Da série “Necropolítica“.
A fantasia do aniquilamento é uma noção de Achille Mbembe que representa o resultado da percepção ocidental de ser portador do universal. Por supostamente ser portador de uma verdade universalizável, mas também por ter uma história de conquistas e extermínios, o Ocidente compreende que seja razoável desaparecer o outro que incomoda. Trata-se do momento em que o apartheid não se faz suficiente:
Esta fantasia está presente em qualquer contexto no qual as forças sociais tendam a conceber a política como uma luta até a morte contra inimigos incondicionais. Tal luta passa então a ser qualificada como existencial. É uma luta sem a possibilidade de reconhecimento mútuo e muito menos de reconciliação.[1]
É uma fantasia que só pode existir quando há uma distância infinita entre um sujeito e outro, de tal forma que este outro se instala numa categoria de inimigo. Não qualquer inimigo, mas um inimigo que despeja perigo sobre a própria forma de vida do Ocidente. Um inimigo que pode e deve ser aniquilado na medida em que a vida coletiva ocidental seria ameaçada com sua presença, que revelaria a própria ligação do sujeito fantasiado e o sujeito alvo da fantasia.
O alvo perde sua dignidade, pois sua morte não é questionada, nem avaliada individualmente. Trata-se de uma divisão complexa, mas racial, que se expõe na luta irreconciliável entre um membro da sociedade e o inimigo:
Ela contrapõe essências distintas, dotadas cada uma delas de uma substância quase impenetrável, ou possuídas exclusivamente por aqueles e aquelas que, pela lei combinada do sangue e do solo, pertencem à mesma espécie. Ora, tanto a história política quanto a história do pensamento e da metafísica do Ocidente estão saturadas por esse problema. Os judeus, como se sabe, pagaram o preço disso no próprio coração da Europa. Anteriormente, negros e índios haviam inaugurado a Via Crucis, particularmente no Novo Mundo.[2]
Judeus, negros e indígenas são os exemplos deste inimigo que tem lugar no próprio coração da civilização ocidental. Um inimigo que coage aqueles que estão dentro ao vínculo essencial e expulsa os de fora, sendo possível, inclusive, assassiná-los, se for cabível. Aqui, há relação entre a visão de Mbembe e de Ramon Grosfoguel ao caracterizar os três movimentos históricos e ontológicos que tornaram possível a existência da modernidade: o ego cogito, que permitiria a universalização da maneira ocidental de entender o mundo; o ego conquiro, que permitira a conquista militar de novos territórios; e o ego extermino, que torna possível o genocídio dos povos locais.
Trata-se de uma concepção política que emerge a partir da obsessão ocidental em, por meio de sua metafísica, entender a verdade do ser e, por meio da ontologia, o entendimento da vida.
De acordo com esse mito, a história seria a realização da essência do ser. Na terminologia heideggeriana, o ser se contrapõe ao ente. O Ocidente seria o lugar decisivo do ser, posto que teria sido o único a desenvolver essa capacidade de vivenciar o recomeço. O resto não passaria da condição de ente.[3]
O restante do mundo estaria numa condição de passividade, esperando a atividade do sujeito ocidental, capaz de tocar a verdade da vida, a verdade do ser e, em adição, a verdade epistemológica.
Apenas o Ocidente teria desenvolvido essa capacidade de vivenciar o recomeço, pois seria o lugar decisivo do ser. Seria isso que o tornaria universal, sendo seus significados válidos de maneira incondicional, muito além de qualquer topografia, ou seja, em todos os lugares, a todo tempo, independentemente de qual seja o idioma, a história ou a condição.[4]
Essa posição de importância autocentrada da cultura ocidental permite que a sua verdade seja imposta pelo bem dos conquistados. Como um direito, como uma responsabilidade, a civilização ocidental empurra a democracia liberal como perspectiva de vida social e política, por exemplo, da mesma maneira que antes, espalhou a política moderna através das democracias escravistas, criando ligações entre os diferentes territórios conquistados com seus conquistadores, mas não os retirando do lugar de dominado na relação.
O sujeito ocidental não reconhece o limite que existe em sua própria existência, expandindo-a como uma malha que encobre o globo:
Com relação à história do ser e à política do ser, pode-se dizer, portanto, que o Ocidente nunca chegou realmente a conceber sua própria finitude. Sempre postulou como inevitável e absoluto seu próprio horizonte de ação, e esse horizonte sempre se entendeu, por definição, global e universal.[5]
Entretanto, nenhum universal abstrato existe na realidade prática sem uma imposição material. A materialidade militar foi a maneira de explorar os diferentes territórios invadidos pela Europa ocidental em sua expansão. Através do poderia militar, o ser, a vida social e a epistemologia ocidentais foram se encrustando nos diferentes locais conquistados e, à força, realizaram o objetivo de universalidade presente no ímpeto inicial desta campanha.
O outro deve ser morto para realização do universal, que só se realiza com a subjugação do outro que, neste processo, deixa de ser um outro e se torna um inimigo, no limite, um objeto a ser dominado. “O universal, nesse caso, é o nome dado à violência dos vencedores de guerras que são naturalmente conflitos de predação”[6], o universal só se coloca na realidade através do poder. O poder contribui para que o universal se faça como verdade na prática discursiva.
Considerações finais
A fantasia de aniquilação é um produto de certa universalidade ontológica e epistemológica impostas por meio da força sobre todo o globo. Trata-se do sonho de destruição de toda a sociedade para seu renascimento, para seu recomeço com novos sujeitos.
Por meio da violência, a fantasia de aniquilamento assume a realidade em pontos específicos do mundo, mas através das relações políticas se impõe sobre os Estados-nação e sobre as populações globais.
Referências
[1] MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade. São Paulo, SP: N-1 edições, 2020, p. 106.
[2] MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade… p. 106.
[3] MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade… p. 107.
[4] MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade… p. 107.
[5] MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade… p. 107.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.