Da série “Michel Pêcheux: Conceitos Fundamentais“.
Na análise do discurso francesa (AD), que tem como principal teórico e entusiasta o filósofo Michel Pêcheux, o conceito de condição de produção tem um lugar privilegiado, na medida em que não é mais possível atribuir ao sujeito a produção de suas falas (portanto, não é mais possível afirmar que o sujeito é a fonte do discurso).
O sujeito, que aqui será abordado brevemente, é um efeito ideológico elementar, fruto da interpelação que recebe da ideologia: nesta maneira althusseriana de pensá-lo, o sujeito concreto é sempre resultado da interpelação de indivíduos concretos[1]. Aqui, Althusser é claro em seu desenvolvimento, o sujeito é condição de existência da ideologia, ao mesmo tempo em que a ideologia interpela indivíduos para que se tornem sujeitos.
Se um indivíduo está andando na rua e é parado pela polícia, que grita “Ei! Você!”, o indivíduo, como resposta a esta ação, se volta à polícia e se assume como sujeito daquela interpelação, mesmo se o grito não tenha sido para ele. O que o torna sujeito é o reconhecimento de que a interpelação se dirigia diretamente a ele e não a outra pessoa[2].
Um indivíduo (90% das vezes é o chamado) volta-se, crendo-desconfiando-sabendo que é a ele que chamam, portanto reconhecendo que <<é efetivamente ele>> que é visado pela interpelação […] A existência da ideologia e a interpelação dos indivíduos como sujeitos são uma única e mesma coisa[3].
Na medida em que a ideologia é eterna, porque (para Althusser) é a representação da relação imaginária do sujeito com o mundo e o sujeito só é sujeito enquanto houver ideologia para lhe interpelar como tal, então todos os indivíduos são sempre-já sujeitos e a noção de indivíduo (a unidade humana que ainda estaria fora da ideologia) é uma noção abstrata em relação aos sujeitos concretos que já são[4].
Um exemplo do estado de sempre-ser sujeito é o caso dos bebês que recebem nome, têm uma vida planejada e projetada pelos familiares. Antes mesmo de nascerem, já estão incluídos dentro do sistema de coisas da sociedade e, através da ideologia (por meio de agentes dos aparelhos de Estado), serão constantemente interpelados e assujeitados.
A condição de sujeito, resultante da interpelação de indivíduos, gera dois esquecimentos que Pêcheux explicita: o primeiro se refere à ilusão do sujeito de se considerar fonte do sentido de uma sequência de enunciados, já o segundo está na impressão de realidade que o sujeito tem daquilo que diz, enquanto desconsidera a existência de tudo aquilo que, inconscientemente, não seleciona como dizível[5].
Ambos os esquecimentos são diretamente relacionados com as condições de produção do discurso, que é definida por Pêcheux como as “determinações que caracterizam um processo discursivo”[6]. É necessário voltar ao artigo inicial em que o autor apresenta sua proposta de Análise Automática do Discurso (AAD) antes de definir as condições de produção do discurso. Michel Pêcheux afirma que uma normalidade local que controla a produção do discurso é materializada não só nos predicados atribuídos a um sujeito, mas também nas transformações que esses predicados sofrem durante a prática do discurso e, consequentemente, em seu próprio processo de produção.
O processo de produção do discurso é definido pelo autor como “o conjunto de mecanismos formais que produzem um discurso de tipo dado em ‘circunstâncias’ dadas”[7]. As “circunstâncias” de um discurso são suas condições de produção. Portanto, o processo de produção do discurso é o conjunto de mecanismos formais que produzem um discurso de um tipo dado em condições de produção dadas.
Um discurso é sempre pronunciado a partir de condições de produção dadas: por exemplo, o deputado pertence a um partido político que participa do governo ou a um partido da oposição; é porta-voz de tal ou tal grupo que representa tal ou tal interesse, ou então está ‘isolado’, etc. Ele está, pois, bem ou mal, situado no interior da relação de forças existentes entre os elementos antagonistas de um campo político dado. O que diz, o que anuncia, promete ou denuncia, não tem o mesmo estatuto conforme o lugar que ele ocupa; a mesma declaração pode ser uma arma temível ou uma comédia ridícula segundo a posição do orador e do que ele representa, em relação ao que diz. Um discurso pode ser um ato político direto ou um gesto vazio, para ‘dar o troco’, o que é uma outra forma de ação política.[8]
Ou seja, as condições de produção do discurso mesclam o jogo de imagens que o sujeito está inserido (as formações imaginárias a respeito de sua própria posição e da posição do outro) e a situação concreta historicamente determinada.
Este jogo de imagens começa com as funções imaginárias que os sujeitos A e B podem atribuir a si[9]:
- De A para A: “Quem sou eu para lhe falar assim?”;
- De B para A: “Quem é ele para que eu lhe fale assim?”;
- De B para B: “Quem sou eu para que ele me fale assim?”
- De A para B: “Quem é ele para que me fale assim?”
