Cultura do consumo – Zygmunt Bauman

A cultura do consumo não só faz dos objetos uma necessidade para consumo, mas também transoforma os próprios individuos como objetos de consumo. Ao se compôr através do consumo de itens disponíveis no mercado, enquanto sujeito conhecido e reconhecido por meio dos adereços que o compõe, o sujeito do consumo se comoditiza e se transforma em mais um item de consumo.

Índice

Introdução

A cultura do consumo é aquela que, no processo de interpelação no interior de uma sociedade de consumo, transforma indivíduos em consumidores. Este processo é permeado por signos sociais que ultrapassam o ato de consumir, pois, quando o indivíduo é interpelado em sujeito consumidor, toda uma vida social baseada no consumo emerge como natureza, como destino implacável, como realidade insuperável.

O objetivo deste artigo é expôr como Zygmunt Bauman entende a cultura consumista baseada em seu livro Vida para consumo. O autor elenca quatro elementos principais que funcionam como um feixe de relações para a sociabilidade na sociedade de consumidores, sendo que cada um dele implica na incerteza em relação ao sucesso e na tentativa de permanecer na vanguarda do consumo.

Três apontamentos sobre a cultura do consumo

Inicialmente, Bauman compreende que “estar à frente” é uma máxima importante na sociedade consumidores, é um valor na cultura do consumo. À frente dos pares, daqueles que estão participando do mesmo jogo social e cultural e, claro, demonstrar essa vanguarda através de adereços visíveis.

Estar à frente portando os emblemas das figuras emblemáticas da tendência de estilo escolhido por alguém de fato concederia o reconhecimento e a aceitação desejados, enquanto permanecer à frente é a única forma de tornar tal reconhecimento de “pertença” seguro pelo tempo pretendido – ou seja, solidificar o ato singular de admissão, transformando-o em permissão de residência (por um prazo fixo, porém renovável). “Estar à frente” indica uma chance de segurança, certeza e de certeza de segurança – exatamente os tipos de experiência de que a vida de consumo sente falta, de modo conspícuo e doloroso, embora seja guiada pelo desejo de adquiri-la (BAUMAN, 2008, s.p.).

É necesśario compreender que os emblemas visíveis do pertencimento ao jogo social do consumo, as marcas visíveis do consumo, são perenes e tão logo que saem de circulação, pedem uma forma específica de ato: é necessário estar atento à circulação, aos novos signos sociais da distinção baseada no consumo, pois estar à frente é estar na vanguarda eternamente e, assim, há um perigo na ausência de uma atenção redobrada às modas passageiras.

A garantia do vanguardismo está na não fixidez, na habilidade em perceber a mudança e se adequar.

Este é o segundo apontamento de Bauman: qualquer conhecimento de moda serve para uma adaptação rápida e usufruto ligeiro, de tal maneira que o presente se mostra como o tempo liberado para ser “explorado em sua plenitude, [liberado] dos tormentos do passado e do futuro, que podem ter impedido a concentração e prejudicado a excitação da livre escolha” (BAUMAN, 2008, s.p.).

Na modernidade líquida, a exclusão não acontece somente pela ação de excluir, mas também pela inação em se incluir. A estagnação é um medo justificado, na medida em que significa, justamente, a exclusão social.

O terceiro apontamento do autor se refere à necessidade de escolher entre um conjunto de emblemas sociais reconhecíveis para participar da vida em sociedade. Necessidade de escolher, ou seja, a possibilidade da escolha não está em discussão, na medida em que ela é pressuposta. Quando se desiste ou evita realizar a escolha, corre-se o risco da exclusão, da estagnação.

É necessário, também, compreender que o conjunto de elementos escolhíveis, numa sociedade líquido-moderna, estão postos. Eles pertencem àquele espaço que poderíamos chamar de interdiscurso do consumo. O espaço em que as formação discursivas consumistas recolhem seus objetos para lhe dar razoabilidade. Realizo, aqui, uma tentativa de interpretar o texto de Bauman com os conceitos de Michel Pêcheux, pioneiro da análise do discurso: a formação discursiva que interpela indivíduos em sujeitos consumidores também fornece um conjunto de dizeres que devem ser ditos sob a forma da escolha pessoal. A escolha, assim, é uma imposição que, por constituir os sujeitos consumidores, também é uma injunção.

Liberdade e responsabilidade

Sendo a escolha representação da liberdade, estes são sinônimos no contemporâneo. Sendo assim, escolher é ser supostamente livre e a única maneira de exercer a liberdade se dá através da escolha. Abdicar da escolha é se excluir do jogo social, mas também abdicar da liberdade. A injunção à escolha é uma injunção à liberdade, ou seja, na cultura do consumo, somos obrigados a nos colocar na posição de sujeito livre. Aqui, novamente realizando uma relação com a análise do discurso pecheuxtiana, temos em jogo os esquecimentos constitutivos do processo de assujeitamento do sujeito do discurso, em que o sujeito “esquece” do fato de não ser o criador daquilo que fala por meio de uma experiência subjetiva da liberdade que alimenta incessamentemente a percepção da liberdade.

