Cossujeitos de pesquisa – C. R. Brandão

Para além de uma pesquisa com forte influência da educação popular, é uma pesquisa que envolve uma pedadogia política emancipadora, em que o outro é reconhecido como um sujeito legítimo de participação e, enquanto um outro, é parte do nós, do todo da pesquisa, tomador de decisão e detentor da palavra que fomenta o diálogo.

Não há caminho fora da participação.

Paulo Freire (1987) salienta que é através da palavra que as pessoas podem se reunir enquanto sujeitos congnicentes e pronunciar o mundo. A palavra, evidentemente, transformada em diálogo, quando o outro não somente fala para ser escutado, mas domina e participa do ato de falar enquanto atividade criadora e existencial humana.

O mundo media a pronúncia que, enquanto ato em conjunto, se encontra numa interpretação coletiva do mundo, preparado para sua própria transformação. O objetivo deste artigo é relacionar o ato do dizer em conjunto com entendimento do diálogo enquanto sua condição a partir de Brandão (2006) e Freire (1987).

Evidentemente, este ato de falar que Freire evoca não é relacionado somente ao uso do aparelho formal da enunciação. Também não se limita ao entendimento do discurso enquanto efeito de sentido entre locutores. Trata-se do ato do dizer verdadeiro, da palavra que movimenta o mundo ou, em outros termos, da palavra que é legitimada na medida em que seu dizer precisa ser escutado e sua escuta culmina em práticas não discursivas.

A existência, porque humana, não pode ser muda, silenciosa, nem tampouco pode nutrir-se de falsas palavras, mas de palavras verdadeiras, com que os homens transformam o mundo. Existir, humanamente, é pronunciar o mundo, é modificá-lo. O mundo pronunciado, por sua vez, se volta problematizado aos sujeitos pronunciantes, a exigir deles novo pronunciar (FREIRE, 1987, p. 44).

A pronunciação dita por um sujeito legítimo do dizer exige uma nova pronunciação, síntese das pronunciações anteriores, síntese da dialética próprio do diálogo entre sujeitos reconhecidamente legítimos.

Entende-se, a partir disso, que o diálogo é impossível quando o outro é somente um objeto que fala, ou seja, somente o alvo de uma fala, mas não o falante que interfere na própria fala do enunciador. A ausência de uma coexistência entre coenunciadores defina a possibilidade de se dizer a palavra verdadeira.

Mas, se dizer a palavra verdadeira, que é trabalho, que é práxis, é transformar o mundo, dizer a palavra não é privilégio de alguns homens, mas direito de todos os homens. Precisamente por isto, ninguém pode dizer a palavra verdadeira sozinho, ou dizê-la para os outros, num ato de prescrição, com o qual rouba a palavra aos demais (FREIRE, 1987, p. 44).

A construção do enunciado verdadeiro, então, é preconizada enquanto ato coletivo. A pesquisa participante, por sua vez, é um modelo de pesquisa centrado na aplicação de condições que potencialize o dizer. De tal maneira que este dizer emerga enquanto ato político, de transformação. Carlos Brandão compreende que, entre diversos pontos centrais do desenvolvimento de uma pesquisa participante, há dois elementos a se considerar:

  1. “Deve-se partir da realidade concreta da vida cotidiana dos próprios participantes individuais e coletivos no processo, em suas diferentes dimensões e interações” (BRANDÃO, 2006, p. 34), ou seja, as experiências dos sujeitos que participam na pesquisa são essencias para a própria configuração da pesquisa e fazem parte do núcleo central de seu desenvolvimento. A vida cotidiana representaria, numa visão foucaultiana, a investigação que começa nas microrrelações periféricas para depois caminhar ao centro. Para além, a vida cotidiana é a própria condição da participação, na medida em que os sujeitos participantes são detentores de suas experiências cotidianas e dominares dos signos compartilhados para compreendê-la.
  2. “A relação tradicional de sujeito-objeto entre investigador-educador e os grupos populares deve ser progressivamente convertida em uma relação do tipo sujeito-sujeito, a partir do suposto de que todas as pessoas e todas as culturas são fontes originais de saber e que é da interação entre os diferentes conhecimentos que uma forma partilhável de compreensão da realidade social pode ser construída através do exercício da pesquisa. O conhecimento científico e o popular articulam-se criticamente em um terceiro conhecimento novo e transformador” (BRANDÃO, 2006, p. 35). A produção da relação sujeito-sujeito não acontece por meio de uma condescendência entre um pesquisador de um sujeito da pesquisa, pois neste caso, se firma ainda uma relação entre investigador, sujeito e criador, e participantes, objetos a serem investigados. Esta relação surge naquilo que Paulo Freire nomeia como amor, ou seja, compromisso com a verdade calada dos grupos oprimidos, desta forma, compromisso com o outro enquanto sujeito que tem como resultado o afastamento do próprio pesquisador enquanto protagonista da pesquisa.

