Capital cultural – Pierre Bourdieu

Enquanto elemento de explicação das relações de poder e das dinâmicas sociais em sociedades capitalistas ocidentais, o capital cultural é essencial para a análise da relação entre dominação e escolarização. Também é essencial para compreender a permanência das mesmas frações de classe em postos de exercício intelectual.

Índice

Introdução

O capital cultural “como símbolo de conhecimento útil e incorporado pelos sujeitos”[1] é todo valor cultural transmitido principalmente de pais para filhos, “ou seja, são seus hábitos, costumes, e gostos, que pode ou não ser totalmente incorporado pelo indivíduo”[2]. Este capital está inserido num jogo social de distribuição de formas de capital dentro da sociedade.

Cada sociedade tem sua própria gama de capitais específicos e Pierre Bourdieu entende que as sociedades capitalistas modernas são constituídas pelo capital econômico (como o mais relevante), seguido do capital cultural, enquanto, em terceiro lugar, capital social e capital simbólico (entendido como o prestígio que uma forma variada de diferentes capitais podem adquirir ao serem legitimados) estão em terceiro lugar[3]. O acúmulo destes capitais permite o exercício do poder de maneira eficiente e legítima.

O objetivo deste texto é expor as três formas que o capital cultural se mostra nas sociedades que tem nele um de seus capitais presentes utilizando como base o texto “Os três estados do capital cultural” de Pierre Bourdieu.

Para que serve o capital cultural?

O capital cultural serve à reprodução social, entretanto, ele não é uma propriedade de pura serventia. O capital cutural é uma consequência do mundo social e das relações hierarquicas que existem entre grupos e classes. É possível, a partir da observação do capital cultural, entender que “as frações mais ricas em capital cultural são propensas a investir mais na educação de seus filhos e, ao mesmo tempo, em práticas culturais propícias a manter e aumentar sua raridade específica”[4]. Ou seja, famílias ricas em cultura inserem seus filhos em aulas de piano, balé, ensino de línguas, professores particulares de arte, etc., com mais frequência que famílias pobres neste capital.

Tal introdução permite o desenvolvimento da competência cultural para apreciar a arte legitimada, para incorporar a cultura legitimada e para transformar em corpo tanto a competência cognitiva de reconhecê-las como a habilidade motora de reproduzi-las. Ao analisar a sociedade francesa, Bourdieu entende que

De fato, a parcela das frações mais ricas em capital cultural é tanto maior naquelas instituições situadas no topo da hierarquia propriamente escolar dos estabelecimentos de ensino (comparada, por exemplo, ao índice de êxito escolar anterior), atingindo seu máximo na instituição encarregada de assegurar a reprodução do corpo docente (Escola Normal Superior).[5]

O capital cultural é uma ferramenta conceitual que permite compreender a fração que permanece nos espaços sociais de cultura, mas que, por sua vez, define como é a própria estruturação do ensino no caso da França. Aqueles que dominam as melhores instituições educacionais são aqueles que acumulam o maior capital cultural e, assim, estão completamente adequados e submetidos às regras do campo acadêmico.


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Trata-se de uma ferramenta que rompe com quaisquer olhares que envolvem a consideração de pressupostos inerentes “tanto à visão comum que considera o sucesso ou fracaso escolar como efeito das ‘aptidões’ naturais, quanto às teorias do ‘capital humano'”[6]. É justamente o olhar para o capital cultural que permite compreender como ele se transmite dentro de casa:

Além disso, deixando de colocar as estratégias de investimento escolar no conjunto das estratégias educativas e no sistema de estratégias de reprodução, sujeitam-se a deixar escapar, por um paradoxo necessário, o mais oculto e determinante socialmente dos investimento educativos, a saber, a transmissão doméstica do capital cultural. Suas interrogações sobre a relação entre a “aptidão” (ability) para os estudos e o investimento nos estudos provam que eles ignoram que a “aptidão” ou o “dom” são também produtos de um investimento em tempo e em capital cultural.[7]

Assim, o sistema de ensino tende a ser uma instituição de reprodução social por ser diferencialmente construído, pois cada escola ou universidade tem seu nível de exigência e sua abrangência de conteúdo, além de seus proprio métodos de ensino, mas a transmissão familiar do capital cultural distribui os alunos para suas respectivas instituições, tornando “natural” a distinção entre alunos de boas e péssimas universidades a depender do nível de capital cultural apropriado. 

Mas essa apropriação do capital cultural se dá por três formas.

O capital cultural incorporado

A incorporação do capital cultural é uma das formas eficiente de dissimulá-lo. Ele é internalizado e assume sua forma no habitus do agente social a depender de sua classe social e dos campos em que está inserido.

