O tríplice deslocamento da analítica do poder – Michel Foucault

O triplo deslocamento para análise das relações localizadas 1) no exterior da instituição, 2) no exterior de suas funções e 3) no exterior dos objetos que são seus alvos permite o reconhecimento do funcionamento global do poder e, assim, da constituição das instituições, de suas funções e seus objetos para além daquilo que é declarado intencionalmente pela própria instituição, para além do mundo fechado em si da análise institucional que Foucault se contrapõe.

Da série “Biopoder“.

Índice

Introdução

Ao realizar suas análises sobre o poder disciplinar[1], Michel Foucault empreendeu uma pesquisa que passou por deslocamentos de análise: o poder começou a ser elemento sem centro, elemento de exercício. Não se tem o poder, se exerce poder[2]. Em suas investigações acerca da governamentalidade, o Estado surge como objeto a ser observado, mas nunca centralizado, assim, não seria um centro de poder, mas sim uma matriz privilegiada de exercício do poder.

Quando passa a ser elemento espalhado, distribuído e, acima de tudo, impossível de posse permanente, impossível de exercício unilateral, o poder deixa de ser objeto a ser conquistado e se torna objeto de estratégias que não precisam de um centro condutor ou de uma mente pensante: trata-se de uma estratégia sem estrategista, de uma estratégia que se faz no próprio desenrolar das lutas, que se observa no estado de forças em jogo.

O propósito deste artigo é expor este tríplice deslocamento que permite uma análise descentralizada do poder e seus efeitos analíticos que foram expostos por Foucault no curso Segurança, Território e População em um momento de análise do Estado.

Poder é relação em Foucault


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O triplo deslocamento de análise

O triplo deslocamento foucaultiano se refere a três movimentos de dentro para fora, três idas ao exterior.

Primeiro movimento: “Passar para o exterior da instituição, descentrar-se em relação a problemática da instituição, ao que se poderia chamar de ‘institucional-centrismo'”[3]. Foucault exemplifica com seus estudos a respeito do hospital psiquiátrico: pode-se observá-lo de dentro, a partir das relações que são construídas e a partir das forças que são exercidas dentro dos limites arquitetônicos ou institucionais do hospital, assim, entender o poder médico que é formado e disseminado. Ao mesmo tempo, em um deslocamento de análise, “podemos proceder do exterior, isto é, mostrar de que maneira o hospital como instituição só pode ser compreendido a partir de algo exterior e geral, que a ordem psiquiátrica, na própria medida em que essa ordem se articula com um projeto absolutamente global, que visa toda a sociedade e que podemos chamar, grosso modo, de higiene pública”[4].

Ao observar de fora, é possível mostrar como essa ordem psiquiátrica atinge a educação das crianças, a assistência aos pobres, as relações de trabalho. O objetivo deste “método”[5] é permitir a identificação de uma tecnologia de poder, através da observações das técnicas e do alcance das relações de poder de seu tipo.

Foucault também estabelece esta orientação ao analisar a política médica no século XVIII:

Não se deve situar somente nos aparelhos do Estado o pólo de iniciativa, de organização e de controle desta noso−política. Existiram, de fato, múltiplas políticas de saúde e diversos meios de se encarregar dos problemas médicos: grupos religiosos (importância considerável, por exemplo, dos Quakers e dos diversos movimentos Dissent, na Inglaterra); associações de socorro e beneficiência (desde as repartições de paróquia até as sociedades filantrópicas que também funcionam como órgãos da vigilância que uma classe social privilegiada exerce sobre as outras, mais desprotegidas e, por isso mesmo, portadoras de perigo coletivo); sociedades científicas, as Academias do século XVIII ou as sociedades de estatística do início do século XIX, tentam organizar um saber global e quantificável dos fenômenos de morbidade.[6]

Segundo movimento: “Segunda defasagem, segunda passagem ao exterior em relação a função”[7]. Aqui, Foucault toma como exemplo sua análise das prisões: é possível observar sua função esperada, definir as funções ideais para seu funcionamento e para seu bom desempenho e, a partir disso, elaborar um balanço histórico e compreender as funções que de fato ela desempenhou ao longo dos anos e em seus locais de atuação, por fim, estabelecer um saldo negativo ou positivo. Olhar a prisão a partir de fora foi olhá-la a partir das disciplinas e, assim, entendê-la em uma economia geral de poder, em uma estratégia que não se situa nos sucessos ou fracassos da instituição prisional.

Se percebe que a história real da prisão sem dúvida não é comandada pelos sucessos e fracassos da sua funcionalidade, mas que ela se inscreve na verdade em estratégias e táticas que se apóiam até mesmo nos próprios déficits funcionais. Portanto: substituir o ponto de vista interno da função pelo ponto de vista externo das estratégias e táticas.[8]

Desta forma, temos um movimento de descentralização relativo à instituição e um movimento que descentraliza a função: não se está olhando a instituição por ela mesma e nem em relação às suas funções esperadas ou de fato.

Terceiro movimento: “A terceira passagem ao exterior é em relação ao objeto. Assumir o ponto de vista das disciplinas era recusar-se a adotar um objeto já pronto, seja ele a doença mental, a delinquência ou a sexualidade”[9]. Ou seja, este movimento é alimentado pela recusa em entender as ciências ou as instituições como forças normativas definidoras de um objeto já dado.