Esta liberdade que acontece como um imperativo, inserida numa temporalidade do efêmero,  está sempre consumindo novos itens. Uma cultura do consumo existe no interior de uma sociedade do excesso, em que a obrigação da escolha torna este exercício de liberdade em uma sucessão infinita de tentativas e erros, de possibilidades amplas para consumo que pode sempre ser inadequado, na medida em que a efemeridade do jogo social do consumo não permite a elaboração de uma estratégia racional de escolha baseada na crítica das escolhas anteriores.

A garantia, com frequência repetida, de que “este é um país livre” significa: é sua responsabilidade o tipo de vida que deseja levar, como resolve vivê-la e os tipos de escolha que você faz para que seu projeto se concretize; culpe a si mesmo, e a ninguém mais, se tudo isso não resultar na felicidade que você esperava. Ela sugere que a alegria da emancipação está intimamente ligada ao horror da derrota (BAUMAN, 2008, s.p.).

O horro da derrota é fruto da emergência da responsabilidade, amplamente mitigada por uma cultura do consumo. Se a quantidade de escolhas ao longo da vida é incontável, se a escolha é o imperativo que representa concretamente a liberdade, se a incessante necessidade da escolha no presente faz, do presente, o momento próprio da escolha e da fruição, então a responsabilidade realmente se esconde por trás da possibilidade de uma nova escolha.

Essa responsabilidade, que um dia era posta nos ombros da “sociedade” entendida enquanto conjunto de normas e aparelhos para garantir a ordem, tende a ser colocada nos próprios indivíduos. O horror da derrota, o terror da responsabilidade, é o terror da solidão.

Hobbes e Durkheim são dois exemplos de autores que preconizavam uma sociedade baseada na responsabilidade sobre os súditos ou cidadãos. A concepção de sociedade de ambos era baseada numa previsão das trajetórias sociais realizada por meio da coerção social. Esta coerção era saudável por evitar que a guerra hobbesiana de todos contra todos acontecesse. Segundo esta visão, a ausência da coerção social institucional não tornaria os sujeitos livres, mas os colocaria numa prisão dos instintos, numa situação impossível de sobrevivência durável.

Por sua vez, Levinas e Knud Logstrup entendem que a regulação normativa da sociedade faz parte de uma necessidade inevitável da coexistência. A presença do outro cria uma necessidade de estabelecer normas para que a demanda ética de todos sobre todos seja satisfeita.

Aos poucos, a sociedade líquida retirou as regulações normativas que microgerenciavam as relações e o destino social dos indivíduos, de tal maneira que hoje, toda a responsabilidade tende a ser individual – seja em relação ao emprego, em relação à religião ou à moradia. É importante salientar que a realidade brasileira nunca foi calcada num amplo projeto de securidade social aos moldes dos Estados europeus. No Brasil, é necessário reconhecer um salto entre a responsabilidade compartilhada e a responsabilidade individual, na medida em que a última sempre foi realidade para os mais pobres, desprotegidos pelo direito do trabalho ou afastados de seus direitos civis.

Na oposição entre liberdade e responsabilidade, a busca pelo prazer realizado na esfera do consumo tende a se sobressair sobre a busca pela previsibilidade, pela responsabilidade e pela segurança. A oposição entre responsabilidade individual e responsabilidade institucional da modernidade sólida, período dos Estados de bem-estar social, pode ser traduzida nos termos das buscas individuais a partir da oposição entre o princípio da realidade e o princípio do prazer derivados da teoria psicanalítica. A busca pelo prazer tende a ser impulsionada numa sociedade do consumo, tende a ser um valor numa cultura do consumo, já o princípio da realidade, antes representado pelas securidades sociais e pela necessidade de certa austeridade promovidas pelos Estados modernos tende a se distanciar da vida individual. Afinal, não há mais segurança social, econômica ou ontológica no neoliberalismo.

Eterna vigilância

A cultura do consumo, retornando aos três apontamentos iniciais e os relacionando à dicotomia entre liberdade e responsabilidade, preserva uma situação de eterna vigilância, em que os momentos de ação são, eternamente, momentos a se caçar, capturar e agir. O momento de ação é aquele em que o risco e a necessidade de praticar a liberdade sob a forma do consumo se faz imperiosa para a própria inclusão.