A maior parte das propriedades do capital cultural pode inferir-se do fato de que, em seu estado fundamental, está ligado ao corpo e pressupõe sua incorporação. A acumulação de capital cultural exige uma incorporação que, enquanto pressupõe um trabalho de inculcação e de assimilação, custa tempo que deve ser investido pessoalmente pelo investidor (tal como o bronzeamento, essa incorporação não pode efetuar-se por procuração).[8]

O tempo de investimento é diretamente relacionado às atividades proporcionadas pela família à criança desde sua tenra infância: toda a forma de ser relacionada aos modos da classe dententora de capital cultural, como o respeito à discrição, aos bons modos, à boa música clássica ou aos clássicos da MPB, aos bons livros clássicos da literatura europeia ou lusófona. Assim como, evidentemente, ao falar bem, evitar xingamentos, evitar gírias, manter a compostura, evitar uma conduta espalhafatosa, etc.

Junto a isso, as aulas de piano, o incentivo à leitura, ao cinema alternativo, as aulas de inglês, espanhol e francês. O tempo de investimento é literalmente o tempo da vida, pois a vida é preenchida pelo objetivo final do campo cultural, pelo reconhecimento do campo cultural, que envolve o domínio dos objetos e dos objetivos nele presentes.

Segundo Bourdieu, o capital cultural

pode ser adquirido, no essencial, de maneira totalmente dissimulada e inconsciente, e permanece marcado por suas condições primitivas de aquisição. Não pode ser acumulado para além das capacidades de apropriação de um agente singular; depaupera e morre com seu portador.[9]

Essa transmissão e absorção que são individuais dissimula de maneira eficaz a existência dessa forma de capital. Torna mais eficaz a ideologia que retira da transmissão social e familiar o êxito escolar, universitário e, como consequência em certa medida, econômico. Isso porque a forma mais fácil de visualizar a apropriação do capital, qué a forma objetiva e será detalhada em seguida, depende diretamente do capital cultural incorporado pelo conjunto da família. Bourdieu chama isso de “efeito Arrow generalizado”:

O que designo por efeito “Arrow” generalizado, ou seja, o fato de que o conjunto de bens culturais, quadros, monumentos, máquinas, objetos trabalhados e, em particular, todos aqueles que fazem parte do meio ambiente natal, exercem um efeito educativo por sua simples existência, é, sem dúvida, um dos fatores estruturais da explosão escolar, no sentido em que o crescimento da quantidade de capital cultural acumulado no estado objetivado aumenta a ação educativa automaticamente exercida pelo meio ambiente.[10]

A acumulação acontece desde a origem quando se trata de família de forte capital cultural e o tempo de acumulação tende a ser, como dito anteriormente, a totalidade da vida. É por isso que é uma das formas mais dissimuladas de transmissão de capital e, “no sistema das estratégias de reproducão, recebe um peso tanto maior quanto mais as formas diretas e visiveis de transmissão tendem a ser mais fortemente censuradas e controladas”[11].

Assim, é possível chegar à conclusão de que o tempo é o elemento central no processo de aquisição que liga capital econômico e capital cultural. É necessário ter tempo livre para aquisição, é necessário não trabalhar ou lidar com questões “mundanas” para aproveitar o tempo máximo visando acúmulo de capital cultural:

Com efeito, as diferenças no capital cultural possuído pela família implicam em diferenças: primeiramente, a precocidade do início do empreendimento de transmissão e de acumulação, tendo por limite a plena utilização da totalldade do tempo biologicamente disponível, ficando o tempo livre máximo a servico do capital cullural máximo; e depois na capacidade assim definida para satisfazer às exigências prapriamente culturais de um empreendimento de aquisição prolongado.[12]

O tempo utilizado para a aquisição de capital cultural é o tempo em que se deixar de ganhar, o tempo em que se deixa de se preparar para a vida com constrangimentos econômicos.

O capital cultural leva tempo para ser incorporado

O capital cultural objetivado

A forma objetivada do capital cultural é transmitida em sua materialidade, pois pode ser definida pelos bens culturais em seus suportes materiais: pinturas, monumentos, itens raros de coleção, etc. Ele só se realiza eficientemente em sua relação com o capital cultural incorporado: o apreciador do quadro precisa incorporar a competência cultural relativa à apreciação.

O capital cultural no estado objetivado apresenta-se com todas as aparências de um universo autônomo e coerente que, apesar de ser o produto da ação histórica, tem suas próprias leis, transcendentes às vontades individuais, e que – como bem mostra o exemplo da língua – permanece irredutível, por isso mesmo, àquilo que cada agente ou mesmo o conjunto dos agentes pode se apropriar (ou seja, ao capital cultural incorporado).[13]

Ou seja, herdar uma coleção de retratos é diferente de saber como apreciá-la ou saber como compreender a importância de sua existência. Ao mesmo tempo, é diferente também de saber com quem é possível compartilhar essa apreciação. Uma coleção de retratos precisa ser apreciada por um agente social com capital cultural incorporado em habitus, que compreende na prática a importância da sua existência e que compartilha com agentes legítimos no campo específico em que a apreciação artística ou histórica da coleção se insere.

