As ovelhas – Michel Foucault

Instaurando um tipo de intervenção individual, o pastorado cristão inova pois não depende da aplicação de uma lei, mas da obediência individual e cotidiana cobrindo todos os aspectos da vida de cada indivíduo conduzido e, apesar de ensinar a verdade, necessitará de um tipo de vigilância minuciosa para garantir a introdução de uma verdade secreta, de uma verdade na conduta, de uma verdade da interioridade, de algo que necessita da obediência para ser aprendido.

Da série “O pastorado“.

O exercício do poder pastoral exige a participação de dois elementos: uma relação de poder é, por princípio, uma relação, desta forma, exige a manutenção de dois lados, de duas pontas relacionadas, de dois elementos indissociavelmente ligado pelo poder.

Se o pastor é um elemento essencial para o exercício do poder pastoral, as ovelhas ocupam o outro lado desta relação. Uma relação é constituída por condutas específicas, por práticas específicas e objetivo deste artigo é descrever a dependência específica que as ovelhas têm com o pastor e que alimenta a relação de poder, além de significá-la do ponto de vista discursivo. Michel Foucault denomina de dependência integral do pastorado e, para descrever essa relação, utilizarei como base o livro Segurança, Território, População.


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Submissão

Diferentemente de uma lei, o pastorado não define direitos e deveres, não limita a ação daqueles que estão submetidos: há uma submissão específica que transforma a obediência em regra.

É uma relação de submissão de um indivíduo a outro indivíduo. Isso porque a relação estritamente individual, o correlacionamento entre um indivíduo que dirige e um indivíduo que é dirigido, é não apenas uma condição mas o princípio mesmo da obediência cristã.[1]

Cabe ao sujeito dirigido obedecer: aceitar o que lhe é ordenado no interior dessa relação individual que envolve o governo não só da vida espiritual, mas também da vida material e da vida cotidiana. Em sua forma ideal, esta obediência é irrestrita e irrefletida. A prova da obediência está justamente nestes dois últimos adjetivos, pois o absurdo da ordem é irrelevante em sua obediência. Deve-se obedecer até mesmo o absurdo:

A perfeição da obediência consiste em obedecer a uma ordem, não por ela ser razoável ou por lhe confiarem uma tarefa importante mas, ao contrário, por ser absurda. É a história infinitamente repetida do monge João, a quem foi dada a ordem de ir regar, bem longe da sua cela, uma vara seca que tinha sido plantada no meio do deserto e que ele tinha de regar duas vezes por dia. Graças a isso a vara não floresceu, mas a santidade de João, em compensação, foi assegurada.[2]

Somada a isso, a obediência é valorizada ainda mais se o mestre for rabugento: a falta de reconhecimento pela ordem obedecida e a ausência de gratidão são elementos que tornam ainda mais meritória a prática da obediência: “Quanto mais o mestre é rabugento, quanto menos ele mostra reconhecimento, gratidão, quanto menos ele felicita o discípulo por sua obediência, mais a obediência é reconhecida como meritória”[3].

Por fim, a obediência também se torna mais meritória ainda se estiver em inconformidade com a lei, “ou seja, que se tem de obedecer mesmo quando a ordem é contrária a tudo o que pode ser considerado lei”[4].

São pontos que desvalorizam o indivíduo que obedece enquanto sujeito digno, mas que, ao mesmo tempo, valorizam a autonomia em obedecer. A obediência não é uma lei, mas é uma entrega. “É uma relação de servidão integral”[5].

Desta forma, a obediência integral do pastorado cristão é composto por:

  • Submissão de um indivíduo a outro de maneira integral, pois:
    • É a prova do absurdo;
    • É a prova do mestre rabugento;
    • É a prova da lei.

Não há finalidade

O exercício do poder pastoral não tem um fim, ou seja, não é um projeto. Quando uma pessoa é guiada por um professor, o objetivo é aprender a lição; quando um menino era levado aos cuidados de um mestre de oficina, o objetivo final era o aprendizado do ofício; quando um grego confiava seus cuidados a um filósofo, seu objetivo era alcançar certo resultado acerca do conhecimento filosófico.

