Saber e poder: a visão orientalista sobre a Palestina. Canal do Colunas Tortas, 2023. Disponível em <<https://youtube.com/live/NpMOczCVtTY>>. Acesso em 19 de outubro de 2023.
Edward Said escreveu um livro chamado Orientalismo que é uma arqueologia do olhar ocidental sobre o oriente. Seu objetivo não foi falar sobre o oriente, mas sim sobre o que liga o olhar ocidental sobre o Oriente. Isso, baseado numa pesquisa arqueológica, uma análise do discurso foucaultiana, adaptada ao objeto, utilizando como base textos da literatura que formaram o imaginário ocidental sobre o Oriente. Um oriente que é feito de bárbaros, de mulheres lascivas, que é feito de pessoas que precisam da ajuda do Ocidente para se civilizar, que é governado de maneira autoritária, que é composta por certa surrealidade política atravessada pela barbárie e ausente no processo civilizatório.
O objetivo deste vídeo é denunciar a maneira como o Ocidente entende que os povos orientais precisam, de alguma maneira, explicarem-se. Utilizarei como base um comentário político feito na Jovem Pan acerca dos presentes ataques de Israel à hospitais na Palestina. É interessa a visão, presente fora do vídeo, de que Israel parece ser Ocidental. A formação do Estado de Israel passa por uma ocidentalização – geograficamente não é -, tudo se passa como se fosse um Estado ocidental, respeitado por Estados-nação europeus e pelos Estados Unidos. Nisso, tudo se passa como se o conflito com a palestina fosse um conflito entre Ocidente e Oriente, como se a Cisjordânia e a Faixa de Gaza fossem territórios orientais intrusos no seio de um território ocidental.
Aqui, o vídeo que utilizarei como base:
Inicialmente, no comentário de Roberto Motta, o conflito é delimitado entre o Hamas, um grupo considerado terrorista por alguns Estados ocidentais, contra Israel, um Estado-nação considerado legítimo. A palestina não é considerada um território que tem um povo, o povo palestino, que sob opressão sionista, viu no Hamas uma possibilidade de resistência por suas vidas num contexto de opressão, de extrema subserviência. O comentaristas insere uma oposição entre Israel e Hamas, um Estado-nação e um grupo específico.
Segundo o comentarista, os ataques aos hospitais na Palestina foram perpetrados por um grupo aliado do Hamas. Um auto ataque fruto de uma falha técnica e tecnológica, novamente, trazendo o arquivo orientalista para emergir a barbárie oriental. A explicação de Israel, que coloca a culpa num grupo de resistência palestino, parece ser mais razoável que a explicação óbvia, que Israel, num contexto de guerra, disparou misseis em hospitais palestinos.
Por fim, termina o vídeo com a seguinte frase: “entre uma explicação sem provas dada por um grupo terrorista e uma explicação com provas dada por um Estado democrático e soberano, não é difícil escolher em quem acreditar”.
Três elementos:
- A Palestina não resiste. Um grupo terrorista toma lugar nos ataques à Israel, mas o povo palestino não é ator político;
- O Hamas, grupo terrorista oriental, pertence à barbárie, não sabe manipular elementos técnicos e tecnológicos de guerra;
- É necessário que o elemento oriental se explique, inclusive quando o ataque é sobre seu próprio território.
É necessário que o povo atingido consiga explicar que o míssil que atingiu seu próprio território não foi enviado de seu próprio território por seu próprio grupo de resistência. O povo oriental, no contexto de guerra, precisa se provar como inocente ao receber um ataque. Precisa provar que o ataque não foi feito por si contra si, devido sua suposta barbárie. No limite do absurdo, é necessário que o povo do oriente comprove que o ataque que recebeu veio de seu oponente de guerra, que o oprime há mais de cinquenta anos.
Por isso, entendo que é necessário trazer dois conceitos foucaultianos. O primeiro é acerca do ritual da verdade, da materialidade da expressão que causa efeitos de verdade. Cito Michel Foucault, no curso Do Governo dos Vivos:
eu não diria simplesmente que o exercício do poder supõe, nos que [governam] algo como um conhecimento, um conhecimento útil e utilizável. Diria que o exercício do poder se faz acompanhar com bastante constância de uma manifestação de verdade entendida nesse sentido bem lato.
É necessário, assim uma certa performatividade da verdade, uma maneira de fazer a verdade se expressar no ato.
Isso para dizer, de uma maneira bárbara e áspera, que o que se chama de conhecimento, isto é, a produção de verdadeiro na consciência dos indivíduos por procedimentos lógico-experimentais, não é mais que, no fim das contas, uma das formas possíveis de aleturgia. A ciência, o conhecimento objetivo, não é mais que um dos casos possíveis de todas essas formas pelas quais podemos manifestar o verdadeiro.
E o que seria a aleturgia?
poderíamos chamar de “aleturgia” o conjunto dos procedimentos possíveis, verbais ou não, pelos quais se revela o que é dado como verdadeiro em oposição ao falso, ao oculto, ao indizível, ao imprevisível, ao esquecimento, e dizer que não há exercício do poder sem algo como uma aleturgia.
Aqui, estamos falando tanto sobre a ciência como do verdadeiro performático, da fala verdadeira. Tanto da retórica como do procedimento experimental. O jornalista tradicional, composto pela tentativa de neutralidade, tem como aleturgia a contraposição das versões para se chegar a uma verdade, que quanto mais detalhada, mais verdadeira. Num contexto de guerra, exigir que o lado atacado explique detalhadamente quem não foi ele próprio que se atacou é uma utilização maquiavélica da aleturgia… Cínica.
Quando passa pela observação dos dois lados, este procedimento verbal, no contexto de guerra no Oriente, faz com que os povos locais precisem se explicar como pertencentes a uma lógica ocidental. Ou seja, como sujeitos fora da barbárie pressuposta.
Também gostaria de citar o regime de verdade, também no Governo dos Vivos:
Um regime de verdade é portanto o que constrange os indivíduos a esses atos de verdade, o que define, determina a forma desses atos e estabelece para esses atos condições de efetivação e efeitos específicos. Em linhas gerais, podemos dizer, um regime de verdade é o que determina as obrigações dos indivíduos quanto aos procedimentos de manifestação do verdadeiro.
O regime de verdade constrange os indivíduos à aleturgia própria da manifestação da verdade. Para expressar a verdade, tanto o jornalista tradicional precisa verificar as explicações dos dois lados (mesmo em contexto de guerra) como o grupo atacado precisa justificar que o ataque não foi feito por si próprio através de métodos de explicação ocidentais fora de um contexto de guerra.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.