própria vida dos homens”. A decisão soberana traça e de tanto em tanto renova este limiar de indiferença entre o externo e o interno, exclusão e inclusão, nómos e phýsis, em que a vida é originariamente excepcionada no direito. A sua decisão é a colocação de um indecidível.[15]

O direito, assim, em vez de ser entendido enquanto instituição geradora de normas, passa a ser visto como aquilo que define de maneira prescrita a vida política, a vida protegida, e a vida natural, fora da jurisdição.

Referências

[1] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002, p. 23.

[2] Carl Schmitt, 1922, 39-41 IN AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002, p. 24.

[3] Carl Schmitt, 1922, 39-41 IN AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002, p. 24.

[4] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua… p. 25.

[5] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua… p. 26.

[6] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua… p. 26.

[7] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua… p. 27.

[8] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua… p. 27.

[9] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua… p. 28.

[10] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua… p. 28.

[11] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua… p. 33.

[12] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua… p. 33-34.

[13] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua… p. 33-34.

[14] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua… p. 34.

[15] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua… p. 34.

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