A sociedade é do consumo, mas as classes sociais não podem consumir

A sociedade do consumo se realiza, no Brasil, a partir da impossibilidade de realização do ato do consumo pela maior parte da população brasileira. Na medida em que a maior parte do assalariado brasileiro está sujeito à satisfação de necessidades básicas, mas imerso no mundo da publicidade, o consumo tende a ser um desejo e formatar uma sociabilidade que, no limite, não permite acesso pleno ao seu próprio núcleo.

Zygmunt Bauman: biografia
Zygmunt Bauman, sociólogo polonês.

Um dos entendimentos contemporâneos sobre as sociedades ocidentais e ocidentalizadas trata da operacionalização do consumo como uma dinâmica social de produção de status e organização social, ou seja, a dinâmica da mercantilização da vida faz parte dos processos de subjetivação dos sujeitos contemporâneos e, ao mesmo tempo, os distribui nos diferentes espaços geográficos integrados ao espaço social.

Por exemplo: morar em Alphaville, na região metropolitana de São Paulo, é também uma forma de consumo que gera certa distinção diretamente relacionada ao poder aquisitivo, mas também à escolha. Na sociedade do consumo, segundo Zygmunt Bauman, sujeitos são compelidos a escolher e a partir de suas escolhas podem ser classificados como vanguardistas de seu tempo ou atrasados. A escolha, numa perspectiva prática, ou seja, a prática social da escolha, é a prática que insere sujeitos na sociedade de consumo. Ao mesmo tempo, a impossibilidade da escolha é aquilo que os exclui.


Curso online: sociedade do consumo

Concretamente, o que é a escolha numa sociedade capitalista? Para além de uma discussão filosófica sobre os atributos essenciais ou substanciais do ser humano, para além de uma concepção humanista ou existencial do sujeito, a escolha é uma prática que gera reconhecimento. Trata-se de uma prática que aparece e, na medida em que aparece, pode ser vista.

A prática social da escolha não se recolhe na consciência, não termina em seu uso, não se localiza num campo abstrato. Enquanto prática concreta, a escolha se localiza justamente enquanto escolha de consumo. Somos fadados a escolher, entretanto, ao contrário da máxima sartreana, não somos condenados à liberdade.

A própria prática da escolha revela um condicionamento materialmente observável: as escolhas acontecem sob condições determinadas e são reconhecidas enquanto tal sob estas mesmas condições. Escolher se torna, então, sinônimo de consumir.

O problema começa a se delinear a partir de um dado objetivo específico: 90% da população brasileira recebe até R$ 3.500,00. Neste orçamento, é necessário encaixar o pagamento do aluguel, em média R$ 47,47/m² no país (uma casa de 40 metros quadrados, portanto, tem aluguel em média de R$ 1898,80); da alimentação, cerca de R$ 658,23; além de contas de água, luz, transporte, etc. Ou seja, é possível deduzir que, em média, quase 80% do orçamento média do brasileiro é comprometido com contas fundamentais. Aqui, evidentemente, não coloco nuances relacionadas aos lares com dois trabalhadores, filhos, gastos adicionais com educação, saúde, etc. De qualquer forma, a possibilidade do consumo tende a ser limitada.

Mas de qual consumo? O consumo relevante numa sociedade do consumo é justamente aquele que pode ser destacado. O novo iPhone, a nova máquina de sorvete que é tendência nas redes sociais, o novo carro, a nova roupa, a nova marca de roupa, etc. Estes itens de consumo preenchem as publicidades em ônibus, trens, banners nas avenidas, shoppings centers, intervalos comerciais da televisão aberta ou anúncios em redes sociais e sites. O que tais publiciades geram? Ela não se limitam a publicizar as mercadorias, mas geram um desejo. Este desejo, evidentemente, pode ser do consumo ou do desprezo, mas, ainda assim, há um afeto envolvido na interpelação constante pela publicidade.

Sendo direto: o sujeito exposto à publicidade e condicionado ao desejo do consumo não necessariamente será ativo na escolha do objeto de consumo. Parte da população brasileira que recebe até um salário mínimo será exposta ao iPhone, mesmo que nunca possa comprá-lo. A dinâmica social da criação do desejo fundamenta a organização social a partir do consumo, de tal maneira que mesmo aqueles que não consomem, estão inseridos nesta sociedade pois praticam o ato do reconhecimento.

Não são importantes para consumir, mas para reconhecer o valor do consumo e daqueles que podem, de fato, consumir. O excluído da sociedade do consumo é parte integrante de sua realidade, na medida em que a exclusão pressupõe um estabelecimento do espaço de inclusão: como Agamben já aponta em seus estudos sobre o homo sacer, a sua exclusão está diretamente ligada ao status político perdido mediante uma condenação jurídica, ou seja, o homo sacer é excluído da vida juridico-política, mas ainda está ligado a ela justamente por sua exclusão. Não há um retorno à vida fora dos muros da cidade: se é excluído enquanto participante da ordem social que exclui.

Essa dupla relação mostra uma face singular da forma como a sociedade do consumo se realiza no Brasil. A dificuldade de situar um país em desenvolvimento no miolo da dinâmica do consumo não está exatamente em sua ausência, mas no fato de que ela funciona pela exclusão.

O funcionamento da sociedade de consumo acontece justamente a partir da impossibilidade da satisfação básica das necessidades através do consumo, o que torna a participação plena nesta sociedade como o próprio fator distintivo numa sociedade aclimatada com a pobreza.

Posso utilizar um exemplo ilustrativo: o limite do consumo do pobre no Brasil são os alimentos ultraprocessados e a conquista, a partir dos anos 2000, da possibilidade de se ter uma televisão, microondas e geladeira em casa. Além, é claro, do celular. Todos, sem exceção, itens básicos de um cidadão contemporâneo. Todos relacionados a um conforto básico no lar, a uma necessidade básica relacionada à alimentação e a uma necessidade fundamental relacionada à comunicação.

Desta forma, o paradigma da sociedade do consumo no Brasil não seria uma suposta vida dedicada às compras, mas uma vida dedicada a um desejo que nunca irá se realizar. Evidentemente, para a maior parte da população, enquanto a menor parte realmente pode se estabilizar na sociedade do consumo através de suas compras e da mercantilização de um estilo de vida de ostentação pelas redes sociais.

Curso online: sociedade do consumo

Referências

AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.

BAUMAN, Z. Vida para consumo, a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 2008. Edição em ePub.

1 Comentários

Deixe sua provocação! Comente aqui!