A obediência ao mestre, nestes exemplos, é uma etapa para se chegar ao fim. Uma etapa, inclusive, nem sempre agradável e nem necessariamente respeitosa. Não é nem mesmo um requisito apreciar este movimento de passagem. Já a obediência cristã não é um meio:

Na obediência cristã, não há finalidade, porque aquilo a que a obediência cristã leva é o quê? É simplesmente a obediência. Obedece-se para ser obediente, para alcançar um estado de obediência. Creio que essa noção de estado de obediência também é algo totalmente novo, totalmente específico, que não encontraríamos de forma alguma antes.[6]

Em seguida, Michel Foucault entende que a humildade é o elemento que define este tipo de obediência. Colocarei a citação completa:

O termo para o qual tende a prática de obediência é o que se chama de humildade, humildade essa que consiste em sentir-se o último dos homens, em receber ordens de qualquer um, em revalidar assim indefinidamente a relação de obediência e, principalmente, em renunciar à vontade própria.[7]

Uma obediência que tem um fim em si justamente porque o sujeito humilde, ao ser humilde, se coloca sempre na relação de obediência como aquele que precisa ser conduzido, que precisa ser ordenado, que precisa ser submetido. Uma submissão, portanto, sem fim que representa uma humildade sem fim. E a infinitude da humildade, a infinitude da obediência é a grande validação do bem:

Ser humilde não é saber que se pecou muito, ser humilde não é simplesmente aceitar que qualquer um dê ordens e submeter-se a elas. Ser humilde, no fundo, é principalmente saber que toda vontade própria é uma vontade ruim. Se, portanto, a obediência tem um fim, esse fim é um estado de obediência definido pela renúncia, a renúncia definitiva a toda vontade própria.[8]

A obediência não tem um fim objetivo, mas um fim relativo à própria obediência. Nessa relação consigo mesma, a renúncia aparece como elemento principal. Esta renúncia tem certa similaridade com aquela dos estoicos e epicuristas, chamada apátheia, entretanto, com uma específica diferença: se a apátheia grega leva à ausência de paixões que, em seu fim, é a própria ausência da passividade, é a ausência de movimentos que acontecem dentro do corpo e que escravizam o sujeito a sua própria natureza; a apátheia incorporada pelo cristianismo envolve a ausência das paixões da carne, à renúncia aos prazeres sexuais, aos prazeres do corpo. Uma renúncia, no fim, à própria vontade que é essa coisa que posso chamar de “minha”, “a ausência de paixão, a apátheia, vai ser a vontade que renuncia a si mesma e que não pára de renunciar a si mesma”[9].

Sendo assim:

  • Não há finalidade na submissão ao pastor;
  • A obediência tem um fim em si;
  • A humildade é o elemento que move a constância da submissão;
  • O resultado final é uma renúncia de si.

Verdade

A relação da prática do poder pastoral com a verdade está inserida no contexto do ensino que o pastor tem como tarefa. A verdade ensinada pelo pastor é intimamente ligada a sua própria vida:

O pastor deve ensinar por seu exemplo, por sua própria vida, e aliás o valor desse exemplo é tão forte que, se ele não dá uma boa lição com sua própria vida, o ensino teórico, verbal, que vier a ministrar se verá obscurecido por isso mesmo.[10]

Um tipo de ensino que não se faz de maneira global, que não faz de maneira geral. Não é um ensino generalista, mas individualizado. Um tipo de ensino que tem como objetivo a conduta da ovelha.

Cada ovelha é modulada cotidianamente em sua conduta própria pelos ensinamentos do pastor. Um tipo de direção de consciência que é obrigatória, pois nenhuma ovelha pode ser ovelha sem ter um pastor, e ao mesmo tempo plural, pois cobre todos os aspectos da vida individual de cada ovelha.

Considerações finais

Entendendo os três pontos anteriores relacionados à ligação do pastor com as ovelhas, é possível perceber que há uma troca específica, uma economia específica em que a submissão, a verdade ou a humildade são somente elementos, pois o pastorado cristão

é uma forma de poder que, pegando o problema da salvação em sua temática geral, vai introduzir no interior dessa relação global toda uma economia, toda uma técnica de circulação, de transferência, de inversão dos méritos, e é isso que é seu ponto fundamental.[11]

E, instaurando um tipo de intervenção individual, o pastorado cristão inova pois não depende da aplicação de uma lei, mas da obediência individual e cotidiana cobrindo todos os aspectos da vida de cada indivíduo conduzido e, apesar de ensinar a verdade, necessitará de um tipo de vigilância minuciosa para garantir a introdução de uma verdade secreta, de uma verdade na conduta, de uma verdade da interioridade, de algo que necessita da obediência para ser aprendido.

Referências

[1] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População: curso dado no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 232.

[2] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p. 233.

[3] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p. 233.

[4] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p. 233.

[5] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p. 234.

[6] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p. 234.

[7] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p. 234-235.

[8] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p. 235.

[9] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p. 236.

[10] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p. 238.

[11] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População… p. 241-242.

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