Agora, como antes, a questão é nunca perder esse momento que convoca à ação. Do contrário, o ator infeliz, desatento ou distraído, negligente ou preguiçoso, fica atrás e não à frente da “tendência de estilo”. Desprezar a apatia dos mercados de consumo e tentar se basear em instrumentos e rotinas que fizeram esse trabalho no passado simplesmente não vai funcionar (BAUMAN, 2008, s.p.).

A cultura do consumo é detentora de um senso de urgência interminável, de tal maneira que o fluxo do tempo tenta, à galope, se igualar ao fluxo da velocidade da informação, pois “a vida do consumidor, a  vida de consumo, não se refere à aquisição e posse. Tampouco tem a ver com se livrar do que foi adquirido anteontem e exibido com orgulho no dia seguinte. Refere-se, em vez disso, principalmente e acima de tudo, a estar em movimento” (BAUMAN, 2008, s.p.).

A satisfação, enquanto momento presente no fluxo incessante de vigilância sobre as novas tendências, deve ser apenas uam experiência localizada no momento. A economia neoliberal numa sociedade de consumidores assume que a satisfação, quando prolongada, é associada à estagnação econômica, na medida em que o consumo é necessário para a superprodução de bens de consumo não necessariamente básicos. A satisfação é, então, um imperativo de consumo que visa movimentar a economia incessantemente.

Desta forma, numa cultura do consumo, a satisfação de necessidades é substituída por uma satisfação que procura novas necessidades baseadas no próprio jogo social do consumo e das tendências. A pressão social constante é relacionada ao “ser mais”, “estar à frente”, sendo assim, o próprio comportamento de mercado é concentrado em desvalorizar as antigas ofertas, retirando do topo de interesse o que já foi produzido para que mais mercadorias possam tomar este lugar. “Tudo isso é estimulado por essa cultura como um dever disfarçado de privilégio” (BAUMAN, 2008, s.p.).

Considerações finais

Na cultura do consumo, o outro, por sua vez, é desarmado em sua inexistência enquanto alteridade real. A mediatização pela internet desintoxica o outro de tal maneira que a interação tende a ser com um objeto de reafirmação de si e de sua própria identidade. Já a interação off-line tende a ser um fardo, na medida em que o reconhecimento da própria identidade só pode acontecer por meio de um longo processo arriscado de tentativas, sacrifícios e necessidade de reconhecimento do outro enquanto sujeito, não só enquanto identidade.

A vida fora da internet é arriscada, já a vida na internet, mediatizada pela internet, é livre de riscos. Tanto para interações casuais, amorosas ou até mesmo comerciais. A liberdade enquanto escolha se faz, também, na necessidade de escolher os contatos que manifestação a própria afirmação da identidade de quem escolheu. Eles podem, no fim, ser desconectados, descartados. A própria identidade que se escolhe para si, nos meios virtuais, pode ser trocada rapidamente sem muitos prejuízos, na medida em que a própria vida digital é rápida, fluida e prevê mudanças constantes.

No caso da autodefinição e da autoconstrução, como em todas as outras atividades da vida, a cultura consumista permanece fiel a seu personagem e proíbe a acomodação final e qualquer satisfação perfeita, consumada, que não requeira novos aperfeiçoamentos (BAUMAN, 2008, s.p.).

Proíbe sob o risco da exclusão, da indignidade, da retirada do sujeito de dentro do jogo social.

Na atividade chamada “construção de identidade”, o propósito verdadeiro, até mesmo secreto, é o descarte e a remoção de produtos fracassados ou não totalmente bem-sucedidos. E é pela prometida facilidade de descarte e substituição que os produtos são considerados fracassados ou não totalmente bem-sucedidos (BAUMAN, 2008, s.p.).

Daí ser necessário um ambiente propício à troca de identidade. Propício ao consumo de novas identidades e ao consumo de si e do outro.

Não surpreende que com muita frequência as identidades assumidas durante uma visita ao mundo da internet, de conexões e desconexões instantâneas segundo a vontade do internauta, são do tipo que seria física ou socialmente insustentável offline (BAUMAN, 2008, s.p.).

A cultura do consumo não só faz dos objetos uma necessidade para consumo, mas também transoforma os próprios individuos como objetos de consumo. Ao se compôr através do consumo de itens disponíveis no mercado, enquanto conhecido e reconhecido por meio dos adereços que o compõe, o sujeito do consumo se comoditiza e se transforma em mais um item de consumo.

Fazer sua própria vida e estar sob sua própria responsabilidade, dependendo assim do reconhecimento geral para ser alguém na vida, é se transformar em mercadoria para possível consumo dos outros. Na dialética entre o reconhecimento do outro, há também um outro a ser reconhecido: um consumo duplo, entre sujeitos e mercadorias e entre sujeitos consigo mesmos.

Referências

BAUMAN, Z. Cultura consumista IN Vida para consumo, a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 2008. Edição em ePub, s.p.

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