Da série “Os loucos de Foucault“.
Índice
Introdução
Seja enquanto crime, até mesmo enquanto ilusão ou como expressão de um certo tipo de sexualidade, na Idade Clássica, a loucura é percebida como um erro ético, uma recusa ética fundamental. Uma recusa à adequação da vida no caminho de uma razão escolhida, ou seja, uma negação da escolha adequada, portanto, um ato equivocado e intencional em direção ao inadequado.
Há algo importante na definição da recusa ética: o homem clássico não observa a loucura a partir de uma “pura e simples consciência razoável”[1], mas alicerçado em um ato específico de razão. Este ato de razão separa o razoável do irrazoável, mas também cria um campo da desrazão que, em sua existência concreta, se faz como indício da loucura. Ou seja, quando o ato de razão faz emergir um raciocínio desrazoado, reconhece nas práticas da desrazão a propriedade da loucura mas sempre enquanto ato e enquanto escolha. O ato inicial de razão é oposto não a ausência da razão para se concretizar tal ato, mas a um outro ato, desta vez, de desrazão. Enquanto ato, enquanto escolha.
A indiferença a toda forma de distinção rigorosa entre a falta e a loucura indica uma região mais profunda, na consciência clássica, onde a divisão razão-desatino se realiza como uma opção decisiva, na qual está presente a vontade mais essencial e, talvez, mais responsável do indivíduo.[2]
O objetivo deste artigo é expor a percepção da loucura enquanto recusa ética fundamental na Idade Clássica conforme abordado por Michel Foucault no livro História da Loucura na Idade Clássica.
A dúvida
Foucault salienta que o projeto inicial da razão aos poucos delimitou um espaço da loucura baseado numa recusa à verdade, na medida em que o ímpeto do sujeito da razão é a atitude de manter-se desperto: “Existe a eterna tentação do sono e do abandono às quimeras que ameaçam a razão e que são conjuradas pela decisão sempre renovada de abrir os olhos para o verdadeiro”[3].
A partir de uma reflexão racionalista, é possível questionar a própria materialidade, pois a vida vivida poderia ser a percepção errada de um indivíduo imerso em seus sonhos. A vida no sonho geraria até mesmo medo da vida desperta, na medida em que o sonho pode se fazer adequado e razoável. É o ímpeto da verdade baseado em uma camada eterna de dúvida que salvaria a consciência da desrazão.
No percurso da dúvida, é possível desde logo pôr de lado a loucura, pois a dúvida, na própria medida em que é metódica, é envolvida por essa vontade de despertar que, a todo momento, é um desgrudar voluntário das complacências da loucura.[4]
A dúvida metódica insere, sub-repticiamente, a própria condição à racionalidade. Ou seja, se a expressão inadequada revela uma escolha inadequada, fruto de uma vontade substancialmente inadequada, a dúvida sobre a verdade traduz uma escolha pela razão. Este caminho específico coloca a ética como ponto de partida: as leis morais existem, de certa forma, como elementos a serem alcançados, entretanto, este alcance depende de uma vontade adequada, cuja escolha recusa o sonho em proveito da vida desperta.
A ética, como escolha contra o desatino, está presente desde o começo em todo pensamento ordenado, e sua superfície, indefinidamente prolongada ao longo de sua reflexão, indica a trajetória de uma liberdade que é a própria iniciativa da razão.[5]
A liberdade se insere no caminho ético da dúvida. A razão se faz a partir da dúvida constante que não só garante a racionalidade, mas ao mesmo tempo expressa a vontade essencial de conhecer a verdade.
A opção
A razão, assim, nasce num espaço propriamente ético. Independentemente dos elementos ontológicos e epistemológicos que compõem a reflexão acerca da razão na Idade Clássica, seu espaço de atuação é ético. “Toda loucura oculta uma opção, assim como toda razão oculta uma escolha livremente realizada”[6].
A razão, enquanto escolha, é a negação de todo desatino do mundo, ou seja, é a constante afirmação de si num mundo razoável, é o recorrente questionamento acerca da verdade. Sendo assim, repito, o questionamento que enseja a razão é ele próprio a expressão da razão, independentemente do erro possível de se possa cometer através do raciocínio que busca a verdade. O exercício da liberdade acontece no uso pleno da razão. Liberdade não é relacionada, aqui, ao movimento do corpo, mas a um certo esclarecimento nascente.
Na medida em que a escolha é o primeiro passo, os caminhos da razão e da loucura são apostas. A aposta na razão desaparece quando sua escolha está intimamente associada à necessidade da razão: ou se é racional ou se é internado. A loucura, assim, se situa no caminho ainda livre porque não normatizado: o caminho da liberdade é justamente o da desrazão.
A partir daí, a recusa da loucura não será mais uma exclusão ética, mas sim uma distância já concedida; a razão não terá mais de distinguir-se da loucura, mas de reconhecer-se como tendo sido sempre anterior a ela, mesmo que lhe aconteça de alienar-se nela.[7]
Daí a relação de poder explícita entre aquele que detém o conhecimento da razão humana e aquele que é louco. Trata-se quase de uma relação de tutela animal.
Considerações finais
Os internamentos de mulheres apegadas a suas roupas, de padres que não demonstravam caridade, não provam a existência de um pressuposto moral na avaliação da loucura, mas “simplesmente manifesta a divisão ética entre a razão e a loucura”[8]. Ou seja, simplesmente manifesta uma divisão que se encontra antes do estabelecimento racional de leis morais a serem obedecidas: a própria formação discursiva da loucura em seu funcionamento produz a prática de divisão.
Se os internamentos não provam a existência de pressupostos morais no momento de lidar com a loucura, séculos mais tarde uma consciência moral brotará e tornará possível o próprio questionamento sobre o tratamento dos loucos, sobre sua condição nas casas de internamento. Entretanto, no século XIX, mesmo com o nascimento desta consciência moral nova, a medicina ainda não poderia retirar a divisão que fundamenta qualquer razão possível.
O perigo da loucura, para o pensamento clássico, nunca designa o tremor, o pathos humano da razão encarnada, mas remete a essa região da qual o dilaceramento da liberdade deve fazer nascer com a razão o próprio rosto do homem.[8]
Somente no momento em que a razão passa a ter uma relação com a moral (própria do século XIX), e não só com a ética fundamental, se torna possível observar um Philippe Pinel verificar com horror a maneira como os loucos, considerados agora inocentes pela nova consciência moral, eram tratados como culpados por sua loucura pela época Clássica.
Referências
[1] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 9ª edição, 2012, p. 141.
[2] Ibidem.
[3] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 142.
[4] Ibidem.
[5] Ibidem.
[6] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 143.
[7] Ibidem.
[8] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 143-144.
Cite este artigo:
SIQUEIRA, Vinicius. A loucura enquanto recusa ética – Michel Foucault. Colunas Tortas. Acesso em [DD Mês AAAA]. Disponível em <<https://colunastortas.com.br/a-loucura-enquanto-recusa-etica-michel-foucault/>>.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.