Espaço disciplinar – Michel Foucault

O espaço disciplinar visa aumentar a eficiência econômica da prática sobre os corpos. A docilização é aumentada e o adestramento é maximizado. Para isso, é necessário individualizar, manter as coletividades desunidas, não permitir a troca de informações, racionalizar a arquitetura para que contribua aos objetivos disciplinares, para aumentar as curvas de visibilidade, seja na prisão, no hospital ou na escola.

Da série “A disciplina em Foucault”.

Índice

Introdução

Em uma sociedade disciplinar, a medição, a construção planejada, a arquitetura fortificada, os locais de visibilidade e o anonimato da vigilância são elementos centrais na composição dos elementos em jogo: o corpo e a disciplina. Forma-se, assim, o espaço disciplinar de correção individual e assujeitamento dos corpos.

O objetivo deste artigo é definir a noção de espaço disciplinar que perpassa o trabalho de Michel Foucault em Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão, mas também está presente em seus textos sobre a disciplina na Microfísica do Poder, observando, acima de tudo, as construções e arquiteturas. Para isso, as seguintes análises do autor francês serão tomadas de empréstimo: sobre a prisão, sua elaboração panóptica e individualizante; sobre o hospital e todas as preocupações em dividir e controlar; mas também o trabalho de Dirce Zan e Beatris Possato sobre a escola e sua arquitetura que, por ser opressiva, é parte da violência na escola, mas também da violência da escola.

Ao longo das análises, o foco estará no lugar específico em que os corpos são localizados e em sua relação com a disciplina ali instalada, de maneira que seja possível verificar o poder e sua forma de conduzir as subjetividades e de maneira que o uso dos espaços e do exercício do poder mostre uma temporalidade específica que não necessariamente parece uma intromissão, no entanto, colabora para o entendimento do tipo de exercício do poder específico das sociedades na ascensão do capitalismo até hoje.


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O espaço disciplinar

Primeiramente, é necessário compreender a partir de quais elementos o espaço disciplinar é constituído. Para isso, Foucault atribui quatro técnicas de distribuição de corpos que vão delimitar a função disciplinar do espaço:

  1. A disciplinar exige um processo de cercamento, de constituição de um local diferente de todos os outros. Nos colégios, o modelo do convento se impõe como ordem; no exército, é necessário a criação de quarteis, para que as tropas não fiquem jogadas em seu território de cobertura, o que lhes possibilitaria cometer atos contra a ordem; A fábrica segue o mesmo modelo do convento, da fortaleza, da cidade fechada, com horário de abertura de portões e fechamento definidos e obedecidos pontualmente[1].
  2. O princípio de organização dos aparelhos disciplinares é o quadriculamento, “cada indivíduo no seu lugar; e em cada lugar, um indivíduo”[2]. Assim, é possível evitar aglomerações, implantações coletivas e analisar pluralidades confusas, de maneira que passem a ser um corpo coerente e distribuído. “O espaço disciplinar tende a se dividir em tantas parcelas quando corpos ou elementos há a repartir”[3]. A circulação difusa deve ser evitada, todo tipo de repartição indecisa deve ser aprimorada.
  3. Os espaços disciplinares devem seguir a regra das localizações funcionais. O local da instituição deve ser estratégico o bastante para cumprir sua função específica, mas também para contribuir com todo o liame disciplinar. Os hospitais devem ter a função de curar, mas também de vigiar, conter criminosos através de seu histórico e informar a polícia de sua localização. Mais ainda, o espaço das mercadorias dentro do hospital deve ser planejado: medicamentos, equipamentos, leitos, todos os elementos precisam estar dispostos de maneira funcional, com todo tipo de informação necessária para a administração (cada leito com o nome de quem se encontra nele, cada indivíduo registrado devidamente no histórico do hospital, a evolução de sua doença documentada e seu espaço, assim, modificado conforme o estágio em que se encontra)[4].
  4. Por fim, a organização no espaço disciplinar se dá através de filas, pois os elementos devem ser intercambiáveis, já que cada um se define dentro de uma série. A unidade não é um local ou um território, mas um lugar na fila. Esta fila é a série de intervalos observados na evolução dentro do tempo disciplinar: utilizando a escola como exemplo, temos a iniciação, as primeiras séries, o Ensino Médio e toda a evolução possível no Ensino Superior[5].

