Da série “Fascismo”.
A participação das organizações fascistas dentro dos conflitos entre empresários e trabalhadores, portanto sua infiltração no movimento operário e influência na subjetivação dos trabalhadores tem origem histórica nos Estados Unidos da América, afirma João Bernardo Maia Viegas Soares, ensaísta português, em Labirintos do fascismo: na encruzilhada da ordem e da revolta[1].
Segundo João Bernardo, é possível ver o nascimento desta participação em Allan Pinkerton, escocês e ex-policial que em 1850 fundou a Pinkerton National Detective Agency, agência com detetives especializados em trabalhos dentro de empresas. Num dado momento, o grupo de profissionais destinados ao trabalho de guarda-noturno passou a ter ação na contra-ofensiva às agitações e greves dos movimentos de trabalhadores. Mudou sua postura, assim, ao iniciar um trabalho de proteção aos fura-greves e de ataque aos grevistas.
No entanto, a facilidade em adquirir armas, ponto histórico dos Estados Unidos da América, facilitou a defesa dos trabalhadores, que passaram a combater os homens de Pinkerton em suas ações, o que gerou confrontos brutais entre operários e mercenários armados. Em vez de abafarem a violência, os homens contratados para fazer a vez de tropa de choque dos patrões amplificaram a agressividade dos confrontos laborais e o assunto foi levado ao Congresso em 1892 e depois somente em 1915.
Nem as sucessivas comissões de inquérito nem as iniciativas legislativas contestaram, porém, o direito dos patrões de defender a propriedade privada mediante o recurso a empresas dedicadas à actividade anti-sindical.[2]
No entanto, na passagem do século XIX ao século XX, as firmas de mercenários se multiplicaram e aumentaram o escopo de suas atividades, passando a angariar autonomamente fura-greves e “a transportá-los sob enquadramento militar”[3]:
Foi este o passo decisivo que converteu os corpos de mercenários em verdadeiras organizações operárias anti-sindicais, e em várias ocasiões houve firmas que mobilizaram milhares de fura-greves. Ora, como estas firmas empregavam frequentemente gangsters, à medida que o banditismo se foi organizando e concentrando, foram-se também ampliando e tornando mais sistemáticos os serviços que os gangsters puderam prestar aos chefes de empresa.[4]
O campo de atividades dos mercenários antissindicais aumentou consideravelmente e os trabalhos em espionagem e provocação, com recolhimento de informações acerca das opiniões e planejamento dos trabalhadores, assim como com a disseminação de boatos e calúnias, tomaram importância primária em suas obrigações.
Com a entrada dos EUA na Primeira Guerra Mundial, a espionagem no interior das fábricas passou a ser tarefa oficializada através das ações do procurador-geral em instalar uma rede de agentes secretos na indústria, visando controlar os esforços de guerra em grandes empresas e num leque de pequenas corporações.
Além de vigiarem os operários de origem alemã ou provenientes do Império Austro-Húngaro e de detectarem as simpatias que pudessem manifestar pelas Potências Centrais, aqueles agentes identificavam os trabalhadores mais combativos, os socialistas, os sindicalistas radicais e os anarquistas, e para isto contavam oficialmente com o auxílio de um serviço secreto privado, a American Protective League, além de outras polícias particulares.[5]
Mesmo após os trabalhos de tais firmas de mercenários antissindicais serem dispensados, muitas empresas continuaram a utilizar destes serviços em suas atividades cotidianas e as agências de detetives passaram a conter, além de espiões secretos e provocadores, ótimos atiradores, guardas e contramestres em suas fileiras e a ajuda de militantes sindicais corruptos.
Estas empresas também foram responsáveis, no New Deal, em construir junto aos patrões, sindicatos inteiramente domesticados ao seu olhar vigilante.
Até aqui, entende-se que, como contra-ofensiva aos atos grevistas de movimentos trabalhadores, os capitalistas organizados passaram a utilizar agências de espionagem (antros de mercenários antissindicais) para restabelecer a ordem em suas empresas. As agências de segurança deixaram de atuar com a disposição de um corpo de guardas-noturnos e iniciaram uma trajetória de inteligência na coleta de informações entre os trabalhadores através de espiões disfarçados e proteção de fura-greves através do armamento financiados pelos compradores de seus serviços.
