A grande internação – Michel Foucault

A pobreza foi o primeiro alvo formal das casas de internação, uma multiplicidade disforme foi seu habitante de fato: após o esvaziamento dos leprosários, o espaço vazio foi preenchido por uma massa confusa. Um novo gesto organiza uma nova sensibilidade à miséria e à assistência aos pobres, ao mesmo tempo, cria uma espaço que será preenchido pela confusa massa de desatinados, de infelizes percebido sob o signo da loucura durante a Idade Clássica através do nascimento de uma nova razão.

Da série “Os loucos de Foucault“.

Índice

Introdução

A Idade Clássica foi capaz de parir uma figura específica relacionada à loucura: a figura do desatinado. Uma figura multiforme, que é encerrada nas casas de internação quando seu movimento à luz do dia é percebido e denunciado. Diferentemente do insano, do doente propriamente, o desatinado não faz parte do zoológico dos loucos. Sua imagem não é feita para ser exibida, para ser domada e mostrada: não há mérito ao domador, não há aplausos ao domado. O desatino se faz enquanto positividade percebida nas práticas de internação, nos critérios de entendimento do sujeito que merece o internamento, na maneira de conceber e não conceber as atividades dos internos e seu estatuto nas sociedades em que existam.

A figura do desatino é relacionada ao não-ser, portanto, ao conjunto que existe na exclusão do ser. Um campo sem definição positiva, caracterizado por aglomerar inúmeros imorais, malfeitores, criminosos e inadequados.  O ser, entendido, classificado, pedestalizado, entrega ao não-ser um espaço escuro de confinamento.

O internamento é a prática que melhor corresponde a uma loucura sentida como desatino; nele a loucura é reconhecida como sendo nada. Isto significa que de um lado ela é imediatamente sentida como diferença, donde as formas de julgamento espontâneo e objetivo que se pede, não dos médicos, mas dos homens de bom senso, a fim de determinar o internamento de um louco.[1]

Para se compreender o desatinado ou a positividade do desatino, pode-se dar um passo atrás e retomar a emergência da internação na Idade Clássica. O objetivo deste artigo é descrever esta emergência a partir do livro História da Loucura na Idade Clássica de Michel Foucault.


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Não-razão

Antes de entrar propriamente na realidade concreta da internação em sua emergência na Idade Clássica, há de ser feita uma rápida descrição sobre o percurso da loucura segundo René Descartes em suas Meditações. O entendimento sobre a loucura que será apresentado nos parágrafos seguintes a compreendia como um perigo presente, constante e assombroso na vida do indivíduo do século XVI, mas que no século XVII (a publicação das Meditações data de 1641) é colocada “fora do domínio no qual o sujeito detém seus direitos à verdade: domínio este que, para o pensamento clássico, é a própria razão. Doravante, a loucura está exilada”[2].

De início, a dúvida cartesiana acerca da razão e da loucura passa pela negação das certezas, inclusive das supostamente evidentes:

ainda que os sentidos nos enganem algumas vezes no tocante às coisas pouco sensíveis e muito distantes. talvez se encontrem muitas outras, das quais não se pode razoavelmente duvidar, conquanto as conheçamos por meio deles: por exemplo, que estou aqui, sentado perto do fogo, vestido com um roupão, com este papel entre as mãos, e outras coisas dessa natureza. E como é que eu poderia negar que estas mãos e este corpo sejam meus?[3]

A resposta da negação passa pela loucura:

A não ser, talvez, que me compare com aqueles insensatos cujo cérebro é de tal maneira perturbado e ofuscado pelos negros vapores da bílis, que asseguram constantemente que são reis quando paupérrimos, que estão vestidos com ouro e púrpura, quando estão de todo nus, ou imaginam ser cântaros, ou ter um corpo de vidro. Mas quê? São loucos, e eu não seria menos extravagante se me regrasse por seus exemplos.[4]

Os vapores da bílis causam percepções na alma no próprio trajeto da paixão. A paixão acontece na alma, não no corpo. Uma alma perturbada causa mudança material perceptível no órgão que estabelece a ligação entre corpo e alma: o cérebro. Não se trata de uma loucura entre a alma e o corpo: a loucura demonstra a existência da totalidade alma-corpo. No entanto, “são loucos” (amentes, aqueles que são despossuídos de mente ou espírito) e Descartes não seria menos “extravagante” (demens, relacionado à dementia) se os seguisse como exemplo.

