Este é o drops nº 17. Inicia-se com a citação de Michel Foucautl sobre a nau dos loucos, presente na História da Loucura na Idade Clássica.
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Nau dos loucos para Michel Foucault
Fato curioso a constatar: é sob a influência do modo de internamento, tal como ele se constituiu no século XVII, que a doença venérea se isolou, numa certa medida, de seu contexto médico e se integrou, ao lado da loucura, num espaço moral de exclusão. De fato, a verdadeira herança da lepra não é aí que deve ser buscada, mas sim num fenômeno bastante complexo, do qual a medicina demorará para se apropriar.
Esse fenômeno é a loucura. Mas será necessário um longo momento de latência, quase dois séculos, para que esse novo espantalho, que sucede à lepra nos medos seculares, suscite como ela reações de divisão, de exclusão, de purificação que no entanto lhe são aparentadas de uma maneira bem evidente. Antes de a loucura ser dominada, por volta da metade do século XVII, antes que se ressuscitem, em seu favor, velhos ritos, ela tinha estado ligada, obstinadamente, a todas as experiências maiores da Renascença.
É esta presença, e algumas de suas figuras essenciais, que é preciso agora recordar de um modo bem rápido.
Comecemos pela mais simples dessas figuras, e também a mais simbólica. Um objeto novo acaba de fazer seu aparecimento na paisagem imaginária da Renascença; e nela, logo ocupará lugar privilegiado: é a Nau dos Loucos, estranho barco que desliza ao longo dos calmos rios da Renânia e dos canais flamengos.
A Narrenschiff é, evidentemente, uma composição literária, emprestada sem dúvida do velho ciclo dos argonautas, recentemente ressuscitado entre os grandes temas míticos e ao lado de Blauwe Schute de Jacob Van Oestvoren em 1413, de Borgonha. A moda é a composição dessas Naus cuja equipagem e heróis imaginários, modelos éticos ou tipos sociais, embarcam para uma grande viagem simbólica que lhes traz, senão a fortuna, pelo menos a figura de seus destinos ou suas verdades. É assim que Symphorien Champier compõe sucessivamente uma Nau dos Príncipes e das Batalhas da Nobreza em 1502, depois uma Nau das Damas Virtuosas em 1503.
Existe também uma Nau da Saúde, ao lado de Blauwe Schute de Jacop van Oestvoren em 1413, da Narrenschiff de Brant (1497) e da obra de Josse Bade: Stultiferae erae naviculae scaphae fatuarum mulierum (1498). O quadro de Bosch, evidentemente, pertence a essa onda onírica.
Mas de todas essas naves romanescas ou satíricas, a Narrenschiff é a única que teve existência real, pois eles existiram, esses barcos que levavam sua carga insana de uma cidade para outra. Os loucos tinham então uma existência facilmente errante. As cidades escorraçavam-nos de seus muros; deixava-se que corressem pelos campos distantes, quando não eram confiados a grupos de mercadores e peregrinos. Esse costume era freqüente particularmente na Alemanha: em Nuremberg, durante a primeira metade do século XV, registrou-se a presença de 62 loucos, 31 dos quais foram escorraçados. Nos cinqüenta anos que se seguiram, têm-se vestígios ainda de 21 partidas obrigatórias, tratando-se aqui apenas de loucos detidos pelas autoridades municipais. Eram freqüentemente confiados a barqueiros: em Frankfurt, em 1399, encarregam-se marinheiros de livrar a cidade de um louco que por ela passeava nu; nos primeiros anos do século XV, um criminoso louco é enviado do mesmo modo a Mayence. Às vezes, os marinheiros deixavam em terra, mais cedo do que haviam prometido, esses passageiros incômodos; prova disso é o ferreiro de Frankfurt que partiu duas vezes e duas vezes voltou, antes de ser reconduzido definitivamente para Kreuznach. Freqüentemente as cidades da Europa viam essas naus de loucos atracar em seus portos.
