Vidas indignas – Giorgio Agamben

A emergência das elaborações jurídicas acerca da eutanásia e de sua extensão aos sujeitos que não decidir por este ato sozinhos marca a delimitação de um homo sacer específico no seio da sociedade nazista. Entretanto, não somente a sociedade nazista fabrica seus homens sacros, pois este é um mecanismo presente em toda sociedade.

Índice

Introdução

A produção de uma vida indigna no seio do biopoder passa pela consideração das relações entre saber e poder que definem uma vida passiva do ato da morte: ou seja, de uma vida que, enquanto vida, se situa num campo de possibilidade da morte pelo Soberano que não é considerada assassinato. A indignidade da vida é o que a transforma em uma morte que vida, ou seja, é aquilo que a retira da vida em seu aspecto social e em sua acepção existencial, coincidindo com uma descartabilidade que cria um espaço de exclusão específico no miolo de uma estratégia de poder feita para fazer viver.

Giorgio Agamben discute a emergência de uma vida indigna de ser vivida por meio do cruzamento de duas esferas que, na biopolítica, são de extrema valia: o direito e a medicina. Em conjunto, ambas foram utilizadas no início do século XX para regulamentar a eutanásia e a morte de terceiros, indignos da extensão de suas vidas. O objetivo deste artigo é entender a discussão sobre a vida digna e indigna de ser vivida segundo Agamben no livro Homo sacer: o poder soberano e a vida nua.


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A vida digna de ser vivida

Numa sociedade biopolítica, a consideração que fornece base para administração política é de caráter biológico, de que pertencemos à mesma espécie e, justamente por conta disso, o cálculo estatístico se torna possível para a busca de médias objetivas para tomadas de decisão políticas. O nascimento da biopolítica é o nascimento de uma governamentalidade pautada nas ciências biológicas e na matemática principalmente.

Ao mesmo tempo, o elemento político chamado população nasce e pode finalmente ser observado como um corpo de indivíduos com desejos múltiplos mas pertencentes a essa abstração generalizante chamada espécie. Para Michel Foucault, uma consideração subjacente emerge: o corpo das pessoas não pode ser definido somente como corpo-indivíduo, como nas técnicas do poder disciplinar; é necessário que o corpo também seja considerado em seu nível de espécie, ou seja, corpo-espécie.

A partir desta consideração, as taxas de mortalidade, taxas de nascimento, taxas de criminalidade, taxas  de desemprego, etc, tendem a ter um sentido relacionado à totalidade da população na região administrativa. Não é possível realizar este tipo de cálculo se os elementos a serem inseridos na série estatística não pertencerem ao mesmo conjunto, desta forma, a consideração do corpo-espécie permite uma visão matemática da população enquanto um conjunto de indivíduo múltiplos e, ao mesmo tempo, uma totalidade pertencente à espécie e a um território político determinado. Por meio de seus dispositivos, o biopoder utiliza técnicas estatísticas que fornecem uma base para comandar

uma série de questões que vão ser perguntadas no seguinte gênero, por exemplo: qual é a taxa média da criminalidade desse [tipo]? Como se pode prever estatisticamente que haverá esta ou aquela quantidade de roubos num momento dado, uma sociedade dada, numa cidade dada, na cidade, no campo, em determinada camada social, etc.?[1]

Tem-se, então, o entendimento de que as ações administrativas do Estado passariam a ser voltadas à diminuição dos males que tais pesquisas estatísticas indicariam: diminuir a taxa de criminalidade em uma região da cidade para que se adeque à média da cidade, por exemplo, em vez de discutir a possibilidade de abolir a própria criminalidade como um todo. Tal administração considera que sua população é aquela que se adequa às políticas de liberalização que são promulgadas pelo Estado, de tal maneira que sua movimentação é governada pelo poder de Estado:

A população vai parar de aparecer como uma coleção de súditos de direito, como a coleção de vontades submetidas que devem obedecer à vontade do soberano por intermédio de regulamentos, leis, decretos, etc. Ela vai ser considerada um conjunto de processos que é preciso administrar no que têm de natural e a partir do que têm de natural.[2]

Ou seja, por exemplo, a liberalização do comércio de alimentos seria solução para diminuir as taxas de carestia em diferentes regiões afetadas no território de administração estatal, mas a população, naquilo que tem de natural, em seus desejos, teria que se associar a tal liberalidade e deixar o comércio acontecer, evitando atos de ilegalidade como o roubo de carga, o roubo dos comércios e etc.