Completou-se assim nos Estados Unidos a relação das milícias de pistoleiros com o sindicalismo de inspiração patronal. Na década de 1930 existiam nesse país mais de duzentas agências especializadas em espionagem no interior das empresas, com 40.000 a 50.000 funcionários, dedicando-se a uma actividade que passara a ser normalmente aceite como parte integrante da disciplina fabril.[6]
Os gastos com espionagem fabril alcançaram números expressivos:
Segundo um membro do departamento federal encarregado de administrar as relações de trabalho, nos meados da década de 1930 as empresas industriais norte-americanas gastavam mais de oitenta milhões de dólares por ano para espiar os seus operários.[7]
O exemplo de Henry Ford cabe nesta situação: ele organizou um
policiamento privado com uma dimensão sem precedentes, recorrendo a alguns elementos oriundos dos serviços secretos do seu país e alistando também russos emigrados, ex-oficiais ou antigos membros da polícia política do czarismo, que durante a guerra civil haviam combatido os bolchevistas.[8]
Foi também responsável pela articulação com numerosas personalidades anticomunistas, o que lhe dava cada vez mais informações para continuar sua propaganda no The Dearborn Independent, jornal que era proprietário, contra o suposto perigo vermelho que estaria em ascensão nos movimentos trabalhistas. É possível entender o uso de Henry Ford de sua posição enquanto capitalista também na gestão de seu jornal, um aparelho ideológico estatal mesmo em propriedade de um agente privado.
Considerações finais
Até agora, os desenvolvimentos de João Bernardo mostram o nascimento da ligação entre milícias patronais e o sindicalismo, base importante do fascismo, no interior dos EUA, dito modelo de democracia representativa e distante histórica e geograficamente de Itália e Alemanha, dois polos de dominação onde o fascismo encontrou o poder governamental como destino.
Entretanto, mais que uma origem histórica determinada e determinante aos movimentos fascistas, o que João Bernardo propõe pode ser lido como o nascimento do modelo de articulação entre os capitalistas organizados dentro do movimento operário. Isso dentro de um contexto de resistência trabalhista através de greves e fraca incorporação ideológica dos capitalistas dentro dos movimentos fabris. O fascismo e o liberalismo se unem justamente neste contexto específico, quando há falta de agudez social nas diretrizes políticas liberais e crise ideológica no movimento operário.
O crescimento de uma agência de espionagem aos trabalhadores e sua crescente profissionalização, incorporação de técnicas e tecnologias modernas, mostra a ofensiva estratégica proposta pelos patrões quando se viram em face de um progressivo aumento da importância comunista nas organizações trabalhadoras.
Ao mesmo tempo, este foi o princípio das articulações entre o movimento fascista e os sindicatos sociais-democratas, aliados estratégicos do fascismo quando o movimento operário se viu em crise nos países da Europa. A aproximação fascista através das táticas utilizadas na passagem do século foi essencial para o posterior apoio político de organizações de esquerda que, buscando distância das opções liberais, se viram em uma situação de apoio aos emergentes grupos fascistas, como na Hungria em 1939, sob a influência de Miklós Horthy, e na Espanha da década de 20, sob o governo de Primo de Rivera[9].
Referências
[1] BERNARDO, João. Labirintos do Fascismo: Na encruzilhada da ordem e da revolta. Segunda versão remodelada e ampliada, 2015. Primeira edição: Porto. Edições Afrontamento: 2003.
[2] BERNARDO, João. Labirintos do Fascismo: Na encruzilhada da ordem e da revolta… p. 56.
[3] BERNARDO, João. Labirintos do Fascismo: Na encruzilhada da ordem e da revolta… p. 56.
[4] BERNARDO, João. Labirintos do Fascismo: Na encruzilhada da ordem e da revolta… p. 57.
[5] BERNARDO, João. Labirintos do Fascismo: Na encruzilhada da ordem e da revolta… p. 57.
[6] BERNARDO, João. Labirintos do Fascismo: Na encruzilhada da ordem e da revolta… p. 58.
[7] BERNARDO, João. Labirintos do Fascismo: Na encruzilhada da ordem e da revolta… p. 58.
[8] BERNARDO, João. Labirintos do Fascismo: Na encruzilhada da ordem e da revolta… p. 62.
[9] BERNARDO, João. Labirintos do Fascismo: Na encruzilhada da ordem e da revolta… p. 62.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.