Da biopolítica à necropolítica – Suze Piza

O racismo adquire uma característica positiva, ou seja, prescritiva da morte: em vez de um subproduto da biopolítica, em vez de uma necessidade de matar mesmo após transformar a política monárquica em política para fazer viver sua população, uma necessidade de matar que até mesmo não se faz como necessidade, mas como imperativo.

Da série “Necropolítica”.

Índice

Introdução

Neste artigo, utilizarei a elucidação sobre o conceito de necropolítica como exposto por Suze Piza em Sequestro e resgate do conceito de necropolítica: convite para leitura de um texto e, a partir do texto, exibirei sua distinção com a biopolítica de Michel Foucault, o que o torna inovador na interpretação social contemporânea e adiciona o elemento da morte numa estratégia de poder moderna que é, desta vez, entendida a partir da população que sofre suas consequências.

Para isso, passarei por três caminhos. O primeiro será feito a partir da observação de Piza acerca do nascimento da população; o segundo terá como mote a doença como problema político, portanto, a biologia politizada na biopolítica; por fim, fecharei o texto com a centralidade da morte na leitura política de Achille Mbembe que adiciona o elemento do necropoder nas práticas modernas de Estado.


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População

O nascimento da biopolítica é o momento de governar os outros, de governamentalidade das pessoas. Esse é um modelo pastoral centrado no pastor que governa seu rebanho. A prática de governar pessoas consolida a biopolítica com um controle populacional e faz com que a população seja um corpo político único, para qualquer fim. A população aparece, para Foucault, nesse momento histórico.[1]

O nascimento da biopolítica é o nascimento das técnicas de controle populacional e, também, da própria população entendida enquanto ator político fundamental para exercício do poder nos Estados modernos. Este novo ator político deseja. Evidentemente, é considerado que em seu conjunto, a população cresce, diminui, se concentra em determinadas regiões, seus segmentos adquirem determinadas aptidões para ocupar postos de trabalho, sua taxa de mortalidade pode subir ou cair.

A população é uma coisa viva e uma coisa cujo olhar adequado para sua administração não pode se limitar à disciplina: a disciplina tem como foco o corpo do indivíduo, a população precisa ser entendida enquanto um corpo sui generis, mas induzido a partir da materialidade dos corpos reais, dos corpos individuais, destes corpos que, para de fato comporem a população, são entendidos como corpos-espécie, como parte de uma mesma espécie, parte de um elemento que é igual a todos os seres humanos e justamente por isso, conduz a um entendimento de que o coletivo de humanos (num espaço político moderno) pode ser entendido como um ator político separado, resultado das interações individuais de membros da mesma espécie, de membros de uma mesma característica fundamental que possibilita tomadas de decisão políticas aplicadas em massa.

A população estar assim na base tanto da riqueza como do poderio do Estado é algo que só pode ocorrer, claro, se ela é enquadrada por todo um aparato regulamentar que vai impedir a emigração, atrair os imigrantes, beneficiar a natalidade, um aparato regulamentar que também vai definir quais sãos as produções úteis e exportáveis, que vai estabelecer também os objetos a serem produzidos, os meios de produzi-los, os salários também, que vai proibir o ócio e a vagabundagem. Em suma, todo um aparato que vai fazer dessa população, considerada portanto princípio, raiz, de certo modo, do poder e da riqueza do Estado, que vai garantir que essa população trabalhará como convier, onde convier e em que convier.[2]

Mesmo sendo elemento essencial para exercício do poder de governo da biopolítica, a população ainda carrega consigo o estigma de problema: a população pode se dirigir para caminhos opostos ao do governo que, por sua vez, se vê na missão de conduzir a população pelos desígnios do poder. Aos poucos, a parte da população que não se mostra apta a ser conduzida, a parte indisciplinada, torna-se elemento do povo, oposição aparente da população disciplinada.

A doença

biopolítica se dirige à população e faz com que a população seja um problema político-biológico; esse sujeito “população” é criado pelo biopoder. Por isso, Foucault defende que houve uma estatização do biológico. Esse campo de racionalidade, o qual é também de linguagem, justifica alguém dizer que a economia não pode parar, por conta de um vírus. Só inserindo a doença como problema político de uma população podemos enunciar algo assim.[3]

A economia não pode parar diante de um vírus letal na medida em que a estrutura econômica é o determinante social da realidade presente em que, por exemplo, o Brasil está inserido enquanto Estado moderno capitalista. Esta estrutura depende essencialmente da existência de uma população economicamente ativa e, desta forma, de uma população que ainda se movimente, cujos membros ainda sejam conduzidos pelo biopoder.

