Doxa – Pierre Bourdieu

A doxa é uma propriedade específica dos campos em que o senso comum é admitido como uma verdade incontornável. Não se trata de uma verdade assumida voluntariamente por meio de uma comunicação consciente acerca dos seus termos, mas de uma verdade operacional internalizada sob a forma de habitus que determina o que vale à pena ser discutido e quais objetivos valem o esforço de uma luta.

Índice

Introdução

A realidade social é determinada pelos campos sociais em que cada agente está inserido, pelo habitus incorporado para agir dentro destes campos e tomar posições estratégicas que podem resultar em avanços ou regressos em relação aos objetivos definidos para o sucesso social.

Não há como escapar da lógica dos campos sociais, não há como viver fora de um espaço social, não há como fugir do fato de que somos agentes sociais. O ser humano é um ser social e este fato inelutável gera um nível de realidade que é propriamente social, que ultrapassa o nível psicológico ou biológico da vida humana.

Dito isso, na composição dos campos sociais, há algo que torna óbvia a própria realidade ali vivida. Uma doxa que operacionaliza os pressupostos históricos e sociais enquanto princípios aceitos tacitamente. Por exemplo, não é necessário afirmar que, na vida acadêmica, um doutorado tem enorme valor; um cargo de professor titular em universidade pública, maior valor ainda; experiências em universidades de ponta de outros países, ainda mais. São tópicos que não precisam ser discutidos, pois são objetivos a se alcançar.

O objetivo deste artigo é expor a noção de doxa segundo o trabalho de Pierre Bourdieu.

A doxa

Doxa é “todo o conjunto do que é admitido como óbvio” (BOURDIEU, 2003, p.87) dentro de um campo social. Um conjunto de “pressupostos inseparavelmente cognitivos e avaliativos cuja aceitação é inerente à própria pertinência” (BOURDIEU, 2001, p. 122). Estes pressuspostos são “crenças fundamentais que nem sequer precisam se afirmar sob a forma de um dogma explícito e consciente de si mesmo” (BOURDIEU, 2001, p. 25).

No fundo, a doxa é aquilo que, mesmo sem precisar discutir ou talvez justamente por não precisar discutir, todos estão de acordo:

A doxa é aquilo sobre o que todos os agentes estão de acordo. Bourdieu adota o conceito tanto na forma platônica – o oposto ao cientificamente estabelecido -, como na forma de Husserl (1950) de crença (que inclui a suposição, a conjectura e a certeza). A doxa contempla tudo aquilo que é admitido como “sendo assim mesmo”: os sistemas de classificação, o que é interessante ou não, o que é demandado ou não (THIRY-CHERQUES, 2006).

Não há ação social fora do campo e fora das crenças fundamentais que validam sua existência, pois

a doxa seria um conjunto que crenças individuais e coletivas que orientam as práticas dos agentes sociais no interior de um campo. Nesse sentido, vincula a doxa a uma existência dentro de um determinado espaço social, o campo. É no interior de um campo que a doxa encontra sua realização tácita, na medida em que orienta, tanto dominantes, quanto dominados e tomarem determinadas posições (VASQUES; SOUZA, 2023, p. 40).

É aquilo que não precisa ser dito, na medida em que todos estão de acordo mesmo que inconscientemente, tacitamente. Está fora de questão e justamente por isso não é nem mesmo registrados nos documentos históricos, afinal, ninguém tem a ideia de registrar o óbvio. É neste momento em que se percebe que o óbvio só pode ser enxergado na história por meio da observação das ausências, das omissões.

Não se trata, portanto, de ler os arquivos históricos de um determinado campo e condenar seus historiadores, seus escrivãos. Trata-se, na verdade, de percebe o que exatamente fez com que determinados assuntos não fossem tangiveis para a escrita. Ou seja, trata-se de buscar as condições sociais da própria constituição de um campo num dado momento histórico, de compreender quais são as condições são sociais do acerto e do erro num dado assunto presente num campo, pois até o erro é produto de condições histórico, na medida em que nem tudo é possível, pois as determinações que implicam a existência da doxa restringem os temas, os argumentos, os critérios, os objetivos e o tipo de luta específica que se pode empreender.

No “isso é óbvio” de uma época, há o impensável de jure (politicamente por exemplo), o inominável, o tabu – os problemas que não é possível tratar – mas também o impensável de facto, aquilo que a aparelhagem do pensamento não permite pensar. (É isto que faz com que o erro não se distribua em função dos bons ou dos maus sentimentos e com que com bons sentimentos se possa fazer uma sociologia detestável) (BOURDIEU, 2003, p.87).

A doxa é aquilo que produz a própria possibilidade do erro e do acerto, da defesa e do ataque, é aquilo que constitui o campo de batalha e identifica os objetos que estão em disputa.

Heterodoxia e ortodoxia

A doxa é o pressuposto aceito que torna o campo um espaço de luta. Uma luta só acontece quando aquilo que se disputa está posto para os participantes, caso contrário, não é possível estabelecer uma comunicação, mesmo que feita por agentes em posições opostas.

Paradoxalmente, as grandes oposições taxativas acabam unindo os mesmos que se opõem através delas, visto que é preciso concordar em admiti-las para que se esteja apto a contrapor-se a seu propósito, ou, valendo-se de sua mediação, de produzir então tomadas de posição imediatamente reconhecidas como pertinentes e sensatas mesmo por parte daqueles aos quais elas se opõem e que por sua vez se lhes opõem (BOURDIEU, 2001, p. 122).