Não é fácil levantar o sentido exato deste costume. Seria possível pensar que se trata de uma medida geral de expurgo que as municipalidades fazem incidir sobre os loucos em estado de vagabundagem; hipótese que por si só não dá conta dos fatos, pois certos loucos, antes mesmo que se construam casas especiais para eles, são recebidos nos hospitais e tratados como loucos. No HôtelDieu de Paris, seus leitos são colocados em dormitórios; por outro lado, na maior parte das cidades da Europa existiu, ao longo de toda a Idade Média e da Renascença, um lugar de detenção reservado aos insanos: é o caso do Châtelet de Melun ou da famosa Torre dos Loucos de Caen; são as inúmeras Narrtürmer da Alemanha, tal como as portas de Lübeck ou o Jungpfer de Hamburgo28. Portanto, os loucos não são corridos das cidades de modo sistemático. Por conseguinte, é possível supor que são escorraçados apenas os estrangeiros, aceitando cada cidade tomar conta apenas daqueles que são seus cidadãos. Com efeito, é possível encontrar na contabilidade de certas cidades medievais as subvenções destinadas aos loucos, ou donativos feitos em favor dos insanos. Na verdade, o problema não é tão simples assim, pois há pontos de reunião deles onde os loucos, mais numerosos que em outras partes, não são autóctones. Em primeiro lugar, surgem os lugares de peregrinação: em Saint-Mathurin de Larchant, em Saint-Hildvert de Gournay, em Besançon, em Gheel: estas peregrinações eram organizadas e às vezes subvencionadas pelas cidades ou pelos hospitais. E é possível que essas naus de loucos, que assombraram a imaginação de toda a primeira parte da Renascença, tenham sido nau peregrinação, navios altamente simbólicos de insanos em busca da razão: uns desciam os rios da Renânia na direção da Bélgica e de Gheel; outros subiam o Reno até o Jura e Besançon.
Mas há outras cidades, como Nuremberg, que certamente não foram lugar de peregrinação e que acolheram grande número de loucos, bem mais que os que podiam ser fornecidos pela própria cidade. Esses loucos são alojados e mantidos pelo orçamento da cidade, mas não tratados: são pura e simplesmente jogados na prisão. E possível supor que em certas cidades importantes — lugares de passagem e de feiras — os loucos eram levados pelos mercadores e marinheiros em número bem considerável, e que eles eram ali “perdidos”, purificando-se assim de sua presença a cidade de onde eram originários. Pode ser que esses lugares de “contraperegrinação” tenham acabado por se confundir com aqueles pontos para onde, pelo contrário, os insanos eram levados a título de peregrinos. A preocupação de cura e de exclusão juntavam-se numa só: encerravam-nos no espaço sagrado do milagre. É possível que a aldeia de Gheel tenha-se desenvolvido deste modo: lugar de peregrinação que se tornou prisão, terra santa onde a loucura espera sua libertação mas onde o homem realiza, segundo velhos temas, como que uma partilha ritual.
É que esta circulação de loucos, o gesto que os escorraça, sua partida e seu desembarque não encontram todo seu sentido apenas ao nível da utilidade social ou da segurança dos cidadãos. Outras significações mais próximas do rito sem dúvida aí estão presentes; e ainda é possível decifrar alguns de seus vestígios. Assim é que o acesso às igrejas é proibido aos loucos, enquanto o direito eclesiástico não lhes proíbe o uso dos sacramentos. A Igreja não aplica sanções contra um sacerdote que se torna insano; mas em Nuremberg, em 1421, um padre louco é expulso com uma particular solenidade, como se a impureza se acentuasse pelo caráter sacro da personagem, e a cidade retira de seu orçamento o dinheiro que devia servir-lhe de viático. Acontecia de alguns loucos serem chicoteados publicamente, e que no decorrer de uma espécie de jogo eles fossem a seguir perseguidos numa corrida simulada e escorraçados da cidade a bastonadas. Outro dos signos de que a partida dos loucos se inscrevia entre os exílios rituais.
Compreende-se melhor agora a curiosa sobrecarga que afeta a navegação dos loucos e que lhe dá sem dúvida seu prestígio. Por um lado, não se deve reduzir a parte de uma eficácia prática incontestável: confiar o louco aos marinheiros é com certeza evitar que ele ficasse vagando indefinidamente entre os muros da cidade, é ter a certeza de que ele irá para longe, é torná-lo prisioneiro de sua própria partida. Mas a isso a água acrescenta a massa obscura de seus próprios valores: ela leva embora, mas faz mais que isso, ela purifica. Além do mais, a navegação entrega o homem à incerteza da sorte: nela, cada um é confiado a seu próprio destino, todo embarque é, potencialmente, o último. É para o outro mundo que parte o louco em sua barca louca; é do outro mundo que ele chega quando desembarca. Esta navegação do louco é simultaneamente a divisão rigorosa e a Passagem absoluta. Num certo sentido, ela não faz mais que desenvolver, ao longo de uma geografia semi-real, semi-imaginária, a situação liminar do louco no horizonte das preocupações do homem medieval — situação simbólica e realizada ao mesmo tempo pelo privilégio que se dá ao louco de ser fechado às portas da cidade: sua exclusão deve encerrá-lo; se ele não pode e não deve ter outra prisão que o próprio limiar, seguram-no no lugar de passagem. Ele é colocado no interior do exterior, e inversamente. Postura altamente simbólica e que permanecerá sem dúvida a sua até nossos dias, se admitirmos que aquilo que outrora foi fortaleza visível da ordem tornou-se agora castelo de nossa consciência (FOUCAULT, 1978, pp. 12-16).