Depois, passa para as impressões dos sujeitos postos ao referente (R):
- De A sobre R: “De que lhe falo assim?”;
- De B sobre R: “De que ele me fala assim?”.
É necessário entender que essas perguntas são respondidas na formação das funções imaginárias que um sujeito tem do outro no processo de produção do discurso e, portanto, determinam as possibilidades de enunciação e os efeitos de sentido do discurso durante a troca de enunciações. Mas não termina por aí, afinal, após receber críticas por não ter apresentado um conceito de condições de produção coeso, Pêcheux[10] esclarece um ponto importante: as condições de produção não são resistências que impedem o livre fluxo das palavras (o funcionamento da linguagem), ou seja, não há uma semântica anterior ao discurso que seria castrada pelos filtros que as condições de produção impõem.
É por isso que a expressão condições de produção de um discurso
pode apresentar certas ambiguidades: parece, efetivamente, à luz do que precede, que se pode entender por isso, sejam as determinações que caracterizam um processo discursivo, sejam as características múltiplas de uma “situação concreta” que conduz à “produção”, no sentido linguístico ou psicolinguístico deste termo na superfície linguística de um discurso empírico concreto.[11]
A teoria não-subjetiva do discurso de Pêcheux pretende eliminar a segunda opção em favor da primeira, ou seja, as condições de produção do discurso não freiam uma liberdade metafísica anterior ao discurso, mas dão condição de possibilidade, determinam (num sentido amplo) aquilo que pode ser dito, portanto, não só reprimem, como prescrevem.
A inscrição do sujeito num espaço sócio-ideológico o coloca num campo de posições que lhe dá possibilidades determinadas de fala (que vão variar conforme sua posição em relação às formações ideológicas). Junto a isso, a transição do sujeito por diferentes formações discursivas o coloca num campo enunciativo daquilo que, na prática, pode ser dito. As condições de produção, então, envolvem o sujeito e suas contradições, que se impõem nos esquecimentos (acima ditos), e sua posição social, que depende da ideologia, de sua posição em relação ao modo de produção, de sua posição na esfera específica em que o discurso é praticado.
As condições de produção no discurso de Padre Antônio Vieira
Padre Antônio Vieira (1608 – 1697) é considerado um dos maiores prosadores da Língua Portuguesa e grande orador sacro do período Barroco. Seus Sermões são estudados como exemplar de qualidade da prosa de seu período. Schermack e Freitas[12] analisam as condições de produção do Sermão de Santo Antônio, proferido em São Luís do Maranhão, em 1964.
Eles ressaltam que as condições de produção do discurso incluem
os sujeitos, a situação discursiva (as circunstâncias da enunciação, o aqui e o agora do dizer, o contexto imediato; o contexto sócio-histórico ideológico), a memória discursiva, o interdiscurso. O contexto imediato e o sócio-histórico ideológico estão separados a fim de explicação, pois na prática discursiva eles são indissociados.[13]
No discurso de Antônio Vieira é possível reconhecer uma iniciativa aguda em interferir na esfera política, ao se preocupar com os problemas sociais de sua época, como a escravidão indígena, que lhe é um tema caro. É exatamente neste sentido que o Padre utiliza a metáfora dos peixes que comem uns aos outros para indicar a exploração dos colonos sobre os índios: “nesse sentido, vale destacarmos que a Análise do Discurso considera como constitutivo do sentido o contexto histórico–social em que o texto foi produzido. Assim, devemos considerar que o fato de ignorarmos essa realidade alteraria todo o sentido do enunciado”[14].
Portanto, “se considerássemos a hipótese de que este sermão, por exemplo, tivesse sido escrito e pregado no século XXI, o público ouvinte de Vieira poderia ser ‘os políticos corruptos da atualidade’ e as críticas poderiam estar destinadas às desigualdades sociais de um modo geral”[15].
Além disso, sublinham os autores. Padre Antônio Vieira ocupa um lugar ideológico específico: é missionário jesuíta e orador. Suas intervenções são determinadas pela iniciativa cristã de identificar a alma nos índios e dominar a técnica da oratória – e por um público cativo. O encontro das formações discursivas religiosa e política numa sociedade escravocrata dão materialidade para seu discurso.
As condições de produção do discurso na mídia
Medeiros[16] foca em uma campanha da Veja para colocar em prática a AD. Por ser um agente na mídia impressa, a Veja se vê amparada pelo ideal da essência do jornalismo: a “(in)formação (formação prévia): o dever de informar e o direito que os cidadãos têm de serem informados”[17].
A informação como norma, ou melhor, o direito à informação como fundamento, não possibilita que qualquer enunciado seja dito nem que os enunciados possíveis sejam ditos de qualquer forma. O modo de interpelação dos produtos de mídia também é específico (no caso do estudo de Medeiros, a revista impressa).
Tomando como exemplo a revista Veja, a autora percebe uma forma específica de elaboração dos enunciados: a repetição estereotipada, que envolve a multiplicidade de vezes em que o “antes e depois” (maneira de comparar situações de maneira persuasiva e indicar qualquer seria o lado correto – que é sempre o do “depois”) é repetido junto à noção de que a revista tem o poder, não só de denunciar aquilo que não gosta, como de propor e realizar aquilo que pretende[18].
