A genealogia da democracia ocidental, por Achille Mbembe – DROPS #68

Da série “Necropolítica“.

MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade. São Paulo, SP: N-1 edições, 2020, p. 43-50.

A crítica à violência das democracias, por sua vez, não é nova. Ela se oferece diretamente à leitura nos contradiscursos e práticas de luta que acompanharam sua emergência e, subsequentemente, seu triunfo no século XIX. Foi esse o caso, por exemplo, das diversas ariantes do socialismo, a outra ideia nova do século XIX, ou do anarquismo do final do século XIX e das tradições do sindicalismoee revolucionário da França de antes da Primeira Guerra Mundial e após a crise de 1929.

Uma das questões fundamentais que se colocam para a nossa época é saber se a política pode ser outra coisa que não uma atividade relacionada ao Estado e na qual o Estado é utilizado para garantir os privilégios de uma minoria. A outra é saber em que condições as forças radicais que visam precipitar o advento da sociedade do futuro podem se fazer valer de um direito a utilizar a violência para assegurar a realização de suas utopias. No plano filosófico, perguntamo-nos se a humanidade é capaz de chegar por conta própria, sem recursos a nenhuma transcendência, a um desenvolvimento de suas capacidades, a um aumento de seu poder de agir, único meio de a história humana produzir a si mesma.

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Por volta do final do século XIX, surgiu a noção de ação direta, concebida como uma ação violenta empreendida independentemente de qualquer mediação estatal. Ela tem por finalidade se libertar das constrições que impedem aos humanos se comunicarem com suas próprias reservas de energia e, ao fazer isso, se autoproduzirem. A revolução é o exemplo acabado disso. Sendo a maneira de eliminar violentamente qualquer contraforça objetiva que se oponha a uma mudança das bases da sociedade, almeja a abolição dos antagonismos de classe e o advento de uma sociedade igualitária.

A greve geral expropriatória é outro exemplo, tendo como perspectiva instituir um outro modo de produção. Esse tipo de conflitualidade sem mediação inviabiliza, por definição, o compromisso. Rejeita, aliás, toda e qualquer conciliação. A revolução é considerada um evento violento. Essa violência é planejada. Por ocasião dos eventos revolucionários, ela pode ter como alvos pessoas que encarnam a ordem em vias de ser derrubada. Apesar de inevitável, deve ser limitada e voltada contra as estruturas e as instituições. A violência revolucionária tem efetivamente algo de irredutível. Visa à destruição e à liquidação de uma ordem estabelecida, liquidação que não pode ser obtida pacificamente. Nisso, ela se dirige antes à ordem das coisas que à das pessoas.

O anarquismo, sob suas diferentes roupagens, apresenta-se como uma superação da democracia, em especial da sua vertente parlamentar. As principais correntes anarquistas se esforçaram em pensar a política para além da dominação burguesa. Seu projeto era acabar com toda dominação política, sendo a democracia parlamentar uma de suas modalidades. Para Mikhail Bakunin, por exemplo, a superação da democracia burguesa passa pela superação do Estado, instituição cuja essência é buscar acima de tudo a própria preservação e a das classes que, tendo-se assenhorado dele, ora o colonizam. A superação do Estado inaugura o advento da “comuna”, figura por excelência da auto-organização do social, muito mais do que mera entidade econômica ou política.


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A outra crítica da brutalidade das democracias veio dos sindicalistas revolucionários, para quem a questão não era tanto intervir no sistema existente, mas destruí-lo por meio da violência. A violência se distingue da força. A força, como escreveu Georges Sorel, tem o objetivo de “impor a organização de uma certa ordem social na qual uma minoria governa”. Procura “realizar uma obediência automática”. A violência, por outro lado, “tende à destruição dessa ordem” e a “romper com essa autoridade”. De 1919 até o início dos anos 1930, na França, inúmeras manifestações operárias visavam expressamente a esse objetivo. A maioria delas resultou na morte de pessoas, na ocupação das ruas e na armação de barricadas. O ciclo provocação/repressão/mobilização contribuiu para a afirmação de uma identidade de classe, da mesma forma que os longos movimentos de greve e as sucessivas confrontações com as forças da ordem. A ideia era que a violência proletária era moral, enquanto a do aparato de Estado era reacionária. Quase duas décadas após a repressão da Comuna e a dissolução da Primeira Internacional em 1876, o anarquismo viveu o seu auge na França. A destruição da propriedade e a expropriação dos proprietários constituíam seus objetivos declarados; e o terror dos oprimidos, uma de suas armas. Nos anos 1890, esta assumiria a forma de ações espetaculares, no bojo de uma economia do sacrifício – sacrifício à causa proletária.

