O campo social – Pierre Bourdieu

O campo se faz como espaço de lutas, espaço que, visto em sua diacronia, se faz como um campo em transformação, em disputa. Esta disputa se faz através de estratégias que não precisam ser conscientes para que sejam aplicadas. O habitus é o elemento que, ao fornecer disposições práticas, fornece também formas de interpretação do mundo e de relação com os diferentes elementos do campo, ou seja, mesmo sem intenção de fazer, a estratégia do agente social tem relação com as disputas específicas do campo.

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Índice

Introdução

O objetivo do presente artigo é apresentar a noção de campo em Pierre Bourdieu com base no texto Algumas Propriedades dos Campos de 1976, conferência pronunciada pelo sociólogo na Escola Normal Superior. Além disso, com a utilização de artigos de comentaristas. Desta forma, será possível visualizar o panorama geral da noção e, acima de tudo, da interpretação social bourdieusiana.

Para isso, é necessário iniciar o texto declarando que o campo tende a substituir a noção de sociedade[1], na medida em que contém determinadas características irredutíveis que impedem uma total integração a uma totalidade (que poderia ser representada pela noção de sociedade). Desta forma, a coisa que se chama de sociedade é, na verdade, “constituída por um conjunto de microcosmos sociais dotados de autonomia relativa, com lógicas e possibilidades próprias, específicas, com interesses e disputas irredutíveis ao funcionamento de outros campos”[2].


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Como os campos se apresentam?

Os campos se apresentam à apreensão sincrônica como espaços estruturados de posições (ou de postos) cujas propriedades dependem das posições nestes espaços, podendo ser analisadas independentemente das características de seus ocupantes (em parte determinadas por elas).[3]

Em um olhar sincrônico, portanto, um olhar do tempo estático, do momento, de um período determinado, o campo social se mostrará como espaço estruturado de posições sociais. Essas posições sociais não são definidas pelos indivíduos que as ocupam, mas os próprios indivíduos precisam ocupá-las para agirem socialmente, para desempenharem suas estratégias, para serem alguém no mundo social.

É por isso que a dinâmica social acontece dentro do campo, salienta Thiry-Cherques[4]. Nestes campos, que são segmentos das sociedade com algumas características irredutíveis, espaço social é estruturado por posições que suscitam a existência de agentes sociais, ou seja, indivíduos em posições sociais específicas.

Estes agentes sociais agem conforme seus habitus, sendo que habitus é definido por Bourdieu como

um sistema de disposições duráveis e transponíveis que, integrando todas as experiências passadas, funciona a cada momento como uma matriz de percepções, de apreciações e de ações – e torna possível a realização de tarefas infinitamente diferenciadas, graças às transferências analógicas de esquemas, que permitem resolver os problemas da mesma forma, e às correções incessantes dos resultados obtidos, dialeticamente produzidas por esses resultados.[5]

Ou seja, cada indivíduo ocupando uma posição social (e sempre se ocupa uma posição) age socialmente (se faz enquanto agente social) a partir de seu habitus (sistema de disposições práticas) incorporado. Ou seja, o habitus de um filólogo, por exemplo, é a união do ofício de filólogo (ou seja, todo o conjunto de técnicas, referências, “crenças” e etc) com a propensão para dar às notas a mesma importância do texto, além de propriedades que se ligam à história da disciplina (sejam nacional ou internacional) e todos esses elementos são o resultado e a condição de funcionamento do campo da filologia[6].

Assim,

A dinâmica social no interior de cada campo é regida pelas lutas em que os agentes procuram manter ou alterar as relações de força e a distribuição das formas de capital específico. Nessas lutas são levadas a efeito /estratégias/ não conscientes, que se fundam no /habitus/ individual e dos grupos em conflito. Os determinantes das condutas individual e coletiva são as /posições/ particulares de todo /agente/ na estrutura de relações. De forma que, em cada campo, o /habitus/, socialmente constituído por embates entre indivíduos e grupos, determina as posições e o conjunto de posições determina o /habitus/.[7]

Toda esta dinâmica entre o habitus, os agentes sociais, as estratégias utilizadas, acontecem num campo que se modifica ao longo do tempo, mas quando visto em seu momento revela uma estrutura: “a estrutura do campo é um estado das relações de força entre os agentes ou instituições envolvidas na luta ou, se se preferir, da distribuição do capital específico que, acumulado no decorrer das lutas anteriores, orienta as estratégias posteriores”[8].

