A normação e a normalização – Michel Foucault

Entende-se que o biopoder cria normas através de um processo inverso ao do poder disciplinar: a norma não é uma medida ideal, quase uma meta e que estabelece uma normação; ela é de fato o normal estatístico, frequente, recorrente, que pode ser medido e comparado, que gera a normalização. Assim, tem-se um tipo de poder que consegue lidar com a norma como caminho para se chegar ao normal estatístico, mas não tem preocupação em garantir solução plena para seus problemas. Alcançar o normal é a estratégia inicial, que se desdobra para todas as segmentações possíveis.

Da série “Biopoder“.

Índice

Introdução

O problema que procuro identificar é mostrar como, a partir e abaixo, nas margens e talvez até mesmo na contramão de um sistema da lei se desenvolvem técnicas de normalização.[1]

Se, no poder disciplinar, a criação da norma nasce de um imperativo do ideal, da máxima eficiência, da necessidade de otimizar as maneiras de utilizar um corpo e torná-lo, por sua vez, dócil, utilizável. No biopoder, o sentido é inverso, pois o ideal passa a ser atravessado pela ascensão das ciências biológicas e da matemática como protagonistas neste movimento na segunda metade do século XVIII.


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Para Michel Foucault, disciplina normaliza, mas isso não é simples. Ela

analisa, decompõe, decompõe os indivíduos, os lugares, os tempos, os gestos, os atos, as operações. Ela os decompõe em elementos que são suficientes para percebê-los, de um lado, e modificá-los, de outro. Em segundo lugar, a disciplina classifica os elementos assim identificados em função de objetivos determinados. Quais são os melhores gestos a fazer para obter determinado resultado?[2]

Desta forma, a disciplina, ao decompor, compreende as possibilidades técnico-mecânicas, entende cada detalhe possível na articulação entre elementos, classifica cada elemento segundo sua função num planejamento de otimização do corpo, do movimento, em busca da rapidez, da excelência, da máxima utilidade. O primeiro movimento, de decomposição, de entendimento, um movimento quase reflexivo, faz parte do recolhimento daquilo que poderá ser reordenado. Tem-se, então, no entendimento do operário na fábrica, a separação de cada membro que utiliza para realizar seus movimentos, tem-se também o caminho que seus gestos produzem em movimentação, em adição, a força utilizada não deve ficar fora dessa análise primária.

Após esta separação, este esmiuçamento do corpo e dos gestos, a classificação ordena cada gesto analisado, cada força utilizada, cada membro engajado, sempre visando sua posterior utilidade. Este processo está no nascimento da norma gerada pelo poder disciplinar. Uma norma que busca o normal da excelência, que busca o ideal, na medida em que decompõe para observar, entender e concluir em um movimento ideal de máxima eficiência.

Em terceiro lugar, a disciplina estabelece as seqüências (sic) ou as coordenações ótimas: como encadear os gestos uns aos outros, como dividir os soldados por manobra, como distribuir as crianças escolarizadas em hierarquias e dentro de classificações? Em quarto lugar, a disciplina estabelece os procedimentos de adestramento progressivo e de controle permanente e, enfim, a partir daí, estabelece a demarcação entre os que serão considerados inaptos, incapazes e os outros. Ou seja, é a partir daí que se faz a demarcação entre o normal e o anormal.[3]

As articulações são feitas, testadas e observadas, cada procedimento de máxima eficiência é construído e aplicado, por fim, para estabelecer a linha de corte para aqueles que conseguem se adequar ao nível ideal da norma criada em oposição àqueles que ainda deverão se submeter aos mesmos mecanismos disciplinares, às mesmas relações disciplinares, de modo que se consiga adequar à expectativa do poder.

O que é fundamental e primeiro na normalização disciplinar não é o normal e o anormal, é a norma. Dito de outro modo, há um caráter primitivamente prescritivo da norma, e é em relação a essa norma estabelecida que a determinação e a identificação do normal e do anormal se tornam possíveis. Essa característica primeira da norma em relação ao normal, o fato de que a normalização disciplinar vá da norma à demarcação final do normal e do anormal, é por causa disso que eu preferiria dizer, a propósito do que acontece nas técnicas disciplinares, que se trata muito mais de uma normação do que de uma normalização.[4]

A disciplina trabalha com a normação, a criação de normas ideais aplicadas ao real e que, no resultado de sua aplicação, estabelece o corte entre o normal e o anormal.

