A questão da construção de classes sociais para Pierre Bourdieu está intimamente relacionada com outros conceitos fundamentais de sua sociologia, como o habitus, o espaço social, os campos sociais e o poder simbólico. A problemática bourdieusiana está na construção científica de classes que possam fornecer um poder explicativa às dinâmicas sociais observadas em pesquisa empíricas e, ao mesmo tempo, contribuir como base para essas próprias pesquisas e as explicações possíveis de se ter perante os dados coletados.
As classes, assim, são vistas como produto de uma visão relacional da vida social e, acima de tudo, do entendimento que as relações sociais têm uma característica agonística, um princípio de luta não necessariamente explícita ou violência, mas sempre povoada de tensões e disputas. Junto a isso, um entendimento de que a formação da classe enquanto conceito envolve sua consideração enquanto um grupo social objetivo e, ao mesmo tempo, um grupo social que arbitrariamente se coloca na realidade social enquanto determinante para a própria organização da sociedade no exercício do poder simbólico (WACQUANT, 2013).
Ou seja, a classe é um grupo como todos os outros e, diferentemente de todos os outros, a partir de seus agentes, da esfera pública e da participação do campo intelectual, se coloca e faz real sua posição de determinante social no bojo de um conjunto de lutas sociais pela classificação e pela hierarquia social.
Como a investigação sobre as práticas dos diferentes agentes em suas diferentes classes acontece por meio da revelação dos efeitos que se encontram na sua origem, a sistemacidade dos estilos de vida e dos capitais necessários para sua realização, e, ainda, a distinção que eles podem gerar quando colocados em relação uns com os outros torna-se relevante. Evocar o conceito de habitus de classe enquanto uma “forma incorporada das condições de classe e dos condicionamentos que ela impõe” (BOURDIEU, 2017, p. 97) é extremamente relevante, na medida em que contribui para observar a relação entre as condições objetivas e as práticas sociais dos diferents agentes situados sobre essas condições. As condições homogêneas de existência impõem condicionamentos homogêneos de existência e sistemas de disposição, habitus, homogêneos que engendram práticas sociais semelhantes.
Construir a classe objetiva, como conjunto de agentes situados em condições homogêneas de existência, impondo condicionamentos homogêneos e produzindo sistemas de disposições homogêneas, próprias a engendrar práticas semelhantes, além de possuírem um conjunto de propriedades comuns, propriedades objetivadas, às vezes, garantidas juridicamente – por exemplo, a posse de bens ou poderes – ou incorporadas, tais como os habitus de classe – e, em particular, os sistemas de esquemas classificatórios (BOURDIEU, 2017, p. 97).
O fato das condições de existência serem homogêneas traduz, ao mesmo tempo, a classe social enquanto realidade de múltiplos fatores, sendo impossível reduzí-la à renda, à posição relativa ao modo de produção, características essas que seriam descritivas e objetivas, traduzindo um potencial político para categorias não associadas às práticas conscientes dos agentes e nem associadas a movimentação social possível pelo grupo; mas também enquanto um conceito que busca explicar certa regularidade complexa, certa reprodução, certa semelhança que supera o olhar subjetivista sobre a realidade social.
Na medida em que o objetivo de Bourdieu é unir a teoria com a prática da pesquisa, torna-se necessário realizar deslocamentos que possam explicar, por exemplo, a oposição entre as diferentes frações de trabalhadores que culmina em uma média de votos maior em Lula na região nordeste e em Bolsonaro na região sudeste, por exemplo. Ou então, na oposição xenofóbica histórica e não associativa entre trabalhadores paulistas e trabalhadores nordestinos. Até mesmo a oposição entre trabalhadores formalizados e o subproletariado marginalizado no contexto das metrópoles urbanas. Ou na oposição entre o trabalhador evangélico das favelas e do católico dos suburbios. Também, claro, das oposições entre grandes capitalistas de famílias quatrocentonas e capitalistas emergentes que podem até mesmo se igualar em acúmulo de capital econômico, mas se distanciam em capital cultural.
Num caminho duplo, as condições de existência são entendidas como as condições objetivas de vida dos agentes, mas também as propriedades incorporadas, como os sistemas de classificação e de disposição entendidos como habitus.