A escassez-flagelo é uma quimera, está bem. Ela é uma quimera, de fato, contanto que as pessoas se comportem devidamente, isto é, que umas aceitem suportar a escassez-carestia e que as outras vendam seu trigo no devido momento, isto é, bem cedo, contanto que os exportadores despachem seu produto assim que os preços começarem a subir.[3]

Esta é a população, mesmo que tenha indivíduos que possam morrer de fome por não terem abastecimento de alimentos em suas regiões específicas devido ao alto custo do transporte. Esta população é aquela que o biopoder faz viver, é aquela que o Estado cria condições para vida, para que permanece viva, tenha melhores condições de vida e sirva de braços fortes para a produção econômica ou para o trabalho militar. Cada indivíduo é considerado membro da população, parte integrante e, de certa forma, ordeira do corpo político. Membros individuais que favorecem os processos naturais da população.

Em contraste com a população, há o povo: o núcleo de sujeito que, de dentro da população, se situam foram dela enquanto maus membros. É ele que rouba cargas de alimentos, que retém quantidades irracionais de alimentos, que realiza a ilegalidade, que se desvia da norma.

Tudo isso prova que essas pessoas não pertencem realmente à população. O que são elas? Pois bem, são o povo. O povo é aquele que se comporta em relação a essa gestão da população, no próprio nível da população, como se não fizesse parte desse sujeito-objeto coletivo que é a população, como se se pusesse fora dela, e, por conseguinte, é ele que, como povo que se recusa a ser população, vai desajustar o sistema.[4]

O povo seria, então, o elemento a ser disciplinado ou deixado para morrer.

A vida indigna de ser vivida

Giorgio Agamben parte do folheto de Karl Binding e Alfred Hoche chamado A autorização do aniquilamento da vida indigna de ser vivida publicado em 1920 para discorrer sobre um tipo de fabricação do homo sacer nos Estados biopolíticos modernos. Inicialmente, os autores (o primeiro, especialista em direito penal; o segundo, professor de medicina) defendem a legitimidade legal da eutanásia a partir da argumentação de que é uma “expressão de uma soberania do homem vivente sobre a própria existência”[5]. Sendo assim, a impunibilidade seria um efeito razoável de tal ato, logo, o Estado não deveria ser julgado pela assistência à eutanásia.

Entretanto, há um salto específico em que a impunibilidade acerca da eutanásia é transferida para outro tipo de morte e, exatamente neste ponto, Agamben identifica a primeira articulação jurídica dentro da biopolítica para que fosse possível decidir sobre o valor de algumas vidas e o desvalor de outras. O panfleto insere duas categorias de pessoas desvaloradas:

O conceito de “vida sem valor” (ou “indigna de ser vivida”) aplica-se antes de tudo aos indivíduos que devem ser considerados “incuravelmente perdidos” em seguida a uma doença ou ferimentos e que, em plena consciência de sua condição, desejam absolutamente a “libertação” (Binding serve-se do termo Erlösung, que pertence ao vocabulário religioso e significa, além do mais, redenção) e tenham manifestado de algum modo este desejo. Mais problemática é a condição do segundo grupo, constituído pelos “idiotas incuráveis, tanto no caso de terem nascido assim, como no caso – por exemplo, os doentes de paralisia progressiva – de o terem se tornado na última fase de suas vidas”. “Estes homens” – escreve Binding – “não possuem nem a vontade de viver nem a de morrer. Por um lado, não existe nenhuma constatável anuência à morte, por outro, a sua morte não se choca contra vontade alguma de viver, que deva ser superada. Sua vida é absolutamente sem objetivo, mas eles não a sentem como intolerável”.[6]

