O corpo soberano e o corpo sacro – Giorgio Agamben

Para Giorgio Agamben, há uma divisão no corpo do soberano, sendo um corpo com duas vidas mutuamente ligadas por ele: uma vida natural e uma vida sacra. O autor descreve essa característica do corpo soberano por meio da análise de sepultamentos de imperadores, pela morte de monarcas e pela noção do devoto sobrevivente enquanto sujeito entregue aos deuses mas que não foi morto no campo da batalha.

Em Os dois corpos do rei, de 1957, o historiador Ernst Hartwig Kantorowicz desenvolve a reflexão acerca da dualidade do corpo do rei que passa pelos rituais de morte de seu corpo natural e de seu corpo místico, conforme chamado pelo autor. Essa divisão é uma estrutura inicial situada num contexto histórico religioso e não científico do que viria a ser o entendimento acerca da separação entre a pessoa e seu cargo, entre o rei enquanto mortal e a posição de rei enquanto espaço vazio a ser preenchido por um sujeito.

Nesta divisão, o corpo místico do rei era preenchido pela legitimidade que vaticinava suas decisões políticas, enquanto seu corpo natural era passível de exageros, enfermidades, etc. Os dois corpos são considerados como indissociáveis, mutualmente vinculados um ao outro.

Para Giorgio Agamben, o trabalho de Kantorowicz não só traduz uma divisão entre um corpo natural e um místico, como também insere a dimensão do homo sacer no corpo soberano.

O rito macabro e grotesto, no qual uma imagem era primeiramente tratada como uma pessoa viva e depois solenemente queimada, indicava uma zona mais obscura e incerta, que buscaremos agora indagar, na qual o corpo político do rei parecia aproximar-se até o ponto de quase confundir-se com ele, do corpo matável e insacrificável do homo sacer.[1]

Agamben, para construir essa análise, também insere a situação dos rituais pagãos de imagem do século II, em que uma imagem é sacrificada no lugar de uma pessoa após ela ser oferecida aos deuses numa batalha. Ou seja, um sujeito entrega seu corpo aos deuses para contar com a boa sorte numa batalha e não é morto, assim, seu corpo que foi entregue não passa, de fato, ao mundo dos mortos e ao caminho dos deuses. Sua entrega, que é uma devoção solene, não se concretiza com a morte do devoto. A solução para este problema é o funeral de uma imagem que representaria algo do sujeito devoto, que representaria o corpo entregue. O autor cita o estudioso da antiguidade clássica Elias Bickermann:

Bickermann relaciona o funeral imaginário imperial com o rito que deve ser cumprido por aquele que, antes de uma batalha, devotou-se solenemente aos deuses Manes e não morreu em combate. E é aqui que os corpos do soberano e do homo sacer entram em uma zona de indistinção na qual parecem confundir-se.[2]

Não somente o soberanos, mas qualquer homem poderia ser devotado aos deuses. A morte do devoto é a solução da devoção, é o que fecha o movimento de devoção aos deuses. Quando o sujeito devoto não morre em batalha, é necessário realizar um ritual de sepultamento de uma imagem que não é somente ou simplesmente a representação do devoto, mas é a finalização do processo de entrega ao mundo dos deuses. A vida do devoto que sobrevive à batalha está suspensa, pois já foi entregue aos deuses, mas ainda permanece no mundo dos vivos. Trata-se de uma sujeito que causa certo constrangimento à comunidade, pois seu corpo não se situa no mundo profano (já que foi retirado dele através de seu voto aos deuses) nem no mundo sagrado (já que, mesmo prometido ao sagrado, não foi morto).

Este devoto sobrevivente é sacer.

É possível, neste ritual, confeccionar um colosso para substituir o corpo do prometido:

O colosso não é, portanto, um simples substituto do cadáver. Antes, parem, no sistema complexo que regula no mundo clássico as relações entre vivos e mortos, ele representa, analogamente ao cadáver, mas de modo mais imediato e geral, aquela parte da pessoa viva que e destinada à morte e que, ocupando ameaçadoramente o limiar entre os dois mundos, deve ser separada do contexto normal dos vivos.[3]

Sob esta perspectiva, o corpo do homo sacer se assemelha ao corpo do devoto sobrevivente, porém, para o primeiro, não há expiação vicária possível, não há substituição possível de seu corpo. O homo sacer, diferentemente do devoto, não está à mercê de um voto, pois seu corpo já é a matabilidade e a insacrificabilidade impostas de maneira absoluta.