É assim que a disciplinar consegue organizar espaços complexos, com arquitetura própria, sempre funcionais e hierárquicos. Destarte, é possível fixar locais e elementos, controlar todo tipo de circulação, garantir a obediência e economizar tempo e esforço gasto para tornar eficiente cada instituição. Cada uma terá uma organização espacial real, pois poderá ser visto na disposição dos móveis, dos leitos, das carteiras, das mesas de trabalho, etc; mas também haverá um aspecto ideal nestes espaços, já que são planejados através de estimativas, caracterizações e hierarquias[6].

O espaço prisional

A construção panóptica é a base da análise das prisões modernas proposta por Foucault. Não se trata unicamente de uma arquitetura, mas de um modelo de exercício do poder que

organiza unidades espaciais que permitem ver sem parar e reconhecer imediatamente. Em suma, o princípio da masmorra é invertido; ou antes, de suas três funções – trancar, privar de luz e esconder – só se conserva a primeira e suprimem-se as outras duas. A plena luz e o olhar de um vigia captam melhor que a sombra, que finalmente protegia. A visibilidade é uma armadilha.[7]

A visibilidade é uma armadilha: esta afirmação pode ser explicada através da descrição arquitetônica de uma prisão panóptica: ela deve ser circular, deve conter uma torre de vigia no centro, janelas vazadas na face interna das celas que, por sua vez, ficam na parte interna da parede circular que estrutura a construção como um todo. A torre de vigia consegue, em seu lugar privilegiado, ter a visualização do conteúdo de todas as celas e aqueles que ficam dentro não conseguem saber exatamente se há um vigia na torre ou se ela está vazia.

O objetivo deste tipo específico de construção é tornar todo movimento visível. Toda cela deve ser passível de vigilância e, na incerteza de haver ou não um vigia na torre central, os encarcerados incorporam a vigilância e passam a conviver sob o olhar controlador de seus vigias responsáveis independentemente deles estarem presentes ou não.

O espaço, portanto, tem planejamento coercitivo e individualizante, afinal, “a distribuição dos corpos deve ser o menos caótica, difusa e informe possível, pois é preciso que o poder atinja igualmente a todos”, argumenta Veiga-Neto[8].

O espaço hospitalar

A preocupação do espaço disciplinar precisa ser vista sob um prisma sempre econômico: “Para que o poder atinja a todos da maneira o mais minuciosa possível, é preciso que os corpos estejam distribuídos no espaço e que essa distribuição obedeça a uma lógica econômica”[9].

Esta lógica, no nascimento do hospital como elemento de cura, deve ser analisada através do valor dos corpos no século XVII: seu preço se tornou cada vez mais elevado.

É nesta época que a formação do indivíduo, sua capacidade, suas aptidões passam a ter um preço para a sociedade […] As razões econômicas, o preço atribuído ao indivíduo, o desejo de evitar que as epidemias se propaguem explicam o esquadrinhamento disciplinar a que estão submetidos os hospitais.[10]

O nascimento do hospital carrega consigo uma notável preocupação com a relação entre os fenômenos patológicos e espaciais. Há uma preocupação maior com o percurso das doenças dentro das instalações e, assim, entende-se que é necessária uma nova organização dos leitos, dos corpos, dos doentes.