Essas críticas à democracia, articuladas do ponto de vista das classes sociais que originariamente sofreram a sua brutalidade no próprio Ocidente, são relativamente conhecidas. Por outro lado, não foram suficientemente reiteradas suas múltiplas genealogias e seu entrelaçamento. Era como se a história das democracias modernas se resumisse a uma história inerente às sociedades do Ocidente e como se, encerradas em si mesmas e no mundo, essas sociedades estivessem confinadas aos estreitos limites de seu entorno imediato.  Ora, nunca foi esse o caso. O triunfo da democracia moderna no Ocidente coincidiu com o período da sua história durante o qual essa região do mundo esteve implicada em um duplo movimento de consolidação interna e de expansão ultramarina. A história da democracia moderna é, no fundo, uma história de duas faces, ou melhor, de dois corpos: o corpo solar, de um lado, e o corpo noturno, de outro. O império colonial e o Estado escravagista – e, mais precisamente, a plantation e a colônia penal – constituem os maiores emblemas desse corpo noturno.

A colônia penal, em particular, era um local onde eram porgadas as penas da exclusão. Essas penas visavam tanto alijar quanto eliminar aqueles e aquelas que as sofriam. De início, era esse o ocaso dos oponentes políticos, dos condenados a trabalhos forçados por crimes comuns e também dos delinquentes reincidentes. Na França, a lei de 26 de agosto de 1792 institui efetivamente a deportação política. Entre 1852 e 1854, as colônias penais nos territórios coloniais viveram uma grande expansão. Deportações em massa ocorreram ao longo do século XIX, especialmente rumo à Guiana, onde as penas eram convertidas em prisão perpétua. Sob muitos aspectos, a colônia penal ultramarina prefigura a massificação do encarceramento típico da era contemporânea, marcada pela coerção extrema e generalizada e pelo confinamento solitário. A violência no tratamento dispensado aos prisioneiros e as formas de privação às quais são submetidos combinam duas lógicas, a da neutralização e a do exílio.

No fundo, desde as suas origens, a democracia moderna, para dissimular a contingência de seus fundamentos e a violência que constitui suas partes baixas, sentiu a necessidade de se involucrar em uma estrutura quase mitológica. Como há pouco dissemos, a ordem democrática, a ordem da plantation e a ordem colonial mantiveram durante muito tempo vínculos de gemelidade. Esses vínculos foram tudo menos acidentais. Democracia, plantation e império colonial fazem parte objetivamente de uma mesma matriz histórica. Esse fato originário e estruturante está no cerne de toda e qualquer compreensão histórica da violência da ordem global contemporânea.

Para apreender a contento a natureza dos vínculos entre, de um lado, a ordem democrática e, de outro, a ordem imperial-colonial, e em seguida o modo como essa relação determina a violência das democracias, é importante levar em consideração doversos fatores (político, tecnológicos, demográficos, epidemiológicos e até mesmo botânicos). De todas as ferramentas técnicas que contribuíram para a configuração dos impérios coloniais a partir do século XVIII, as mais decisivas foram, sem dúvida, as técnicas armamentistas, a medicina e os meios de locomoção. Não bastava, contudo, adquirir impérios, por vezes a preço de saldo, como atestam a miudeza em créditos e efetivos mobilizados nas conquistas. Era preciso ainda povoar as novas terras e explorá-las efetivamente. Aproveitar-se da decadência do império mogol, do reino javanês e do beilhique otomano foi o que fizeram, a título de exemplo, a Grã-Bretanha, os Países Baixos e a França na Índia, na Indonésia e na Argélia, não raro com técnicas pré-industriais.