Comentários sobre a Nau dos loucos
A nau dos loucos, como pode ser lido na citação acima, não pode ser entendida somente a partir de um olhar sociológico que conduz a análise para a exclusão dos loucos. Trata-se, mais do que uma exclusão, de uma forma de purificação. O louco é inerido na nau para ser tranformado pelas águas que, por sua vez, são figura importante no pensamento dos fins da Idade Média.
Para Michel Foucault, a experiência trágica da loucura que incorpora a nau insere a figura do louco como aquele que, mesmo tendo a possibilidade de falar a verdade, acima de tudo exibe de maneira crua a possibilidade da loucura que afeta qualquer ser humano. Qualquer sujeito pode deixar de ser são e se tornar louco. Não há, então, uma responsabilidade do sujeito em sua loucura como visto no Renascimento e na Idade Clássica, o louco não é aquele que recusa a ética. O louco é quase uma vítima da natureza humana, que tragicamente leva o sujeito à loucura. É necessário, então, entender que o louco, apesar de ainda ter a possibilidade de dizer a verdade, era um ser errante:
A presença dos loucos pelas cidades era pautada pela errância, sendo constantemente escorraçados, mandados para além dos muros das cidades, onde podiam perambular pelos campos […] O louco embarcadiço encontra-se num espaço fechado (o barco), mas lançado ao infinito (o mar, o tempo) (MELO, 2011, pp. 79-80).
Apesar de ter um convívio social aceito, apesar da Idade Média entregar certo horizonte social ao louco, ele se encontra num lugar de passagem, pois não é aceito nas igrejas, mas não é completamente rejeitado, salvo conduta furiosa. A alegoria da Nau dos Loucos não foi somente uma figura imaginada para converter certo processo discursivo sobre o louco enquanto figura imagética, foi também um processo concreto de exclusão, de passagem e de purificação pelas águas. A nau
em seus percursos pelos rios da Renânia e pelos canais flamengos, aprisionam o louco no lugar de passagem, de partida sem chegada; na imersão do louco em lagos tempestuosos, até o limite do afogamento, que provocaria, entre o risco da morte e o renascimento, a vitória da razão sobre a loucura; nas incontáveis horas de banho e na violência das duchas, que, no interior do asilo, iam da purificação à confissão, da terapêutica à punição; nas idas e vindas do louco entre as cercanias dos muros (LIMA, 2023, p. 434).
Os tratamentos posteriores que envolveriam uma terapia das águas destinada aos loucos tem relação direta com a figura das águas no imaginário da Idade Média. A Idade Clássica vai ter, neste enunciado das águas, o a priori histórico para conceber a terapia do afogamento como possibilidade de conversão do louco em são.
A condição de possibilidade das águas possibilitou a emergência de uma moral clássica que capturou a loucura e a inseriu numa rede de julgamentos intensa o bastante para gerar a grande internação. Os asilos utilizavam a água como terapia de escoamento da mentira, purificação do louco pela permanência da verdade após o derramamento da águas como forma de expulsar as mazelas da loucura. A água se torna elemento de produção de uma verdade sobre a loucura que não a insere mais num espaço intermediário, mas a encerra num espaço de exclusão que, mais tarde, será entendido como o espaço da doença mental.
Mas a loucura, mesmo internada, ainda resta, ainda existe, ainda persiste. A loucura, enquanto elemento tão fluido quanto as águas, escapa do domínio da razão. Desta forma, não é a razão que define a loucura, mas é a história da loucura que demonstra a razão.
Referências
FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 1ª edição, 1978.
LIMA, D. A relação entre a água e a loucura em Histoire de la folie. Kriterion: Revista de Filosofia, v. 64, n. 155, p. 417–435, ago. 2023.
MELO, W. Da nau dos insensatos ao círculo antropológico: a obra de arte em história da loucura de Michel Foucault. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental, ISSN 1984-2147, Florianópolis, V. 3, n. 6, p. 65-88, 2011.
Publicado em 2022. Atualizado pela última vez na data marcada no início do artigo.
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