Feridos, doentes, pessoas que entendem a eutanásia como libertação. Ao mesmo tempo, pessoas que, segundo os autores, sem plena consciência de sua própria existência, não seriam soberanas sobre sua própria vida, desta forma, a soberania passaria diretamente ao Estado. A falta de soberania sobre a própria vida, apoiada numa condição de “anormalidade” biológica abriria espaço à ordenação estatal de morte. Eis a caracterização do homo sacer no seio do Estado biopolítico europeu. Segundo Binding, não haveria motivos sociais, jurídicos, nem religiosos para desautorizar a morte destes homens “que não são mais do que a espantosa imagem ao avesso da autêntica humanidade”[7]. Por fim, a decisão inicial de morte deveria ser tomada pelo próprio sujeito, caso possa tomar tal decisão, mas caso não, por um médico ou parente próximo. A decisão final caberia a uma comissão estatal composta por um médico, um psiquiatra e um jurista.

É como se toda valorização e toda “politização” da vida (como está implícita, no fundo, na soberania do indivíduo sobre a sua própria existência) implicasse necessariamente uma nova decisão sobre o limiar além do qual a vida cessa de ser politicamente relevante, é então somente “vida sacra” e, como tal, pode ser impunemente eliminada.[8]

Toda sociedade tem seus mecanismos próprio de decidir o limite entre a vida digna e a indigna, toda sociedade, portanto, produz seu homens sacros, seus homo sacer. Na Alemanha nazista, em 1940, o doutor Fritz Mennecke ouviu uma reunião reservada em Berlim em que médicos nazistas comunicavam a emissão de uma medida de governa que autorizava a eliminação da vida indigna. Os alvos especialmente referenciados eram os doentes mentais incuráveis. O programa de eutanásia nazista durou por 15 meses até ser encerrado após protestos eclesiásticos e das famílias das vítimas. Um exemplo da aplicação deste programa se deu na vila de Grafeneck, cidade de Gomadingen:

O instituto recebia a cada dia cerca de setenta pessoas (em idade variável de 6 a 93 anos), escolhidas entre os doentes mentais incuráveis espalhados pelos vários manicômios alemães. Os doutores Schumann e Baumhardt, que tinham a responsabilidade do programa em Grafeneck, submetiam os doentes a uma consulta sumária e decidiam se estes apresentavam os requisitos exigidos pelo programa. Na maior parte dos casos, os doentes eram mortos nas 24 horas seguintes à chegada a Grafeneck.[9]

Entende-se, assim, que sob uma forma de preocupação humanitária, o que estava em execução era a possibilidade do poder soberano, no seio de um Estado biopolítico, decidir sobre a vida nua. Trata-se da definição (“a vida indigna de ser vivida”) de um conceito político sobre a dignidade da vida, que define uma vida matável pelo Estado que estará salvo de qualquer punição e, ao mesmo tempo, de uma vida insacrificável, de um corpo que não merece qualquer dignidade.

Um cruzamento, portanto, da biopolítica que preza pelo corpo biológico da nação e do campo jurídico que abre espaço à emergência do poder soberano de matar e não ser punido.

Considerações finais

A emergência das elaborações jurídicas acerca da eutanásia e de sua extensão aos sujeitos que não podem decidir por este ato sozinhos marca a delimitação de um homo sacer específico no seio da sociedade nazista. Entretanto, não somente a sociedade nazista fabrica seus homens sacros, pois este é um mecanismo presente em toda sociedade.

O fato é que o Reich nacional-socialista assinala o momento em que a integração entre medicina e política, que é uma das características essenciais da biopolítica moderna, começa a assumir a sua forma consumada. Isto implica que a decisão soberana sobre a vida se desloque, de motivações e âmbitos estritamente políticos, para um terreno mais ambíguo, no qual o médico e o soberano parecem trocar seus papéis.[10]

Na biopolítica, a emergência do homo sacer passa por uma fabricação que cruza os domínios da medicina, da ciência do fazer viver; e do direito, que delimita a própria possibilidade de se ser um sujeito de direito, um sujeito legítimo na sociedade política, digno da vida em sociedade.


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Referências

[1] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População: curso dado no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, 1999, p.7.

[2] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p.92.

[3] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p. 56-57.

[4] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p. 57.

[5] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002, p. 143.

[6] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua… p. 145.

[7] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua… p. 145.

[8] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua… p. 146.

[9] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua… p. 147-148.

[10] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua… p. 150.

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