Assim, estabelece-se uma arte da distribuição dos espaços dentro dos hospitais, em que os corpos antes amontoados são dispostos organizadamente dentro daquele espaço. Desta forma, a disciplina hospitalar

terá por função assegurar o esquadrinhamento, a vigilância, a disciplinarização do mundo confuso do doente e da doença, como também transformar as condições do meio em que os doentes são colocados. Se individualizará e distribuirá os doentes em um espaço onde possam ser vigiados e onde seja registrado o que acontece.[11]

O hospital passa a ter sua localização planejada, para que não fique na escuridão da cidade, como um preâmbulo da morte. Os espaços internos são planejados de acordo com a proteção da cura e o afastamento da doença:

Será necessário constituir em torno de cada doente um pequeno meio espacial individualizado, específico, modificável segundo o doente, a doença e sua evolução. Será preciso a realização de uma autonomia funcional, médica, do espaço de sobrevivência do doente.[12]

A estrutura espacial do hospital, assim, controlando o espaço externo e interno, compreendendo que a cura é favorecida com a individualização do espaço e, mais ainda, com a preocupação geral sobre o espaço do internado, se porta como um meio de intervenção sobre o doente. A própria arquitetura do hospital, neste momento de reorganização hospitalar, se mostra como um instrumento de cura, mas também de coleta e reprodução do saber médico. De controle total das doenças e dos doentes.

O espaço escolar

A escola, assim como o exército, foi uma das primeiras instituições a aplicar o modelo de separação espacial disciplinar[13]. Nela, é possível ver a separação por carteiras, fileiras, salas preenchidas por alunos separados por idade, locais de interação limitados e movimentação através de filas. Os alunos são quadriculados no espaço escolar:

Quadriculamento não é uma questão puramente geométrica e não deve ser deixado ao acaso; ele não deve gerar células homogêneas. Ao contrário, cada quadrícula deve guardar uma certa correspondência à sua função, no conjunto da rede de que ela faz parte. A função de uma quadrícula é, em última instância, desempenhada pelo corpo que a ocupa. Voltando aos exemplos que tomei de Rocha (1999), é por isso que, numa escola de formação profissional – como a Escola Técnica Parobé -, a heterogeneidade – na tipologia das salas de aula e do mobiliário – é muito maior do que numa escola de formação geral – como o Colégio Americano.[14]

Para entender a construção da instituição escolar e seus efeitos, usar-se-á a pesquisa de Dirce Zan e Cristina Possato[15]. Fez-se uma pesquisa com duas escolas, sendo a primeira localizada em Campinas (SP), chamada de “Caixa de Aço”, e a segunda em Hortolândia (SP), chamada de “Escola Presídio”.

Primeiramente, a “Caixa de Aço”:

A estrutura da Escola Caixa de Aço é algo parecido com um galpão industrial ou um presídio. Sua fachada é inteiramente cerrada por telhas metálicas e não possui janelas. No estacionamento, há uma ampla área verde. Caminhando-se por esse espaço é possível chegar ao prédio, cercado pelas grades. A Agente de Organização Escolar (AOE) possui as chaves dos cadeados dos portões penduradas em seu pescoço. O pátio é um galpão fechado. Ao entrar nesse espaço é possível se recordar do cenário de um presídio das séries americanas. Em meio a materiais metálicos, escadas, grades, não é possível que os alunos consigam vislumbrar o sol do pátio, apenas a área externa através das grades. Mesmo a quadra de esportes fica nesse espaço cerceado e ao lado das salas de aula.[16]

Os alunos ficam trancafiados em um galpão de aspecto fabril e todos os acessos ao locais dentro da escola eram controlados por um AOE. Os espaços de movimentação são restringidos aos alunos, já os professores, para evitar este caminho, sobem os andares do prédio através de um elevador de acesso restrito.

Acima de tudo, o espaço cercado da escola existe justamente para evitar que os alunos “fujam”, medo da equipe gestora da instituição.

Agora, a “Escola Presídio”:

Era visível o descaso do poder público, desde as ruas sem asfalto, a falta de serviços básicos como esgoto e água potável […] Esse descaso é também apontado pelos jovens estudantes da escola investigada, quando apresentam os aspectos de degradação, da sujeira e mau estado do prédio escolar. Essa foi à temática recorrente nas fotografias por eles realizadas, ou seja, a denúncia do mau estado da escola. As imagens por eles produzidas são demonstrações do descaso para com essa população expressa nos dizeres de um dos estudantes entrevistados, “para o Estado nós somos apenas número”.[17]

Todas as salas de aula ficam no primeiro piso da escola, na ponta de um corredor extenso com um portão de grades. Nos horários de intervalo, os alunos devem sair das salas de aula e ir até o pátio. O portão de acesso às salas é fechado, sob a justificativa de evitar furtos. Os alunos chamavam este horário de “banho de sol”.