A imagem da campanha é composta por um menino branco segurando duas fotos: a do “antes” é de um menino negro desnutrido, já a do “depois” é a foto de um menino negro se alimentando com uniforme escolar.
A revista parte do princípio, portanto, de que ela conseguirá (ou que seus agentes conseguirão por via dela) trazer o “depois” à tona. Apesar de não dito por Medeiros, parte das condições de produção do discurso da Veja envolve o PSDB no governo federal (a Veja é uma revista declaradamente à direita no espectro político) e a fome ainda matando no nordeste. Pode-se concluir que o chamado da revista para uma suposta união dos leitores em prol da vitória contra a miséria – e não um chamado à crítica ao governo federal – envolve o posicionamento ideológico do meio somado à necessidade de tratar de tal assunto, já que sua solução tomada pela revista – e aqui tomo emprestado o conceito de Bourdieu – aumenta o capital simbólico específico acumulado pelo PSDB, que poderia manter suas políticas neoliberais, alinhadas aos interesses conscientes da revista.
Considerações finais
As condições de produção do discurso são históricas e não podem ser reduzidas às formações imaginárias, na medida em que as englobam.
Referências
[1] ALTHUSSER, Louis. Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado. 1ª ed, Lisboa: Editorial Presença, sem data de publicação, p. 98-99.
[2] ALTHUSSER, Louis. Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado… p. 99-100.
[3] ALTHUSSER, Louis. Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado… p. 100.
[4] ALTHUSSER, Louis. Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado… p. 102.
[5] PÊCHEUX, Michel. FUCHS, Catherine. A Propósito da Análise Automática do Discurso: Atualização e Perspectivas IN GADET, F. HAK, T. (Org.). Por Uma Análise Automática do Discurso: Uma Introdução à Obra de Michel Pêcheux. 3ª Ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1997, p. 171-176.
[6] PÊCHEUX, Michel. FUCHS, Catherine. A Propósito da Análise Automática do Discurso: Atualização e Perspectivas… p.182.
[7] PÊCHEUX, Michel. Análise Automática do Discurso (AAD-69) IN GADET, F. HAK, T. (Org.). Por Uma Análise Automática do Discurso: Uma Introdução à Obra de Michel Pêcheux. 3ª Ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1997, p. 74.
[8] PÊCHEUX, Michel. Análise Automática do Discurso (AAD-69)… p.77.
[9] PÊCHEUX, Michel. Análise Automática do Discurso (AAD-69)… p.78-79.
[10] PÊCHEUX, Michel. FUCHS, Catherine. A Propósito da Análise Automática do Discurso: Atualização e Perspectivas… p.179.
[11] PÊCHEUX, Michel. FUCHS, Catherine. A Propósito da Análise Automática do Discurso: Atualização e Perspectivas… p.182.
[12] K.Q. SCHERMACK; E.C. FREITAS. A formação discursiva e as condições de produção no discurso vieiriano: uma análise do sermão de Santo Antônio. Revista MOARA n.37, p.45-59, jan./jun., 2012, Estudos Literários.
[13] K.Q. SCHERMACK; E.C. FREITAS. A formação discursiva e as condições de produção no discurso vieiriano: uma análise do sermão de Santo Antônio… p.51.
[14] K.Q. SCHERMACK; E.C. FREITAS. A formação discursiva e as condições de produção no discurso vieiriano: uma análise do sermão de Santo Antônio… p.57.
[15] K.Q. SCHERMACK; E.C. FREITAS. A formação discursiva e as condições de produção no discurso vieiriano: uma análise do sermão de Santo Antônio… p.57.
[16] MEDEIROS, Caciane Souza de. As Condições de Produção e o Discurso na Mídia: A Construção de um Percurso de Análise. Revista FAMECOS/PUCRS nº20, p.48-55, dez., 2008.
[17] MEDEIROS, Caciane Souza de. As Condições de Produção e o Discurso na Mídia: A Construção de um Percurso de Análise… p. 51.
[18] MEDEIROS, Caciane Souza de. As Condições de Produção e o Discurso na Mídia: A Construção de um Percurso de Análise… p. 54.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.
adoro seus textos, obrigado por compartilha-los na internet
Obrigado pelo comentário, Mateus!
Você tem algum texto sobre a obra A ordem do discurso, Foucault?
Infelizmente, não, Alessandra!
Texto muito bom, vai ajudar no meu seminário sobre Análise do discurso.
Nos dê mais informações sobre seu seminário, Grace!
Estou começando agora meus estudos em AD e seu texto foi esclarecedor! Obrigada!
Muito obrigado, Maria Alice! Volte sempre ao Colunas Tortas!
Seu site contribui grandemente a todos nós, que somos estudantes e buscamos informação de qualidade. Busque mais, se puder, aborde mais pensadores e compartilhe mais informação. Estou louco para ler e aprender mais. Grande Abraço!
Obrigado pela força, Felipe!