Neste processo, surge uma confiança situada nos sujeitos: para além das ferramentas de investigação e dos métodos utilizados, a pesquisa participante permite que o pesquisador se compreenda como sujeito confiável e compreenda que os participantes, para além de sujeitos da pesquisa, são participantes também dignos de confiança. “Posso confiar em minha memória, em minhas palavras e nas de outros, meus interlocutores” (BRANDÃO, 2006, p. 45).

Desta forma, sujeitos da pesquisa se transformam em cossujeito de nossa pesquisa, de nossa investigação:

Na pesquisa participante parto de um duplo reconhecimento de confiança no meu “outro”, naquele que procuro transformar de “objeto de minha pesquisa” em “cossujeito de nossa investigação”. Devo confiar nele, tal como na observação participante, na qualidade de meu interlocutor. Aquele que no dizer de si-mesmo desenha para mim os cenários de vida e destino que pretendo conhecer e interpretar. Mas devo ir além, pois devo criar com ele e em seu nome (bem mais do que no meu próprio) um contexto de trabalho a ser partilhado em pleno sentido, como processo de construção do saber e como produto de saber conhecido e posto em prática através de ações sociais de que ele é (ou deveria ser) o protagonista e eu sou, ou deveria ser, o ator coadjuvante (BRANDÃO, 2006, pp. 45-46).

No fundo, a função autor é alterada radicalmente de tal maneira que o pesquisador exercita a organização e a formalização da pesquisa que, por sua vez, conduzida por todos. Desde a delimintação do problema até suas propostas de resolução e, por fim, a geração da autonomia no grupo local de participantes.

Considerações finais

A base de toda a produção participante é calcada no diálogo entre cossujeitos de pesquisa que, no estabelecimento da pesquisa, se transformam em pares:

Por isto, o diálogo é uma exigência existencial. E, se ele é o encontro em que se solidariza o refletir e o agir de seus sujeitos endereçados ao mundo a ser transformado e humanizado, não pode reduzir-se a um ato de depositar idéias de um sujeito no outro, nem tampouco tornar-se simples troca da, idéias a serem consumidas pelos permutantes (FREIRE, 1987, p. 45).

Para além de uma pesquisa com forte influência da educação popular, é uma pesquisa que envolve uma pedadogia política emancipadora, em que o outro é reconhecido como um sujeito legítimo de participação e, enquanto um outro, é parte do nós, do todo da pesquisa, tomador de decisão e detentor da palavra que fomenta o diálogo.

O reconhecimento da contribuição do outro, do diferente, e a partilha de seus saberes e experiências deveriam ser o ponto de partida da prática da pesquisa participante (BRANDÃO, 2006, p. 46).

Este reconhecimento do outro é o próprio reconhecimento de si enquanto parte do processo de transformação, mas não enquanto domador do outro no processo de entendimento dos problemas e das soluções possíveis.

Referências

C. R. Brandão. A pesquisa participante e a participação de pesquisa: um olhar entre tempos e espaços a partir da América Latina IN C. R. Brandão, D. Streck (Orgs.). Pesquisa participante: a partilha do saber (pp. 7-20). Aparecida, SP: Ideias e Letras, 2006.

Freire, Paulo. Pedagogia do oprimido, 17ª. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.

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