A escola organiza, separa, estigmatiza e forma a subjetividade marcada pela repressão, pelo distanciamento social, pela ausência de prazer e interesse. O espaço é vigiado e controlado: cada aluno em seu quadrículo. A estrutura opressiva da escola causa a violência na escola, em seu interior, mas justamente porque é responsável pela violência da escola, da instituição em seus internos.

Considerações finais

O espaço disciplinar visa aumentar a eficiência econômica da prática sobre os corpos. A docilização é aumentada e o adestramento é maximizado. Para isso, é necessário individualizar, manter as coletividades desunidas, não permitir a troca de informações, racionalizar a arquitetura para que contribua aos objetivos disciplinares, para aumentar as curvas de visibilidade.

O espaço disciplinar tende a se dividir em tantas parcelas quando corpos ou elementos há a repartir. É preciso anular os efeitos das repartições indecisas, o desaparecimento descontrolado dos indivíduos, sua circulação difusa, sua coagulação inutilizável e perigosa; tática de antideserção, de antivadiagem, de antiaglomeração […] A disciplina organiza um espaço analítico.[18]

A prisão, o hospital e a escola mostram como a construção física do espaço disciplinar (que é um espaço social, na medida em que tem uma função social clara) é feita para reprimir e marcar a subjetividade de todos que lá dentro se movimentam. Não são só os alunos que sentem as marcas da disciplina na escola, não são só os doentes ou presos que entendem sua posição dentro do espaço: este é constituído de tal forma que a posição subalterna é marcada pelo poder, mas os indivíduos em posição de ordem, de exercício eficiente do poder, também compreendem o funcionamento das instituições disciplinares e internalizam seus desígnios.

Referências

[1] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o nascimento da prisão. 20ª ed. São Paulo: Vozes, 1999, p.122.

[2] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o nascimento da prisão… p.123.

[3] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o nascimento da prisão… p.123.

[4] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o nascimento da prisão… p.123-124.

[5] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o nascimento da prisão… p.125.

[6] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o nascimento da prisão… p.126.

[7] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o nascimento da prisão… p.166.

[8] VEIGA-NETO, Alfredo. Espaços, Tempos e Disciplinas: as crianças ainda devem ir à escola? Texto para o Simpósio Espaços e tempos escolares, no 10º ENDIPE, Rio de Janeiro, 31 de maio de 2000. Disponível em <<https://bit.ly/2M4n2En>>. Acesso em 09 jun 2020.

[9] VEIGA-NETO, Alfredo. Espaços, Tempos e Disciplinas: as crianças ainda devem ir à escola?…

[10] FOUCAULT, Michel. O Nascimento do Hospital IN A Microfísica do Poder. Organização e Tradução Roberto Machado. Rio de Janeiro, Graal, 22 edição, 2006.

[11] FOUCAULT, Michel. O Nascimento do Hospital…

[12] FOUCAULT, Michel. O Nascimento do Hospital…

[13] FOUCAULT, Michel. O Nascimento do Hospital…

[14] VEIGA-NETO, Alfredo. Espaços, Tempos e Disciplinas: as crianças ainda devem ir à escola?…

[15] ZAN, Dirce; POSSATO, Beatris Cristina. Espaços Cerrados: As Marcas da Violência e do Controle na Arquitetura das Escolas. Revista e-Curriculum, São Paulo, v. 12, n. 03 p. 2176 – 2191 out./dez. 2014.

[16] ZAN, Dirce; POSSATO, Beatris Cristina. Espaços Cerrados: As Marcas da Violência e do Controle na Arquitetura das Escolas… p.2184.

[17] ZAN, Dirce; POSSATO, Beatris Cristina. Espaços Cerrados: As Marcas da Violência e do Controle na Arquitetura das Escolas… p.2187.

[18] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o nascimento da prisão… p.123.

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