Jamais será dado o destaque devido ao impácto que teve o quinino na apropriação do mundo pelo Ocidente. A generalização do uso da casca de cinchona, seu cultivo nas plantações da Índia e de Java ou sua colheita nas montanhas andinas permitiram um salto na capacidade de aclimatação do homem branco aos trópicos. No mesmo sentido, nunca é demais ressaltar o caráter fora da lei das guerras coloniais conduzidas pelas democracias fora da Europa. No que se refere à África em particular, o impulso colonail coincidiu com uma das primeiras revoluções militares da era industrial. Foi a partir dos anos 1850 que a tecnologia armamentista e a velocidade dos projéteis começaram a transformar a confrontação militar em “um processo verdadeiramente desumano” (Laurent Henninger). Aos canhões, arcabuzes, fortificações abaluartadas e armadas de  guerra dos períodos anteriores vieram se juntar, não necessariamente nesta ordem, a artilharia indireta e de longo alcance, as  armas de tiro rápido no suporte à infantaria, como no caso da  metralhadora, e até mesmo os veículos automotores e os aviões.

Foi também a época em que as democracias se esforçaram em  transferir, mal ou bem, os princípios industriais da produção em  massa para a arte da guerra e colocá-los a serviço da destruição  em massa. Graças aos novos armamentos industriais, alguns dos  quais experimentados no curso da Guerra de Secessão Americana  (1861-1865) e por ocasião do conflito russo-japonês de 1904-1905, a ideia era decuplicar o poderio de fogo com base na aceitação mais ou menos fatalista da morte e da submissão à tecnologia. As conquistas coloniais constituram, dessa perspectiva, um campo privilegiado de experimentação. Deram azo à emergência de um pensamento do poderio e da técnica, que, levado a suas últimas consequências, abriu caminho aos campos de concentração e às ideologias genocidas modernas.

Foi a reboque das conquistas coloniais que se assistiu a uma aceleração do confronto entre o homem e a máquina, premissa da “guerra industrial” e da carnificina que se tornaria emblemá- tica dos anos 1914-1918. Foi também por ocasião das conquistas coloniais que se cultivou a tolerância a perdas humanas elevadas, especialmente em meio às tropas inimigas. Além disso, as guerras de conquista foram, do início ao fim, guerras raciais assimétricas. Ao longo de um século e meio de guerras coloniais, Os exércitos coloniais perderam poucos homens. Os historiadores estimam essas perdas entre 280 000 e 300 000, cifras relativamente ínfimas, se levarmos em conta o fato de que a Guerra da Crimeia, por si só, produziu perto de 250 000 mortos. Durante três das principais “guerras sujas” da descolonização (Indochina, Argélia e Angola e Moçambique), contam-se 75 000 mortes do lado colonial e 850 ooo do lado indígena. A tradição das “guerras sujas” tem suas origens nos conflitos coloniais. Eram marcadas por ataques devastadores contra os núcleos das populações autóctones e por profundas mutações da ecologia patológica nas regiões devastadas.

Conduzidas por regimes que se declaravam de direito, a maioria das guerras coloniais, sobretudo no momento da conquista propriamente dita, não eram guerras de autodefesa. Não eram travadas com o objetivo de recuperar seus bens ou restabelecer algum tipo de justiça que pudesse ter sido ultrajada. De saída, inexistia delito cuja gravidade pudesse ser mensurada. A violência produzida por essas guerras não obedecia a nenhuma regra de proporcionalidade. Não existia praticamente nenhum limite formal à devastação que atingia os entes declarados como inimigos. Inúmeros inocentes eram mortos, a maioria deles não em razão de faltas cometidas, mas em virtude de faltas futuras. A guerra de conquista não era, portanto, uma execução de direito. Se o inimigo era criminalizado, não era com vistas a restaurar qualquer justiça que fosse. Independentemente de portar armas ou não, o inimigo a ser castigado era um inimigo intrínseco, um inimigo por natureza. Em suma, a conquista colonial abria caminho a uma esfera da guerra desregrada, a guerra fora da lei travada pela democracia, que, ao fazê-lo, externalizava a violência contra um lugar regido por convenções e costumes anômalos.

 – Achille Mbembe.

 

1 Comentários

  1. Despois de ler esse artigo, encontro uma dificuldade imensa de enternder por que as esquerdas brasileiras em geral, salvo raríssimas exceções, defendem a democracia burguesa como se fosse, apesar de negarem, “o fim da História”.
    Gostei mutio do artigo, rpovocador!

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