É preciso não esquecer, todavia, que ele só existe e subsiste como capital ativo e atuante, de forma material e simbólica, na condição de ser apropriado pelos agentes e utilizado como arma e objeto das lutas que se travam nos campos da produção cultural (campo artístico,  científico, etc.) e, para além desses, no campo das classes sociais, onde os agentes obtém benefícios proporcionais ao domínio que possuem desse capital objetivado, portanto, na medida de seu capital incorporado.[14]

O capital cultural objetivado é dependente da existência de uma estrutura cognitiva internalizada que permita sua relevância.

O capital cultural institucionalizado

O capital cultural institucionalizado existe sob a forma de diplomas e certificados que se esquivam do caráter temporal e dos limites biológicos do mesmo capital incorporado. O limite do corpo impede o reconhecimento do capital a não ser que seja praticado e, mesmo praticado, a não ser que seja constantemente demonstrado a partir da convivência. O diploma, por sua vez, é uma garantia constante e jurídica:

A alquimia social produz uma forma de capital cultural que tem uma autonomia relativa em relação ao seu portador e, até mesmo em relação ao capital cutural que ele possui, efetivamente, em um dado momento histórico.[15]

Trata-se de um tipo de capital que garante o reconhecimento de sua incorporação, ou seja, que evita constrangimentos sociais em que o portador do capital é intimado a demonstrar seu valor, na falta de símbolos que o garantam. O vestibular é um exemplo, na medida em que o último dos aprovados e o primeiro dos desclassificados estão infinitesialmente próximos de acordo com o desempenho que tiveram, mas se situam em lugares completamente diferentes após a aprovação. O vestibular produz uma descontinuidade durável que, no Brasil, só pode se resolvida após a aprovação em uma nova oportunidade. “Vê-se claramente, nesse caso, a magia performática do poder de instituir, pode de fazer ver e de fazer crer, ou, numa só palavra, de fazer reconhecer”[16], afirma Bourdieu.

Quando o capital cultural pode ser institucionalizado, torna-se possível estabelecer comparações e compreender a conversão possível entre capital cultural em capital econômico, de tal maneira que o capital escolar pode ser convertido em determinado valor em dinheiro (em salário, por exemplo).

Produto da conversão de capital econômico em capital cultural, ele estabelece o valor, no plano do capital cutural, do detentor de determinado diploma em relação aos outros detentores de diplomas e, inseparavelmente, o valor em dinheiro pelo qual pode ser trocado no mercado de trabalho – o investimento escolar só tem sentido se um mínimo de reversibilidade da conversão que ele implica for objetivamente garantido.[18]

Ou seja, sua institucionalização permite que, numa sociedade cujo capital econômico é determinante, o capital cultural possa gerar previsibilidade em relação aos rendimentos possíveis de seu possuidor. Por exemplo: medicina e direito serem cursos tão bem quistos em nossa sociedade, na medida em que são quase garantia de bons rendimentos.

Considerações finais

Enquanto elemento de explicação das relações de poder e das dinâmicas sociais em sociedades capitalistas ocidentais, o capital cultural é essencial para a análise da relação entre dominação e escolarização. Também é essencial para compreender a permanência das mesmas frações de classe em postos de exercício intelectual.

Por sua vez, o entendimento de suas três formas permite compreender como ele existe na materialidade da vida cotidiana, além de desvendar como a transmissão do capital cultural acontece principalmente na família.

Referências

[1] SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão à lava-jato. Rio de Janeiro: Leya, 2017. p.96.

[2] OLIVEIRA, G. C.; SANTOS, R. O capital cultural na educação: uma análise sobre o desempenho escolar. Cadernos de Educação: Ensino e Sociedade, Bebedouro SP, 4 (1), 2017, p. 232.

[3] BOURDIEU, Pierre. What makes a social class? On the theoretical and practical existence of groups. Berkeley Journal of Sociology, n. 32, p. 1-49, 1987.

[4] BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 324.

[5] BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas… p. 325.

[6] BOURDIEU, Pierre. Escritos de educação. 9ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007, p. 73.

[7] BOURDIEU, Pierre. Escritos de educação… p. 73.

[8] BOURDIEU, Pierre. Escritos de educação… p. 74.

[9] BOURDIEU, Pierre. Escritos de educação… p. 75.

[10] BOURDIEU, Pierre. Escritos de educação… p. 75.

[11] BOURDIEU, Pierre. Escritos de educação… p. 76.

[12] BOURDIEU, Pierre. Escritos de educação… p. 76.

[13] BOURDIEU, Pierre. Escritos de educação… p. 77-78.

[14] BOURDIEU, Pierre. Escritos de educação… p. 78.

[15] BOURDIEU, Pierre. Escritos de educação… p. 78.

[16] BOURDIEU, Pierre. Escritos de educação… p. 78.

[17] BOURDIEU, Pierre. Escritos de educação… p. 79.

[18] BOURDIEU, Pierre. Escritos de educação… p. 79.

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