“Norma e normalização em Foucault”. Veja aqui:

Normalização no biopoder

O biopoder trabalha com a previsibilidade: a vacinação e inoculação do vírus da varíola possibilitaram o entendimento estatístico e global dos efeitos do vírus na sociedade, das taxas de vacinação e de mortalidade para cada segmento: desde crianças, recém-nascidos, até idosos. O problema geral da varíola, além de todas as crises endêmicas que aconteceram ao longo dos dois séculos anteriores ao século XX, coloca em jogo a aplicação de uma política relativamente barata, que pode ser aplicada em toda população e monitorada pelos agentes de saúde pública. Que pode, também, combinar fenômenos individuais numa análise de método quantitativo, racional com foco no identificável, e separar cada tipo de caso para o acontecimento observado.

Aparecimento, por conseguinte, dessa noção de caso, que não é o caso individual, mas que é uma maneira de individualizar o fenômeno coletivo da doença, ou de coletivizar, mas no modo da quantificação, do racional e do identificável, de coletivizar os fenômenos, de integrar no interior de um campo coletivo os fenômenos individuais. Portanto, noção de caso.[5]

O entendimento da doença como mal implacável passa a ser substituída pela noção estatística de casos de sucesso e insucesso na aplicação da vacina e, se tal divisão é possível, então a separação de cada pedaço da sociedade, cada segmento, com suas taxas de sucesso e insucesso se torna possível, ampliando a eficiência de controle do biopoder através de ferramentas estatísticas.

Se alguém pegar varíola, será possível determinar qual o risco de morrer dessa varíola conforme a faixa etária, se for moço, velho, se pertencer a determinado meio, se tiver determinada profissão, etc. Será possível estabelecer também, se alguém for variolizado, qual o risco de que essa vacinação ou essa variolização provoque a doença e qual o risco de, apesar dessa variolização, pegá-la mais tarde. Noção portanto totalmente central, que é a noção de risco.[6]

Mas o risco mostra, assim, que nem todos os indivíduos estão submetidos ao mesmo perigo perante a doença. É possível identificar o elemento do perigo, para qual grupo segmentado há perigo no contágio, para qual grupo segmentado há garantia de sucesso da vacinação, se o maior perigo está com o morador do campo ou da cidade, do cento ou da periferia, etc. “Logo, terceira noção importante, depois do caso e do risco, a noção de perigo”[7].

Com este recolhimento de dados e tratamento estatístico, emerge a possibilidade de descobrir a taxa “normal” de mortalidade para cada segmento observado no corpo social. Nasce uma normalização. Uma curva do normal que nasce dos dados globais e várias curvas do normal para cada segmento.

Temos portanto aqui uma coisa que parte do normal e que se serve de certas distribuições consideradas, digamos assim, mais normais que as outras, mais favoráveis em todo caso que as outras. São essas distribuições que vão servir de norma. A norma está em jogo no interior das normalidades diferenciais. O normal é que é primeiro e a norma se deduz dele, ou é a partir desse estudo das normalidades que a norma se fixa e desempenha seu papel operatório. Logo, eu diria que não se trata mais de uma normação, mas sim, no sentido estrito, de uma normalização.[8]

O caminho da reflexão através dos dados recolhidos pelos procedimento de escrita disciplinar, mas de raciocínio propriamente biopolítico também, deu chance para a fabricação de normas adequadas às médias globais e particulares. A norma é resultado da análise das recorrências, não da simples análise do eficiente. Não se busca acabar com os contágios de varíola, mas, pelo menos primeiramente, diminuir as taxas que estão acima do normal global.

Considerações finais

Entende-se que o biopoder cria normas através de um processo inverso ao do poder disciplinar: a norma não é uma medida ideal, quase uma meta, ela é de fato o normal, frequente, recorrente, que pode ser medido e comparado estatisticamente.

Assim, tem-se um tipo de poder que consegue lidar com a norma como caminho para se chegar ao normal estatístico, mas não tem preocupação em garantir solução plena para seus problemas. Alcançar o normal é a estratégia inicial, que se desenrola para todas as segmentações possíveis.

Este tipo específico de poder coloca, para Foucault, o questionamento sobre a estabilidade da noção de sociedade disciplinar. O biopoder atua em conjunto dos mecanismos disciplinares, mas surge a hipótese de uma sociedade de segurança.


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Referências

[1] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População: curso dado no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, 1999, p.74.

[2] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p.74-75.

[3] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p.75.

[4] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p.75-76. Negritos nossos.

[5] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p.79. Negritos nossos.

[6] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p.80. Negritos nossos.

[7] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p.80.

[8] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p.83. Negritos nossos.

Cite este artigo:

SIQUEIRA, Vinicius. A normação e a normalização no biopoder – Michel Foucault. Colunas Tortas. Acesso em [DD Mês AAAA]. Disponível em <<https://colunastortas.com.br/a-normacao-e-a-normalizacao-no-biopoder-michel-foucault/>>.

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