A extravagância aparece nos sonhos: Descartes compreende que, nos sonhos, é capaz de representar as mesmas coisas, às vezes menos verossímeis, que os insensatos representariam em vigília. Entretanto, a realidade do sonho e a realidade da vigília são questionáveis: “quantas vezes aconteceu-me sonhar, à noite, que estava neste lugar, que estava vestido, que estava junto ao fogo, embora estivesse todo nu em minha cama?”[5]. Mas há algo real, pois os sonhos são como quadros e pinturas e, assim, são baseados em algo real e verdadeiro, são baseados na realidade do corpo sonhado, na realidade da cidade sonhada, na realidade da coisa que serve como suporte para a representação do sonho. É a possibilidade de questionar a realidade de literalmente tudo que coloca o eu, que penso, no caminho reto à verdade, pois o eterno questionamento é a eterna afirmação da existência do eu pensante. Desta forma, a verdade inicial que dá caminho ao entendimento do mundo é o próprio cogito e sua reafirmação constante. Foucault fecha a análise do trecho:

Não é porque tal coisa, mesmo no pensamento de um louco, não possa ser falsa, mas sim porque eu, que penso, não posso estar louco […] É possível supor que se está sonhando e se identificar-se com o sujeito sonhador a fim de encontrar uma ‘razão qualquer para duvidar’: a verdade aparece ainda, como condição de possibilidade do sonho.[6]

Ou seja, é a confiança no eu que penso que constrói o caminho para o corte radical entre sonho e vigília. Corte que não é radical na percepção, mas na dinâmica entre verdade e falsidade em que a verdade é expressada pela insistência na vigília, enquanto a falsidade (e, assim, a loucura enquanto ausência de espírito) na fé às representações, na ausência da dúvida, na ausência do pensamento. Algo se passou entre os séculos XVI e XVII, de tal forma que a possibilidade de uma Razão irrazoável ou de um desatino razoável foi lacrado por uma nova razão emergente que coloca a realidade da loucura para fora de seu campo. Este novo louco, desatinado, impedido de pensar, vazio de pensamentos, encontrará na internação seu lugar próprio.

A grande internação

A exclusão da loucura de dentro da lógica da razão, indiciado pelas Meditações de Descartes (mas também pelos Ensaios de Montaigne), germina um território de exclusão concreta dos loucos.

É sabido que o século XVII criou vastas casas de internamento; não é muito sabido que mais de um habitante em cada cem da cidade de Paris viu-se fechado numa delas, por alguns meses.[7]

O século XVII criou Hospitais Gerais na França, Workhouses na Inglaterra e Zuchthäusern na Alemanha. Sempre casas em que uma multiplicidade de indivíduos era empilhada, mas sem nenhum estatuto claro de funcionamento, sem declarar claramente seu objetivo em amontoar diferentes indivíduos. “A partir da metade do século XVII, a loucura esteve ligada a essa terra de internamentos, e ao gesto que lhe designava essa terra como seu local natural”[8].

Na França, em ordem cronológica: em 1612, Lyon já era habitada por uma instituição similar à casa de internação; em 1632, o leprosário de Saint-Lazare é transformado em casa de internação; em 1656, decreto de fundação do Hospital Geral na França e fundação da Caridade de Tours (com donativo real); em 1670, fundação da Caridade de Senlis em 1676, édito do Rei prescrevendo a criação de um Hospital Geral por cidade do reino; em 1699, fundação do estabelecimento que mais tarde será conhecido como Hospital de São Pedro; em 1712, a cidade de Armentières recebe seu estabelecimento; em 1714, Maréville; em 1735, Caen; por fim, em 1780, pouco antes da revolução, a abertura de Saint-Meins de Rennes. Até o momento da revolução francesa, 32 cidades tinham o seu estabelecimento próprio para internamento[9].

Na Alemanha, a primeira Zuchthäusern data 1620, em Hamburgo; em 1667, Bâle; em 1668, Breslau; em 1684, Frankfurt; ainda em 1684, Spandau; em 1691, Königsberg; em 1701, Leipzig; em 1717, Halle; em 1720, Cassel; em 1756, Brieg e Onasbrück; por fim em 1771, Torgau[10].

