Da série “As heterotopias“.
O sexto princípio da heterotopologia é ligado à observação de outros espaços que delimitam a produção de ilusões, que se situam entre o real normatizado e o real perfeito produzido de maneira artificial. Uma utopia produzida para dessituar o sujeito da realidade social dominante e inseri-lo numa nova realidade produzida com abertura para novas possibilidades ou para uma experiência controlada.
Segundo Michel Foucault,
há outras heterotopias que, ao contrário, não são fechadas ao mundo exterior, mas constituem pura e simples abertura. Todo mundo pode entrar, mas, na verdade, uma vez que se entrou, percebe-se tratar-se de uma ilusão e que se entrou em parte alguma.[1]
Entrou-se em parte alguma, pois a entrada levou o sujeito a um lugar descolado do lado de fora. Como uma abertura para um mundo separado. O autor toma como exemplo os locais de acolhimento de andarilhos nas casas da América do Sul:
A heterotopia é um livro aberto, que tem, contudo, a propriedade de nos manter de fora. Por exemplo, nas casas do século XVIII na América do Sul, havia sempre, disposto ao lado da porta de entrada, mas antes da porta de entrada, um pequeno aposento diretamente aberto ao mundo exterior e que era destinado aos visitantes de passagem; ou seja, qualquer um, a qualquer hora do dia ou da noite, podia entrar nesse aposento, podia lá descansar, podia fazer o que quisesse, podia partir no dia seguinte pela manhã sem ser visto nem reconhecido por ninguém; porém, na medida em que esse aposento não se abria, de modo algum, para a própria casa, o indivíduo ali recebido jamais podia penetrar no interior da própria moradia familiar.[2]
Os motéis também estão nesta classificação de heterotopias, na medida em que a possibilidade da sexualidade ilegal, como a entrada de um esposo com sua amante, é liberada, mas ainda mantida fora do alcance dos olhos da sociedade. Uma sexualidade ilegal escondida, mas ainda previsível. Um ilegalismo ao ar livre e, de certa forma, protegido pelas paredes da heterotopia[3].
Entretanto, o exemplo mais interessante utilizado pelo autor são as antigas colônias artificiais implantadas nas Américas. Colônias criticadas por Engels pois eram denominadas como projetos de socialismo utópico, uma maneira de construir artificialmente uma sociedade perfeita. Na cultura pop, o filme A Vila traz uma heterotopia como local de destaque.
As heterotopias são espaços de contestação dos outros espaços. A partir de sua existência, há duas maneiras de apontar a contestação que a heterotopia prontifica: uma contestação que denuncia a irrealidade justamente dos outros espaço fora de si, ou seja, que denuncia um hipocrisia da sociedade, como nas casas de tolerância; mas também uma contestação que fabrica um espaço perfeito, que tenta anular as contradições da própria existência da esfera social
criando outro espaço real tão perfeito, tão meticuloso, tão bem disposto quanto o nosso é desordenado, mal posto e desarranjado; é como este último que funcionaram, ao menos no projeto dos homens, durante algum tempo – principalmente no século XVIII – as colônias. Seguramente, as colônias tinham uma grande utilidade econômica, mas existiam valores imaginários que lhes eram agregados e, sem dúvida, estes valores eram devidos ao prestígio próprio das heterotopias.[4]
Uma heterotopia ingênua, uma heterotopia que não visa realizar a ilusão que se propõe. Entretanto, seguindo um modelo parecido, Karoline Pereira exemplifica tal tipo de heterotopia com Brasília, a capital do Brasil. A cidade foi construído a partir de um modelo planejado de espaço urbano feito para acolher o pode institucional vigente. Trata-se, perfeitamente, de um espaço ilusório e organizado, denunciado a desordem orgânica das outras cidades e dos espaços rurais que cercam a capital.
Brasília não é uma cidade feita por gente, mas sim uma cidade feita para uma outra gente. Quem construiu Brasília, não o fez para alí morar: a cidade foi planejada para ser uma utopia institucional, de tal forma que a própria moradia é submissa ao poder institucional. Trata-se de uma cidade utopicamente organizada:
Um exemplo dessa perfeita organização é que, no projeto, a cidade está toda dividida em blocos numerados, um mundo todo mapeado, todo esquadrinhado, um mundo em que todos os lugares são conhecidos e especificados pelas suas funções, com setores demarcando atividades pré-estabelecidas, como o setor residencial, hoteleiro, administrativo ou de embaixadas. Além das largas e rápidas avenidas sem esquinas, cruzamentos ou semáforos.[5]
Brasília, por sua vez, é a terceira cidade com maior custo de vida no Brasil. Local que concentra profissionais que trabalham no serviço público e foi planejada para se parecer a um avião quando vista de cima. É uma cidade real, com organização utópica, mas inserida num contexto real imperfeito, é o contraste entre uma ordem perfeita planejada e marcada no concreto das construções da cidade que denuncia justamente a desordem real e orgânica do restante das cidades brasileiras.
Referências
[1] FOUCAULT, Michel. O corpo utópico / As heterotopias. Tradução de Salma Tannus Muchail. 1ª edição, São Paulo: N-1 edições, 2013, p. 27.
[2] FOUCAULT, Michel. O corpo utópico / As heterotopias… p. 27.
[3] FOUCAULT, Michel. O corpo utópico / As heterotopias… p. 27.
[4] FOUCAULT, Michel. O corpo utópico / As heterotopias… p. 28.
[5] PEREIRA, Karoline M. F. Corpo, interdição e heterotopia: a nudez do corpo da mulher no discurso da propaganda turística oficial brasileira. Dissertação de mestrado, Programa de pós-graduação em linguística do Centro de ciências humanas, Letras e Artes da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), 2015, p. 58.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.