Da série “Michel Pêcheux: Conceitos Fundamentais“.
O artigo presente tem como objetivo expor as ideias de Michel Pêcheux num momento anterior à criação da Análise do Discurso Francesa (AD), quando o autor ainda publicava sob o pseudônimo de Thomas Herbert. Tomaremos como base o artigo Observações Para Uma Teoria Geral das Ideologias, publicado originalmente em 1967, na revista Cahiers Pour L’analyse, nº9.
Neste momento de sua pesquisa, apesar de já utilizar o termo discurso, Pêcheux está preocupado com a teoria da ideologia e sua atenção se volta aos mecanismos de funcionamento da ideologia e sua relação com a ciência. O autor relembra que a ciência não nasce de uma ideia disrruptiva, mas sim de um afastamento de uma ideologia particular, então, toda ciência é a ciência da ideologia da qual ela se destaca.
Para Pêcheux, a trajetória do desenvolvimento de uma ciência envolve dois momentos, sendo o primeiro chamado pelo autor de momento da “transformação produtora” dos objetos que essa ciência irá tratar, já o segundo é a “reprodução metódica” do objeto, “pela qual ela explora, do interior, o seu discurso, para testar sua coerência”[1].
Ambos os momentos podem ser contrapostos em relação às resistências ao trabalho teórico, descritas a partir de dois tipos de ideologia, a de tipo “A”, que trabalha como uma ciência e tenta receber os benefícios e créditos que uma ciência teria (como a alquimia), e as de tipo “B”, que exercem sua resistência de maneira estruturalmente ligada à estrutura da sociedade como tal, fazem parte das relações sociais que ligam os indivíduos no modelo de sociedade vigente.
O autor se envereda por esta questão utilizando o exemplo da criação do marxismo e de sua reprodução metódica sem rompimento com a ideologia dominante feito na academia, desta forma, sem a tarefa de transformação produtora ser levada à cabo. Seu objetivo no artigo é mostrar como a dupla forma da ideologia descrita acima se forma e quais são suas consequências.
A dupla forma da ideologia
As ideologias de tipo “A” “aparecem no curso da análise como produtos derivados da prática técnica empírica”, já as ideologias de tipo “B” “se revelaram como as condições indispensáveis da prática política”[2]. Essa diferença entre os dois tipos de ideologia se traduz na diferença fundamental existente em todos os modos de produção: de um lado, as forças produtivas e de outro lado, as relações de produção.
A ideologia, portanto, tem duas facetas:
- Enquanto referida ao processo de produção, a ideologia é o processo de recombinação de conceitos operatórios, de modo que eles são destacados de suas sequências operatórias para posterior rearranjo em um discurso original. Este é o efeito ideológico de tipo “A” e a alquimia é um exemplo possível.
- Enquanto referida às relações sociais de produção, a ideologia é o mecanismo necessário para que se produza e mantenha as diferenças necessárias ao funcionamento das relações sociais de produção em sociedades de classes, com foco na diferença “fundamental”: trabalhador e não trabalhador.
A primeiro momento, após esse desenvolvimento que resultou na separação de duas formas da ideologia, poderíamos nos perguntar se, de fato, ele vale à pena e como deve ser aplicado sobre as ideologias e seus elementos.
Mas o que importa não são os elementos em jogo, que são reorganizados pelas ideologias de tipo “A” ou trabalhados sob um mecanismo nas ideologias de tipo “B”. Se trata, antes de tudo, da forma de agenciamento de cada elemento da ideologia. Ou seja, na medida em que uma ideologia, como a alquimia, teve uma função político-religiosa forte (e a política seria alocada nas ideologias de tipo “B”), nossa conclusão não deve caminhar para a aceitação de que, na realidade, é necessário dosar as duas “formas puras” de ideologia, pois o que importa são as condições de aparecimento de cada elemento muito mais do que de sua forma ou coerência interna.
Desta forma:
- Em relação ao processo de produção, a ideologia opera sob o que Pêcheux chama de “realização técnica do real”, “sob o controle de uma ideologia da forma técnica-empírica que assegura o sentido do objeto produzido”[3]. O efeito ideológico de tipo “A”, assim, se refere à forma empirista da ideologia, que tem como objetivo ligar a significação à realidade, manter uma correspondência “correta” entre ambos.
- Em relação às relações sociais de produção, a ideologia opera sob a forma especulativa-fraseológica, já que tem como função assegurar aos agentes de produção sua posição destinada pela formação social. A ideologia de tipo “B” atua como condição indispensável das práticas políticas e essas, por sua vez, têm no discurso, a forma de sua transformação.
Há uma observação importante para se retirar disso: as relações sociais de produção se descrevem como leis imanentes a uma formação social dada. O efeito da ideologia de tipo “B”, portanto, acontece através de um discurso que detém a transparência e a lei de justaposição dos sujeitos conforme o destino proposto pela formação social dada.