Propriedades gerais dos campos

Pierre Bourdieu considera que a noção de campo pode ser aplicada universalmente, portanto, considera a teoria dos campos como um instrumentos adaptável e aplicável a qualquer contexto específico, na medida em que funciona como um modelo delimitado de olhar não subjetivista nem objetivista com ferramentas conceituais específicas. A teoria dos campos é o olhar relacional, fruto de um “estruturalismo genético” (definição do autor), que se faz como interpretação social na utilização de conceitos que permitem a operacionalidade dos campos como elemento central e irredutível.

As elaborações de Bourdieu aparecem como maneira de superar a oposição entre subjetivismo e objetivismo, na medida em que o autor propõe uma ligação específica entre as estruturas externas e internas: as estruturas externas são internalizadas e, ao mesmo tempo, para sua manutenção, dependem das estruturas internas externalizadas através de ações sociais. Uma dialética de composição dos campos e dos agentes sociais.

Na constituição de uma teoria geral dos campos, é possível identificar algumas características universais. Por exemplo:

  1. Independentemente do campo ou do território que o campo emerge, “em qualquer campo descobriremos uma luta, cujas formas específicas terão de ser investigadas em cada caso, entre o novo que entra e tenta arrombar os ferrolhos do direito de entrada e o dominante que tenta defender o monopólio e excluir a concorrência”[9].
  2. Todo campo é definido por desafios específicos e regras em jogo. “Um campo, ainda que do campo científico, define-se entre outras coisas definindo paradas em jogo e interesses específicos, que são irredutíveis às paradas em jogo e aos interesses próprios de outros campos”[10].
  3. Todo campo contém uma doxa, um senso comum aceito, não discutido e que funciona como ponto zero da reflexão acerca do campo. “Daí a cumplicidade objectiva que está subjacente a todos os antagonismos. Esquece-se que a luta pressupõe um acordo entre os antagonistas sobre aquilo que merece que se lute e que está recalcado no que é óbvio, deixado no estado de doxa, quer dizer tudo o que faz o próprio campo, o jogo, as paradas em jogo, todos os pressupostos que tacitamente se aceitam, sem se saber sequer, pelo facto de se jogar, de se entrar no jogo”[11]. É a doxa que se relaciona com uma illusio, ou seja, com o encantamento causado pela imersão no microcosmo do campo que torna cada regra, cada elemento da doxa evidente[12].
  4. Todo campo possui seus capitais específicos. A conquista do objetivo do campo, do desafio maior do campo, a conquista do troféu do campo tende a ser o resultado da acumulação do capital específico ao longo tempo e, por si, também já aumenta o capital acumulado, reforçando o monopólio daquele que está no grupo dominante dentro do campo.

No interior do campo dá-se uma dinâmica de concorrência e dominação, derivada das estratégias de conservação ou subversão das estruturas sociais. Em todo campo a distribuição de capital é desigual, o que implica que os campos vivam em permanente conflito, com os indivíduos e grupos dominantes procurando defender seus privilégios em face do inconformismo dos demais indivíduos e grupos. As estratégias mais comuns são as centradas: na conservação das formas de capital; no investimento com vistas à sua reprodução; na sucessão, com vistas à manutenção das heranças e ao ingresso nas camadas dominantes; na educação, com os mesmos propósitos; na acumulação, econômica, mas, também, social (matrimônios), cultural (estilo, bens, títulos) e, principalmente, simbólica (status).[13]

Desta maneira, campo se faz como espaço de lutas, espaço que, visto em sua diacronia, se faz como um campo em transformação, em disputa. Esta disputa se faz através de estratégias que não precisam ser conscientes para que sejam aplicadas. O habitus é o elemento que, ao fornecer disposições práticas, fornece também formas de interpretação do mundo e de relação com os diferentes elementos do campo, ou seja, mesmo sem intenção de fazer, a estratégia do agente social tem relação com as disputas específicas do campo.

