Índice
Introdução
O presente artigo visa articular a visão de Émile Benveniste da linguagem enquanto elemento de reprodução da realidade com as noções de discurso e enunciado de Michel Foucault e com a noção de linguagem de Ferdinand de Saussure, influência direta em seus trabalhos.
Assim, passa-se pela proposta de Benveniste com articulações breves com Foucault através do enunciado como função de existência e do discurso como conjunto de enunciados regidos por um mesmo conjunto de regras, até terminar na necessidade do elemento coletivo ao exercício da linguagem e deste último para a constituição da sociedade.
Linguagem representa a realidade
A linguagem tem uma função própria, que está além da forma linguística: ela funciona como uma matriz de reprodução da vida vivida:
A linguagem reproduz a realidade. Isso deve entender-se da maneira mais literal: a realidade é produzida novamente por intermédio da linguagem. Aquele que fala faz renascer pelo discurso o acontecimento e a sua experiência do acontecimento[1].
A fala, por sua vez, é uma prática social, envolve duas posições presentes para sua feitura: o locutor e o ouvinte (que podem ser, inclusive, a mesma pessoa). Locutor e ouvinte, a partir da linguagem, tocam a realidade em níveis diferentes que envolvem a linguagem enquanto interface em relação à realidade:
A situação inerente ao exercício da linguagem, que é a da troca e do diálogo, confere ao ato de discurso dupla função: para o locutor, representa a realidade; para o ouvinte, recria a realidade. Isso faz da linguagem o próprio instrumento da comunicação intersubjetiva.[2]
Além de instrumento da comunicação intersubjetiva, ela é algo como uma nervura de representação da realidade: representação em símbolos, para o locutor que almeja transformar a realidade em enunciados (estes, para Michel Foucault, descritos como uma “função de existência que pertence, exclusivamente, aos signos, e a partir da qual se pode decidir, em seguida, pela análise ou pela intuição, se eles ‘fazem sentido’ ou não”[3]); recriação da realidade, através da comunicação de um acontecimento ainda inédito (ou, pelo menos, inédito segundo a narrativa do locutor) para o ouvinte.
Sendo assim:
O linguista […] estima que não poderia existir pensamento sem linguagem e que por conseguinte o conhecimento do mundo é determinado pela expressão que ele recebe. A linguagem reproduz o mundo, mas submetendo-o a sua própria organização.[4]
Desta forma, iniciando nossa articulação entre Benveniste e Foucault, a introdução da linguagem como forma de representação da realidade é a própria condição de possibilidade da existência do discurso enquanto conjunto de enunciados regidos por um mesmo sistema de dispersão, ou seja, por uma mesma formação discursiva[5].
A linguagem, portanto, é uma interface que constitui a condição de possibilidade do discurso. Já este último, constrói a realidade através da liberação de espaços de existência para a construção de sintagmas que representam a realidade, apesar de não serem a realidade e de não representá-la em todos seus aspectos. A representação da realidade é a característica da linguagem que compreende a própria formação de uma realidade vivida comunicável.
A linguagem em Saussure
Para Saussure[6], a linguagem é a soma da língua com a fala. Esses dois elementos essenciais são separados pelo suíço, na medida em que a língua pode ser descrita como um sistema e a fala seria a expressão da subjetividade humana. Língua e fala participam de maneira oposta na realidade:
- A língua é coletiva (é aprendida, inculcada pelo indivíduo), enquanto a fala é individual;
- A língua é essencial enquanto a fala é acessória (a língua poderia ser materializada e praticada a partir de outros aparelhos que não o vocal, como a escrita ou através de símbolos).
Assim, entende-se que o sistema de signos, que é a língua, praticada pelo falante subjetivamente, representa a realidade de tal maneira que a reproduz, através do ato da fala, e a recria, através da prática da escuta. É necessário entender que a fala e a escuta também podem ser adaptadas a um modelo de escrita e leitura, pois, no fim, o que interessa é a possibilidade de se expressar através de signos linguísticos e fazê-los circular através da posição de quem produz o enunciado e de quem o recebe.
Cada locutor não pode propor-se como sujeito sem implicar o outro, o parceiro que, dotado da mesma língua, tem em comum o mesmo repertório de formas, a mesma sintaxe de enunciação e igual maneira de organizar o conteúdo. a partir da função linguística, e em virtude da polaridade eu : tu, indivíduo e sociedade não são mais termos contraditórios, mas termos complementares.[7]
O outro é elemento essencial no exercício da função de representação da realidade e, como o outro é sempre anterior ao eu, a própria forma de representar a realidade passa pela existência anterior de um outro que define as maneira de representá-la. Este é o caráter coletivo da língua implicando numa função para a linguagem em que o outro é elemento obrigatório.
O outro não existe para dar condição a um modelo de comunicação eficiente: ele é anterior, é a condição de existência da própria linguagem, já que é elemento obrigatório na existência da língua.
Se a condição de existência da linguagem é o fator coletivo, materializado na sociedade, então a própria sociedade, enquanto conjunto de relações sociais, depende da linguagem para estabelecer qualquer tipo de sentido em suas relações.
Conclusões finais
Benveniste entende que a função da linguagem é muito mais importante que somente seu aspecto formal e estilístico:
Estabelecendo o homem na sua relação com a natureza ou na sua relação com o homem, pelo intermédio da linguagem, estabelecemos a sociedade. Isso não é coincidência histórica, mas encadeamento necessário. De fato, a linguagem se realiza sempre dentro de uma língua, de uma estrutura linguística definida e particular, inseparável de uma sociedade definida e particular.[8]
A aquisição da língua pela criança é uma experiência concomitante à formação do símbolo e a construção do objeto. A partir disso, ela aprende as coisas pelo nome, entende que as coisas têm nomes e compreende como esses nomes estão dispersos num sistema mais ou menos coeso. Além disso, a criança descobre que ela mesma tem um nome e que pode se comunicar por meio desta condição com outros indivíduos com nomes. Assim, “desperta nela a consciência do meio social onde está mergulhada e que moldará pouco a pouco o seu espírito por intermédio da linguagem. […] Língua e sociedade não se concebem uma sem a outra”[9].
Referências
[1] BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral. Tradução de Maria da Glória Novak e Luiza Neri; revisão do Prof. Isaac Nicolau Salum. São Paulo: Ed. Nacional, Ed. da Universidade de São Paulo, 1976, p.26.
[2] BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral… p.26.
[3] FOUCAULT, Michel. Definir o Discurso IN: A Arqueologia do Saber. 8ª edição, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012, p.105.
[4] BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral… p.26.
[5] FOUCAULT, Michel. As formações discursivas IN: A Arqueologia do Saber. 8ª edição, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012, p.47.
[6] SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral. Tradução: Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blinkstein. 32ª edição. São Paulo: Editora Cultrix, 2010.
[7] BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral… p.27.
[8] BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral… p.31.
[9] BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral… p.31.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.