Esquecimentos ideológicos
Essa dupla função da ideologia causa dois esquecimentos específicos, que devem ser vistos na forma empirista da ideologia como o esquecimento de que o sujeito não é um produtor-distribuidor de significados, ou seja, a função designada para ele através da ideologia de encontrar o real a partir da significação correta é falha de antemão. Esta interpretação, diz Pêcheux, faz do homem um animal ecológico que organiza seu meio o etiquetando, assim, a forma empírica da ideologia tem uma função semântica.
Por outro lado, o segundo esquecimento está na forma especulativa da ideologia, tem uma função sintática, ela designa a relação entre os significantes, ela torna a relação humana, algo natural e faz da linguagem, uma ferramenta manipulada pelo sujeito humano para exercer sua liberdade através de seu uso. Esta forma da ideologia considera as relações sociais entre sujeitos como relações naturais, devido à natureza linguística do humano como animal social.
Pêcheux cita Lacan, “o significante representa o sujeito para um outro significante”, que em sua interpretação, é o mecanismo como a cadeia sintática dos significantes determina um lugar para o sujeito. Este sujeito se identifica com o lugar e tudo se passa como se fosse esse o efeito do homem enquanto ser social: se relacionar com outros iguais. E é justamente nesse processo que as diferenças entre os sujeitos são instauradas e a relação em igualdade é dissimulada.
O processo de “pegar” os sujeitos e os identificar à organização sintática significante é chamado de metonímia. Ela não só determina o lugar do sujeito, como também causa o esquecimento, para o sujeito, do desenrolar destes passos. É a partir do efeito metonímico que cada nível estrutural (são eles: a estrutura econômica, seguido da estrutura política, logo após a estrutura ideológica) consegue esboçar uma coerência interna,
Assim se produz a identificação do sujeito com a estrutura política e ideológica que constituem a subjetividade como origem do que o sujeito diz e faz (normas que ele enuncia e pratica): esta ilusão subjetiva pela qual se constitui a “consciência de ser em situação, para empregar um vocabulário fenomenológico, dissimula ao agente sua posição na estrutura.[4]
O efeito próprio das significações é chamado de metafórico: é o efeito dos deslocamentos de significações através dos níveis estruturais ditos acima. Por exemplo,
a lei econômica que dá ao agente de produção sua posição no processo de produção é recalcada e travestida em outras cadeias significantes que têm por efeito ao mesmo tempo significar esta posição ao sujeito-agente de produção, sem que ele possa escapar daí, e de dissimular que essa posição lhe é atribuída.[5]
Há, então, dois princípios da ideologia que podem ser assumidos[6]: 1) um princípio de dualidade, que mostra a ideologia enquanto forma empírica e forma especulativa, semântica e sintática; 2) um princípio que afirma a desigualdade constituinte dessas duas formas, ou seja, a impossibilidade de se ter uma ideologia do tipo “A”, empirista, de forma pura, sem a presença da forma “B”.
A ilusão subjetiva, efeito da forma especulativa da ideologia, carrega nela o núcleo do reconhecimento-desconhecimento do processo ideológico, pois:
- Com a ajuda da forma ideológica “A”, a ideologia garante que os “dados” sejam reflexo dos “fatos”. “A segurança de que o significado está bem ‘atrás’ do significante é aqui o ponto essencial”[7];
- A forma especulativa da ideologia, a forma “B”, permite que o outro funcione como suporte, como reflexo da ideologia. “Aqui são colocados em jogo os mecanismos da crença comunicada, o ‘quase-dado’ do testemunho, do relato – da prova e do mito que identifica as subjetividades ao discurso que elas pronunciam – isto é, que se pronunciam nelas”[8].
Ciências sociais como ideologia
Pêcheux, neste momento, volta sua atenção para as ciências sociais, consideradas por ele como as “realizadoras do real” nas humanidades por ser a aplicação da forma “B” da ideologia com a ajuda da forma “A”, que produz uma dominância sintática primária, uma resistência à transformação produtora de seu objeto de pesquisa, que é a resistência à transformação em ciência nova, como dito no início deste artigo.
Um sujeito que se encontra numa formação social carrega efeitos ideológicos e os reproduz, 1) a partir do grupo semântico das normas enunciadas e praticadas, ou seja, daquilo que ele pode fazer, deve fazer e sabe fazer; e 2) a partir do grupo sintático da fraseologia ideológica presente nas estruturas institucionais.
Desta forma, Pêcheux entende que, se focarmos na descrição pormenorizada das normas enunciadas, corremos o risco (como as ciências sociais ideológicas) de reforçar a garantia empírica da ideologia. Ao mesmo tempo, se procuramos os desníveis entre as normas explícitas e as práticas, argumentando pura e simplesmente que as condições dos comportamentos conscientes são a verdade desses comportamentos, reforçamos o lado especulativo da ideologia.