A falta de movimento da população, principalmente num país subdesenvolvido como o Brasil, não vem sem castigo: diferentemente dos países desenvolvidos, o Brasil não tem o privilégio de suportar sua economia após períodos de colonialismo em África e Oriente Médio. O Brasil, enquanto país colonizado, não suporta a necessidade da inação. A população precisa sempre estar ativa. Daí a importância da frase de Michel Gherman ao descrever o regime bolsonarista: “Estamos falando de um regime homicidário e suicidário. No final, se todos morrerem é que deu certo”[4]. A população precisa estar ativa, mas sua atividade pressupõe a morte de seus membros. Se todos morrerem, a economia respira até seu último membro ativo.

Necropolítica

Quando Mbembe se pergunta se a noção de biopoder é suficiente para contabilizar as formas contemporâneas em que o político, por meio da guerra, da resistência ou da luta contra o terror, faz do assassinato do inimigo seu objetivo primeiro e absoluto, responde negativamente. A noção de biopolítica dá conta de compreender a instrumentalização generalizada da existência humana e a destruição material dos corpos humanos e populações? De compreender os campos de morte instaurados em todos os cantos do planeta como nomos do espaço político? Certamente, não. Ao afirmar sua insuficiência para compreender essas questões, isso não significa dizer que a necropolítica substitua a biopolítica, pois elas podem operar juntas, ou uma suceder a outra, em diversas situações. Sem a polidez de Foucault, ao tratar do racismo e pensando desde outro território, Mbembe apresentará a necropolítica, no entanto, como sinônimo de política ou como o trabalho da morte – brutalismo.[5]

Necropolítica como sinônimo de uma política construída na modernidade através da soberania praticada enquanto ato de transgressão, enquanto a maior transgressão de todas: a da morte. Ou seja, política enquanto aquilo que se faz, aquilo que tem uma forma, mas não necessariamente se tem uma origem que funcionaria como referência para um retorno seguro. A necropolítica, assim, acontece quando o fazer viver e deixar morrer da biopolítica se unem a um imperativo da morte, um fazer morrer aliado não ao racismo de Estado, mas ao racismo enquanto elemento concreto de exclusão da própria possibilidade de viver.

raça, presente na argumentação de Foucault, como um dos elementos que, desde o século XVIII é usado para racionalizar/criar os fenômenos biopolíticos, já está na fala de Mbembe como dispositivo regulador do Estado, há tempos, oriunda de outras referências filosóficas e históricas. O racismo, propriamente dito, tem lugar proeminente na necropolítica; certamente não por influência de Foucault. Mbembe define a necropolítica como um projeto político, sem dúvida, de subjugação que se sustenta a partir da imaginação da desumanidade de povos ou grupos. Como enfatiza Foucault, o racismo é uma tecnologia (das mais eficientes) que permite o exercício de um dado tipo de poder, do biopoder, ou, como dirá Mbembe, mais tarde, do necropoder. “O racismo regula a distribuição da morte e torna possível as funções assassinas do Estado.” (MBEMBE, Necropolítica, 2018, p. 18). Arendt, Foucault, Mbembe, em coro, denunciam que o racismo é meio antinatural da morte e é, ao mesmo tempo, o que faz com que ela seja aceitável.[6]

O racismo, assim, na necropolítica, distribui as mortes. Em vez de um subproduto da biopolítica, uma necessidade escusa, operada como necessidade moralmente condenável e por isso mesmo justificada por diferentes projetos (como o nazismo, como a guerra às drogas, etc), o racismo passa a operar papel positivo, prescritivo. Na necropolítica, a morte é prescrita.

Considerações finais

Em seu artigo de introdução ao conceito de necropolítica, Suze Piza delineia as correntes filosóficas e a tradição que Mbembe se aproxima e utiliza como base para construir sua leitura da realidade colonial para além dos limites da leitura foucaultiana acerca do biopoder.

O racismo adquire uma característica positiva, ou seja, prescritiva da morte: em vez de um subproduto da biopolítica, em vez de uma necessidade de matar mesmo após transformar a política monárquica em política para fazer viver sua população, uma necessidade de matar que até mesmo não se faz como necessidade, mas como imperativo.

Figuras do desatino

Referências

[1] PIZA, Suze. Sequestro e resgate do conceito de necropolítica: convite para leitura de um texto. Trans/Form/Ação [online]. 2022, v. 45, n. spe [Acessado 17 Novembro 2022] , pp. 129-148. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/0101-3173.2022.v45esp.08.p129>.

[2] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População: curso dado no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, 1999, p.90.

[3] PIZA, Suze. Sequestro e resgate do conceito de necropolítica: convite para leitura de um texto…

[4] SIQUEIRA, Vinicius. O bolsonarismo, por Michel Gherman. Colunas Tortas, 2022. Acesso em 17 de novembro de 2022. Disponível em <<https://colunastortas.com.br/o-bolsonarismo-michel-gherman/>>.

[5] PIZA, Suze. Sequestro e resgate do conceito de necropolítica: convite para leitura de um texto…

[6] PIZA, Suze. Sequestro e resgate do conceito de necropolítica: convite para leitura de um texto…

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