Considerações finais

A percepção da existência do campo se dá quando um troféu específico não tem qualquer valor para os agentes que não pertencem ao campo. Por exemplo: o completo desconhecimento prático do valor do prêmio Bola de Ouro no futebol europeu leva à crença de que o empreendimento em querer ganhá-lo seja obra de um ato interessado por valores de outro campo (por exemplo, a noção de que o prêmio pode aumentar os rendimentos econômicos do jogador que o vence).

Ao mesmo tempo, há efeito de campo quando se percebe que o entendimento de um elemento do campo só poder se dar quando se compreende a história específica do campo de produção do elemento.

“Ser filósofo é dominar o que é necessário dominar da história da filosofia para se saber ter um comportamento de filósofo no interior de um campo filosófico”[14], ou seja, o campo comporta o filósofo, mas exige certos reconhecimentos, certas aceitações não conscientes que acontecem num fluxo dialético de constituição e reprodução. A ação social no campo não é feita por estratégias conscientes, cínicas. Por exemplo, as diferentes estratégias utilizadas num campo da filosofia não são o resultado de um “cálculo cínico, a busca consciente da maximização do ganho específico, mas uma relação inconsciente entre um habitus e um campo”[15].

Desta forma, se percebe, além do campo, a importância da noção de habitus, que tentará resolver o problema entre o finalismo e o mecanicismo. Quando há alinhamento total entre a busca, o interesse investido não provoca qualquer consciência ao agente social de que há um interesse específico em jogo, de que há objetos específicos em disputa, de que há uma luta. Tudo se passa como se cada ato fosse um ato desinteressado.


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Referências

[1] CATANI, Afrânio Mendes. As possibilidades analíticas da noção de campo social. Educ. Soc., Campinas, v. 32, n. 114, jan.-mar, 2011, p. 192.

[2] CATANI, Afrânio Mendes. As possibilidades analíticas da noção de campo social… p. 192.

[3] BOURDIEU, Pierre. Questões de sociologia. 1ª edição, Fim de Século: Lisboa, 2003, p.119.

[4] Thiry-Cherques, Hermano Roberto. Pierre Bourdieu: a teoria na prática. Revista de Administração Pública [online]. 2006, v. 40, n. 1 [Acessado 2 Outubro 2021] , pp. 27-53. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S0034-76122006000100003>.

[5] BOURDIEU, Pierre. Esboço de uma teoria da prática In: ORTIZ, Renato (Org.). A sociologia de Pierre Bourdieu, São Paulo: Editora Ática, 1994, n. 39. Coleção Grandes. Cientistas Sociais, p. 65.

[6] BOURDIEU, Pierre. Questões de sociologia… p.120.

[7] Thiry-Cherques, Hermano Roberto. Pierre Bourdieu: a teoria na prática…

[8] BOURDIEU, Pierre. Questões de sociologia… p.120.

[9] BOURDIEU, Pierre. Questões de sociologia… p.120.

[10] BOURDIEU, Pierre. Questões de sociologia… p.120.

[11] BOURDIEU, Pierre. Questões de sociologia… p.121.

[12] Thiry-Cherques, Hermano Roberto. Pierre Bourdieu: a teoria na prática…

[13] Thiry-Cherques, Hermano Roberto. Pierre Bourdieu: a teoria na prática…

[14] BOURDIEU, Pierre. Questões de sociologia… p.125.

[15] BOURDIEU, Pierre. Questões de sociologia… p.125.

Cite este artigo:

SIQUEIRA, Vinicius. Bourdieu e o campo social. Colunas Tortas. Acesso em [DD Mês AAAA]. Disponível em <<https://colunastortas.com.br/bourdieu-campo/>>.

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