Me arrisco a dizer que, de um lado, temos uma sociologia que tem como objeto a prática e as práticas que são criadas em resposta ao primeiro estímulo social, por outro lado, uma sociologia das regras inconscientes, mas não como a de Bourdieu ou como a análise discursiva de Pêcheux, mas sim das regras inconscientes do sistema fraseológico encontrado (ou, para tentar uma aproximação, do discurso encontrado), não a lei profunda que determina a organização do sistema estudado (do discurso estudado).
Isso é muito importante, pois assumir que é possível encontrar as regras inconscientes e, assim, entender a causa dos comportamentos,
É o mesmo que dizer que cada sistema é por definição a lei inconsciente produtora de efeitos conscientes: esquecemos por aí que os sistemas fraseológicos institucionais são eles próprios produzidos pelos processos ideológicos que atravessam a formação social: em outros termos, diremos, empregando a distinção que Cl. Lévi-Strauss estabelece entre lei e regra, que se confunde assim o pré-consciente da regra sintática imanente a um sistema fraseológico-institucional dado com o inconsciente da lei estrutural que estabelece as próprias regras.[9]
Ou seja, temos as leis inconscientes, que se articulam entre efeitos metonímicos e efeitos metafóricos, em seguida, regras pré-conscientes, determinadas pelas leis inconscientes, terminando pelos comportamentos conscientes.
Então, diferente de certa ciência social, a atribuição de lugar feita a um sujeito na estrutura social é resultado de mecanismos de lei inconscientes, isso significa que não é a “tomada de consciência” das regras pré-conscientes que vai retirar o sujeito da “alienação social”. A lei inconsciente, neste caso, não é nem mesmo posta em causa.
As ciências sociais que se debruçam sobre as regras pré-conscientes ou que se deparam numa descrição dos comportamentos conscientes, não tocam o momento da transformação produtora que a ciência das formações sociais, o marxismo, pode e deve realizar para se firmar como ciência. O que elas fazem é pinçar conceitos operatórios e utilizá-los na reprodução metódica, na ideologia de tipo “B”, ou seja, na concepção das regras pré-conscientes e nos comportamentos conscientes.
Considerações finais
Esta foi a primeira tentativa de Pêcheux em lidar com o funcionamento da ideologia, mas já podemos ver traços da linguística e da teoria do discurso que seriam desenvolvidos no restante da vida do autor.
A ideologia é, aqui, tratada em sua dupla forma: empírica, nos comportamentos e procedimentos, e especulativa, em sua esfera propriamente fraseológica, ou discursiva, desde que se entenda discurso em seu sentido vulgar.
O artigo funciona como arma contra as ciências sociais ideológicas que se abstém do método materialista histórico enquanto se utilizam de alguns conceitos como adorno e aponta para o nascimento de uma ciência sociais verdadeira justamente se descolando da ideologia que hoje nela vive.
Referências
[1] HERBERT, Thomas (Michel PÊCHEUX). “Observações para uma Teoria Geral das Ideologias”, Rua, 1. Campinas: Nudecri/Unicamp, 1994 (1ª ed. 1967), p. 64.
[2] HERBERT, Thomas (Michel PÊCHEUX). “Observações para uma Teoria Geral das Ideologias”, Rua, 1. Campinas: Nudecri/Unicamp, 1994 (1ª ed. 1967), p. 65.
[3] HERBERT, Thomas (Michel PÊCHEUX). “Observações para uma Teoria Geral das Ideologias”, Rua, 1. Campinas: Nudecri/Unicamp, 1994 (1ª ed. 1967), p. 68.
[4] HERBERT, Thomas (Michel PÊCHEUX). “Observações para uma Teoria Geral das Ideologias”, Rua, 1. Campinas: Nudecri/Unicamp, 1994 (1ª ed. 1967), p. 83.
[5] HERBERT, Thomas (Michel PÊCHEUX). “Observações para uma Teoria Geral das Ideologias”, Rua, 1. Campinas: Nudecri/Unicamp, 1994 (1ª ed. 1967), p. 83.
[6] HERBERT, Thomas (Michel PÊCHEUX). “Observações para uma Teoria Geral das Ideologias”, Rua, 1. Campinas: Nudecri/Unicamp, 1994 (1ª ed. 1967), p. 76-77.
[7] HERBERT, Thomas (Michel PÊCHEUX). “Observações para uma Teoria Geral das Ideologias”, Rua, 1. Campinas: Nudecri/Unicamp, 1994 (1ª ed. 1967), p. 83.
[8] HERBERT, Thomas (Michel PÊCHEUX). “Observações para uma Teoria Geral das Ideologias”, Rua, 1. Campinas: Nudecri/Unicamp, 1994 (1ª ed. 1967), p. 83-84.
[9] HERBERT, Thomas (Michel PÊCHEUX). “Observações para uma Teoria Geral das Ideologias”, Rua, 1. Campinas: Nudecri/Unicamp, 1994 (1ª ed. 1967), p. 84-85.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.