Utilizando como base este comentário sobre a confecção de estátuas ou colossos para sepultamento com intenção de restabelecer uma vida no mundo dos vivos do devoto sobrevivente, entende-se que o homo sacer se distancia desta situação na medida em que ele próprio já é o colosso em carne. Seu corpo já é uma estátua a ser entregue. Trata-se de uma forma de vida intimamente ligada à morte, com a ressalva de seu corpo ainda não ter se tornado defunto.

E é na figura desta “vida sacra” que algo como uma vida nua faz a sua aparição no mundo ocidental. Decisivo é, porém, que esta vida sacra tenha desde o início um caráter eminentemente político e exiba uma ligação essencial com o terreno sobre o qual se funda o poder soberano.[4]

E, assim, abre-se a possibilidade de entender o ritual de sepultamento do corpo do rei, do rito da imagem na apoteose imperial romana: a morte do imperador libera um suplemento de vida sacra, que o colosso visa neutralizar. O colosso é justamente o elemento de morte do devoto, é a entrega daquele que sua vida foi voto de morte. Agamben, aqui, refaz a elaborações sobre os dois corpos do rei: tudo se passa como se ele tivesse, em vez de dois corpos, duas vidas em um só corpo. Ele tem uma vida natural, cuja morte pede um ritual de sepultamento do corpo, e uma vida sacra, que sobrevive ao primeiro ritual e pede um segundo para que seja aceita no céu e divinizada.

A vida sacra não pode de modo algum habitar a cidade dos homens: para o devoto sobrevivente, o funeral imaginário funciona como um cumprimento vicário do voto, que restitui o indivíduo à vida normal; para o imperador, o funeral duplo permite fixar a vida sacra que deve ser recolhida e divinizada na apoteose; no homo sacer, enfim, nos encontramos diante de uma vida nua residual e irredutível, que deve ser excluída exposta à morte como tal, sem que nenhum rito e nenhum sacrifício possam resgatá-la.[5]

Os três exemplos, mesmo com suas diferenças, encontram-se ligados a uma função política e, nos três exemplos, a morte desferida ao corpo sacro não é homicídio. Independentemente da consideração acerca da morte deste corpo sacro, se é mais grave ou menos grave que um homicídio, o interessante é perceber que não se trata disso.

Por exemplo, o assassinato de um rei não é considerado um homicídio, mas é inscrito no ordenamento como crime de lesa majestade. Não se trata da morte de um homem livre, de um cidadão livre, de uma pessoa ordinária, mas da morte específica do corpo que divide a vida humana da majestade e sua vida sacra.

Desta forma, Agamben argumenta que a ruptura observada na decapitação de Luis XVI em 1793 na revolução francesa não estava situada na figura do monarca sendo morto, mas sim no processo judicial que culminou na execução da pena capital. O monarca foi morto como consequência de um processo legal comum.

Os jacobinos que, em 1792, durante as discussões na convenção, queriam que o rei fosse simplesmente morto sem processo, levavam ao extrema, ainda que provavelmente sem dar-se conta, a fidelidade ao principio da insacrificabilidade da vida sacra, que qualquer um pode matar sem cometer homicídio, mas que não pode ser submetida as formas sancionadas de execução.[6]

Nas constituições modernas, a insacrificabilidade se mantém de maneira secularizada no princípio que faz com que o chefe de Estado não seja julgado num processo judiciário ordinário, mas somente através de uma corte especial. No caso do Brasil, por exemplo, é presidido pelo Senado Federal e não contempla possíveis crimes de ordem penal ou civil.

Referências

[1] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002, p. 102.

[2] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua… p. 103.

[3] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua… p. 106.

[4] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua… p. 107.

[5] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua… p. 107.

[6] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua… p. 110.

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