A classe social não é definida por uma propriedade (mesmo que se tratasse da mais determinante, tal como o volume e a estrutura do capital), nem por uma soma de propriedades (sexo, idade, origem social ou étnica – por exemplo, parcela de brancos e de negros, de indígenas e de imigrantes, etc. -, remunerações, nível de instrução, etc.), tampouco por uma cadeira de propriedades, todas elas ordenadas a partir de uma propriedade fundamental – a posição nas relações de produção -, em uma relação de causa e efeito, de condicionante a condicionado, mas pela estrutura das relações entre todas as propriedades pertinentes que confere seu valor próprio a cada uma delas e aos efeitos que ela exerce sobre as práticas (BOURDIEU, 2017, p. 101).
É a associação entre essas diferentes propriedades que permite compreender classe não só enquanto uma categoria pertencente à estrutura econômica, mas também inserida na esfera social enquanto potencial de movimentação relativamente homogênea perante as diferentes questões que envolvem a vida cotidiana destes grupos.
A construção, como é o caso deste trabalho, de classes – tanto quanto de existência e dos condicionamentos que elas impõem – implica, portanto, levar em consideração de modo consciente – na própria construção destas classes e na interpretação das variações, segundo estas classes, da distribuição das propriedades e das práticas – a rede de características secundárias manipuladas, de maneira mais ou menos inconsciente, sempre que é feito apelo a classes construídas com base em um critério único, mesmo que fosse tão pertinente quanto a profissão; trata-se também de apreender a origem das divisões objetivas, ou seja, incorporadas ou objetivadas em propriedades distintivas, com base nas quais os agentes têm mais possibilidades de se dividirem e de voltarem a agrupar-se realmente em suas práticas habituais, além de se mobilizarem ou serem mobilizados – em função, é claro, da lógica específica, associada a uma história específica, das organizações mobilizadoras – pela e para a ação política, individual ou coletiva (BOURDIEU, 2017, p. 101).
Junto a isso, há uma característica diacrônica: a trajetória social é um elemento importante na divisão das frações de classe. Há uma diferença em relação à própria adequação do agente social que está, no dado momento, na sua própria classe do origem e aquele que nasceu sob as regras de uma classe específico e, a partir da mobilidade social, ascendeu ou descendeu para outra classe. A visão bourdieusiana contribui para entender as oposições entre grandes capitalistas e a nova burguesia, ou, de um ponto de vista sócio-cultural, entre os ricos e os novos ricos.
O caráter estatístico da relação que se estabelece entre o capital de origem e o capital de chegada é o que faz com que seja impossível dar conta das práticas em função unicamente das propriedades que definem a posição ocupada, em determinado momento, no espaço social: a afirmação de que os membros de uma classe que, na origem, dispunham de determinado capital social econômico e cultural, estão votados, com determinada probabilidade, a uma trajetória escolar e social que conduz a determinada posição, implica dizer, de fato, que uma fração da classe – que não pode ser determinada a priori nos limites do sistema explicativo considerado – está destinada a desviar-se em relação à trajetória mais frequente para a classe no seu todo, empreendendo a trajetória, superior ou inferior, que era a mais provavel para os membros de outra classe, desclassificando-se, assim, pelo alto ou por baixo (BOURDIEU, 2017, p. 105).
A oposições práticas que envolvem a trajetória de cada indivíduo são diretamente relacionadas ao habitus incorporado, às disposições incorporadas que permitem o trânsito no espaço social específico que os agentes da classe em que o indivíduo se encontra.
Considerações finais
Ou seja, a classe aparece como o resultado de uma relação entre propriedades adquiridas ao longo da vida, entre propriedades relativamente estáveis da classe de origem, entre a relação da capacidade de reproduzi-las na nova classe ou na própria classe, entre os acúmulos de capitais e o trânsito que se tem nos diferentes campos sociais.
Nenhuma propriedade é a prioristicamente determinante e nenhuma divisão objetiva é absoluta. Todas dependem dos dados recolhidos na pesquisa empírica e na análise histórica do espaço estudado, representados graficamente por meio da utilização da análise de correspondência múltipla. Por fim, a própria classe enquanto um determinante social é colocada em discussão, na medida em que a configuração social em que a classe é seu determinante também tem relação com um poder simbólico que assim a localiza, que assim pressiona a própria configuração política, social e econômica da sociedade.
Referências
BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. 2ª ed, Porto Alegre, RS: Zouk, 2017.
WACQUANT, Loic. Poder simbólico e fabricação de grupos. Revista Novos Estudos, julho de 2013.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.