O objeto será definido através da observação das relações que lhe conferem positividade. São as relações, as práticas da maneira como acontecem de fato, que constituem o objeto e o fazem ter qualquer sentido num momento determinado. “Esse triplo movimento de passagem ao exterior foi tentado a propósito das disciplinas, e é mais ou menos isso, no fundo, é essa possibilidade que eu gostaria de explorar em relação ao Estado”[10].

Assim, três exteriorizações: 1) olhar o entorno da instituição, para entender até mesmo seus funcionamentos internos; 2) olhar para além das funções, para compreender as estratégias e táticas que conduzem as práticas; 3) olhar para a formação do objeto, para visualizar sua constituição e sua emergência.

O duplo efeito analítico

Entende-se que o olhar de Foucault em sua analítica do poder na sociedade disciplinar e da governamentalidade é guiado por um triplo deslocamento que retira um suposto centro de dominação (de acúmulo do poder) do protagonismo na análise política. Com esta mudança, há também dois efeitos subsequentes à escolha metodológica de olhar o exterior, a periferia do poder, em vez de se concentrar em seu centro institucional:

Primeiro efeito: “Desinstitucionalizando e desfuncionalizando as relações de poder pode-se estabelecer sua genealogia, isto é, a maneira como elas se formam, se conectam, se desenvolvem, se multiplicam, se transformam a partir de algo totalmente diferente delas mesmas”[11]. Foucault toma o exército como exemplo e argumenta que o disciplinamento militar se estabeleceu em companhia do problema das populações flutuantes, das redes comerciais, modelos de gestão comerciais e invenções técnicas.

Assim, entende-se a filiação, a emergência, da disciplina militar ao mesmo tempo em que se afasta da busca pela origem.

Segundo efeito: “Desinstitucionalizando e desfuncionalizando as relações de poder, pode-se [ver] em que e por que elas são instáveis”[12], pois as tecnologias de poder não são estruturas imóveis, rígidas, que visam organizar processos vivos de maneira imperiosa e fixa.

O desmoronamento de uma instituição não é necessariamente ligado a um tipo de poder que teria se afastado e a retirado de um espaço de relevância política. A própria tecnologia do poder, em suas mutações, tende a ser incompatível com instituições, técnicas, práticas, que antes eram frequentemente e harmonicamente vistas em seu exercício de poder.

Além de entender a instabilidade própria das tecnologias de poder, tal efeito confere “acessibilidade a lutas ou a ataques que encontram necessariamente seu teatro na instituição” e, por sua vez, permite compreender que a eficiência de uma estratégia de poder também é “perfeitamente possível atingir efeitos globais não só por enfretamentos concertados, mas igualmente por ataques locais, ou laterais, ou diagonais que põem em jogo a economia geral do conjunto”[13]. A existência de movimentos espirituais marginais, de dissidências religiosas que não se voltavam contra a igreja católica, contribuíram à ascensão de todo um segmento da instituição eclesiástica e para a formação da própria maneira como o poder religioso era exercido na Europa analisada por Foucault.

Considerações finais

O triplo deslocamento para análise das relações localizadas no exterior da instituição, no exterior de suas funções e no exterior dos objetos que são seus alvos permite o reconhecimento do funcionamento global do poder e, assim, da constituição das instituições, de suas funções e seus objetos para além daquilo que é declarado intencionalmente pela própria instituição, para além do mundo fechado em si da análise institucional que Foucault se contrapõe.

Desta maneira:

  1. Um movimento de afastamento do centro da instituição. É necessário observar o poder a partir de sua periferia para entender seu centro;
  2. Um movimento de afastamento da função. É necessário compreender as estratégias que dão sentido à existência de uma instituição específica. Estas estratégias não dependem da eficiência da instituição em relação às suas funções declaradas ou que lhes são historicamente imputadas;
  3. Um movimento de afastamento em relação ao objeto. Olhar a formação do objeto para entender sua positividade em vez de partir do objeto pronto conforme a normatividade das instituições que lhe formam.

Que levam a consequências específicas:

  1. Uma abertura para se observar a formação das estratégias de poder;
  2. Uma abertura para se entender a instabilidade das relações de poder, para compreender sua mobilidade.

Assim, fica delineada de maneira geral um tipo de “metodologia” (termo utilizado por Foucault – a análise da periferia ao centro) e um “método” (termo também utilizado pelo autor – um olhar baseado nas formações, não nos objetos já formados).


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Referências

[1] SIQUEIRA, Vinicius. Poder disciplinar – Michel Foucault. Colunas Tortas. Acesso em [06 Nov 2021]. Disponível em <<https://colunastortas.com.br/poder-disciplinar-michel-foucault/>>.

[2] SIQUEIRA, Vinicius. Poder e Estado – Michel Foucault. Colunas Tortas. Acesso em [06 Nov 2021]. Disponível em <<https://colunastortas.com.br/poder-e-estado-michel-foucault/>>.

[3] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População: curso dado no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 157.

[4] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p. 157.

[5] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p. 157.

[6] FOUCAULT, Michel. A política de saúde no século XVIII IN Microfísica do Poder. Roberto Machado (Org).

[7] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p. 158.

[8] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p. 158.

[9] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p. 158.

[10] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p. 158.

[11] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p. 160. Nota de rodapé.

[12] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p. 161. Nota de rodapé.

[13] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p. 161. Nota de rodapé.

Cite este artigo:

SIQUEIRA, Vinicius. O tríplice deslocamento da analítica do poder – Michel Foucault . Colunas Tortas. Acesso em [DD Mês AAAA]. Disponível em <<https://colunastortas.com.br/analitica-do-poder-michel-foucault/>>.

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