Na Inglaterra, em 1575, um ato da Rainha Elizabeth I prescreve a criação de houses of correction para punir a vagabundagem e aliviar a dor dos pobres. Anos mais tarde, a iniciativa (inicialmente) pública, passa a ser entregue para a iniciativa privada. Qualquer um poderia abrir uma casa de correção. No século XVII, cobra-se multa aos juízes que não tenham preparado uma casa de correção em sua jurisdição. Em 1670, um ato de Charles II define a criação das workhouses; em 1697, Bristol tem sua primeira workhouse; em 1703, em Worcester e Dublin. Sem data explícita, mas ainda no século XVIII, há o nascimento de workhouses em Plymouth, Norwich, Hull, Exeter. Até o fim do mesmo século, contam 126 dessas casas[11].

Essas instituições formalmente descaracterizadas, que não apresentam claramente seus objetivos e sua função, eram aportadas por instituições religiosas e por grupos leigos que imitavam o estilo de vida religioso. Nas províncias francesas, a gestão dessas casas de internação era principalmente burguesa; na Inglaterra, administrada por um Juiz de Paz[12].

Em alguns anos foi toda uma rede que se espalhou pela Europa. Howard, ao final do século XVIII, estabelecerá o projeto de percorrê-la toda; através da Inglaterra, Holanda, Alemanha, França, Itália, Espanha, fará a peregrinação de todos esses lugares de internamento […] e sua filantropia se declarará indignada com o fato de que tenham podido relegar entre os mesmos muros os condenados de direito comum, jovens que perturbavam o descanso de suas famílias (ou que lhes dilapidavam os bens), vagabundos e insanos.[13]

Pela Europa, tais hospícios funcionavam recolhendo os pobres da cidade, portanto, função de assistência. Ao mesmo tempo, função de repressão, na medida em que seus “quartos” são ocupados principalmente por pensionários enviados por ordem do Rei ou da Justiça. Prisioneiros custeados pelo Rei ou por sua própria família.

Muitas vezes essas novas casas de internamento são estabelecidas dentro dos próprios muros dos antigos leprosários; herdam seus bens, seja em decorrência de decisões eclesiásticas, seja por força de decretos reais baixados ao fim do século. Mas também são mantidas pelas finanças públicas: doações do Rei, quotas-partes retiradas das multas que o Tesouro recebe.[14]

Nas casas de internação, os privilégios da Igreja na assistência aos pobres e preocupação burguesa em colocar ordem na miséria se misturavam sob tensão. Moviam-se o “desejo de ajudar e a necessidade de reprimir; o dever da caridade e a vontade de punir”[15]. Uma nova estrutura de exclusão emergia, “o Classicismo inventou o internamento, um pouco como a Idade Média a segregação dos leprosos”[16]. Não mais leprosos, agora internos.

Considerações finais

A pobreza foi o primeiro alvo formal das casas de internação, uma multiplicidade disforme foi seu habitante de fato: após o esvaziamento dos leprosários, o espaço vazio foi preenchido por uma massa confusa, não sem tensões entre os antigos habitantes, que não queriam a aproximação dos loucos. As famílias de criminosos também protestavam contra a mistura. Para ocupar os antigos leprosários

Designou-se todo um povo a nosso ver estranhamente misturado e confuso. Mas aquilo que para nós parece apenas uma sensibilidade indiferenciada, seguramente era, no homem clássico, uma percepção claramente articulada. […] O gesto que, ao traçar o espaço de internamento, conferiu-lhe um poder de segregação e atribuiu à loucura uma nova pátria, por mais coerente e ordenado que seja esse gesto, não é simples.[17]

Este novo gesto organiza uma nova sensibilidade à miséria e à assistência aos pobres, ao mesmo tempo, cria uma espaço que será preenchido pela já dita confusa massa de desatinados, de infelizes percebido sob o signo da loucura durante a Idade Clássica através do nascimento de uma nova razão.

Referências

[1] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 9ª edição, 2012, p. 249.

[2] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 46.

[3] DESCARTES, René. Meditações. 2º ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005 (Clássicos), p. 31.

[4] DESCARTES, René. Meditações… p. 31-32.

[5] DESCARTES, René. Meditações… p. 32-33.

[6] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 47.

[7] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 48.

[8] Idem.

[9] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 51-52.

[10] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 53-54.

[11] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 54.

[12] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 52.

[13] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 55.

[14] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 52-53.

[15] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 53.

[16] Idem.

[17] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 55.

Cite este artigo:

SIQUEIRA, Vinicius. A grande internação – Michel Foucault. Colunas Tortas. Acesso em [DD Mês AAAA]. Disponível em <<https://colunastortas.com.br/a-grande-internacao-michel-foucault/>>.

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