Há coisas que não são discutidas. O ponto da não discussão não é necessariamente o desprezo deliberado de um assunto ou de um objetivo específico, mas é o próprio não pertencimento de determinados assuntos ou objetivos como possíveis de sequer serem problematizados ou levados à sério. Se a doxa é “todo o conjunto do que é admitido como óbvio, e em particular os sistemas de classificação determinando o que é julgado interessante e sem interesse, aquilo que ninguém pensa merecer se contado, porque não tem procura” (BOURDIEU, 2003, p.87), a heterodoxia e a ortodoxia são duas posições relativas à sua manutenção ou revolução.

Na medida em que todos os participantes de um campo compartilham o mesmo conjunto de interesses e este conjunto de interesses está localizado no próprio coração do campo, mesmo pertencendo a posições opostas, há

uma cumplicidade objectiva que está subjacente a todos os antagonismos. Esquece-se que a luta pressupõe um acordo entre os antagonistas sobre aquilo que merece que se lute e que está recalcado no que é óbvio, deixado no estado de doxa, quer dizer tudo o que faz o próprio campo, o jogo, as paradas em jogo, todos os pressupostos que tacitamente se aceitam, sem se saber sequer, pelo facto de se jogar, de se entrar no jogo (BOURDIEU, 2003b, p. 121).

Não existe debate sem a aceitação de que o argumentos postos em jogo mereçam discussão ou que a própria discussão tem mérito de existir. A adesão dos agentes sociais é tácita, ou seja, não depende de consciente e voluntária adesão formal. A participação do agente social existe na medida em que a doxa é aceita. Seja essa participação no miolo da ortodoxia, ou seja, na defesa dos termos gerais da doxa; seja na participação da heterodoxia, no combate geral dos termos centrais da doxa. Ortodoxos e heterodoxos são diretamente dependentes da doxa, pois, caso o agente social colocasse questões e argumentos fora dos limites doxológicos, seus argumentos nem seria percebidos como tais.

Todos aqueles engajados no campo, defensores da ortodoxia ou da heterodoxia, partilham adesão tácita à mesma doxa que torna possível a concorrência entre eles e lhes impõe seu limite (o herético continua sendo um crente que prega o retorno às forma mais puras de fé): ela impede de fato o questionamento dos princípios da crença, que ameaçaria a própria existência do campo. Os participantes não têm nada a responder quanto às questões sobre as razões da pertinência, do engajamento visceral no jogo, e os princípios que podem ser invocados nesse caso não passam de racionalizações post festum destinadas a justificar, tanto para si como para os outros, um investimento injustificável. (BOURDIEU, 2001, p. 124)

Dito isso, é possível afirmar que “que a ‘opinião pessoal’ tende a refletir a doxa ética, política, estética do campo” (THIRY-CHERQUES, 2006). Desta forma, aquilo que é pessoal só pode existir num campo e ser legitimamente considerado parte deste campo nos casos em que sejam diretamente alicerçados na doxa. Essa opinião, quando ortodoxa, reflete uma ação política de legitimação da ordem simbólica instituída:

A ação propriamente política de legitimação sempre se exerce a partir dessa conquista fundamental que vem a ser a adesão originária ao mundo tal como ele é. Ademais, o trabalho dos guardiões da ordem simbólica, que têm um trato com o bom senso, considera tentar restaurar, no modo explícito da orto-doxia, as evidências primitivas da doxa (BOURDIEU, 2001, p. 229).

Mas, ao marginalizado, cabe a ação subversiva, não aceita ou legitimada pelo campo:

Ao contrário, a ação política de mobilização subversiva pretende liberar a força potencial de recusa que é neutralizada pelo desconhecimento ao efetuar, em favor de uma crise, um desvendamento crítico da violência fundante ocultada pelo acordo entre a ordem das coisas e a ordem dos corpos (BOURDIEU, 2001, p. 229).

Se a heterodoxia ainda é parte da doxa, somente os saberes marginalizados podem dar conta de destruir uma doxa e transformar um campo.

Considerações finais

A doxa é uma propriedade específica dos campos em que o senso comum é admitido como uma verdade incontornável. Não se trata de uma verdade assumida voluntariamente por meio de uma comunicação consciente acerca dos seus termos, mas de uma verdade operacional internalizada sob a forma de habitus que determina o que vale à pena ser discutido e quais objetivos valem o esforço de uma luta.

Paradoxalmente, não há nada mais dogmático do que uma doxa, conjunto de crenças fundamentais que nem sequer precisam se afirmar sob a forma de um dogma explícito e consciente de si mesmo. (BOURDIEU, 2001, p. 25)

A doxa é, assim, além de um conjunto de crenças, também um conjunto de corpos participantes de um campo que operacionalizam essa crença oculta por meio de suas tomadas de posição, de tal forma que cada uma delas é quase que intuitiva, moldada pelas próprias experiência no interior do campo (VASQUES; SOUZA, 2023, p. 40).

Referências

BOURDIEU, Pierre. Meditações pascalianas. Tradução Sergio Miceli. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. 2001.

BOURDIEU, Pierre. Por uma sociologia dos sociólogos IN Questões de sociologia. Portugal, Lisboa: Fim de século, 2003.

BOURDIEU, Pierre. Algumas propriedades dos campos IN Questões de sociologia. Portugal, Lisboa: Fim de século, 2003b.

THIRY-CHERQUES, H. R.. Pierre Bourdieu: a teoria na prática. Revista de Administração Pública, v. 40, n. 1, p. 27–53, jan. 2006.

VASQUES, L. F.; SOUZA, T. C. Considerações sobre o corpo em Pierre Bourdieu e Michel Foucault. Revista NORUS, vol. 11, nº 20, p. 29-44, 2023.

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