Tempo disciplinar – Michel Foucault

O tempo disciplinar não é um modo de operação planejado e pensado como um tipo perfeito de modelo para a produção, nem mesmo é uma qualidade natural da realidade ou uma categoria do pensamento humanos. É um tempo social presente nas divisões seriais e nas continuidades regulares promovidas pelas diferentes instituições disciplinares da sociedade contemporânea.

Da série “A disciplina em Foucault”.

Índice

Introdução

O advento da sociedade disciplinar traz consigo o estabelecimento corpos docilizados, marcados pelo poder. Este, que se inscreve positivamente com objetivo de produzir condutas adequadas aos seus desígnios. Durante o processo de docilização, os assujeitados pelas instituições disciplinares são submetidos a uma série específica de atividades, organizadas em níveis e separações temporais que dão o tom do desenvolvimento do processo disciplinar.

O tempo disciplinar, tempo específico do bom adestramento, consiste em um tipo de organização temporal a partir da contagem, da seriação, da harmonia dos movimentos que é própria do exercício de poder pelos aparelhos disciplinares.

O presente artigo mostra de que consiste o tempo disciplinar e como se aplica no exercício do poder nas sociedades de que faz parte.


Tempo disciplinar como sucessão

Pode-se dizer, com Michel Foucault, que o tempo disciplinar nasce na época clássica, com a organização serial de instituições de sequestro. O autor cita a escola criada pela famosa manufatura de tecido dos Gobelins, na França, como exemplo do início da organização disciplinar do tempo[1]. Mas, para entender como sua organização se alterou, é necessário compreender como funcionava a primeiramente a escola de formação através do ensino dos mestres operários. Ela era dividida por etapas para o desenvolvimento do aprendiz:

1ª etapa: sessenta crianças bolsistas eram confiadas a um mestre durante certo tempo. Este mestre devia lhes dar educação e instrução;

2ª etapa: as crianças eram, em seguida, colocadas para aprendizagem junto a mestres tapeceiros;

3ª etapa: passavam seis anos de suas vidas em aprendizagem constante;

4ª etapa: passavam quatro anos de suas vidas em serviços;

5ª etapa: todas as crianças, após estas quatro etapas iniciais, passavam por uma prova qualificatória que lhes fornecia o direito de abrir e manter uma loja em qualquer lugar do reino.

Encontramos aí as características próprias da aprendizagem corporativa: relação da dependência ao mesmo tempo individual e total quanto ao mestre; duração estatutária da formação que se conclui com uma prova qualificatória, mas que não se decompõe segundo um programa preciso; troca total entre o mestre que deve dar seu saber e o aprendiz que deve trazer seus serviços, sua ajuda e muitas vezes uma retribuição.[2]

Vemos, primeiramente, uma distribuição temporal não muito delineada, não muito rígida e não muito controlada. O controle existe, a serialidade existe, mas ambos não são marcados em seus detalhes, em suas próprias minuciosidades. O cenário muda com o nascimento da escola de desenho para os aprendizes da manufatura dos Gobelins.

Nesta escola[3]:

  1. Duas horas por dia, menos aos domingos e festas, os alunos vão à escola;
  2. Há uma lista afixada à parede para ser feita a chamada;
  3. Há um registro próprio para anotar as ausências;
  4. A escola se divide em três classes: a primeira para iniciantes, a segunda para aqueles que já se iniciaram nos estudos de desenho, a terceira para os já aptos que se iniciam na teoria e prática do tingimento;
  5. Um livro mantido pelos professores é arquivo de anotação diária a respeito do comportamento de cada aluno. Este livro é periodicamente submetido a um inspetor;
  6. Regularmente, todos os alunos fazem exercícios individuais, todos marcados com nome do autor e data de execução, que são colocados nas mãos do professor após a feitura;
  7. Os melhores alunos são recompensados;
  8. No fim do ano, todas as atividades são comparadas e é possível estabelecer os progressos individuais de cada aluno e elaborar as distâncias intelectuais entre eles.

A escola dos Gobelins é apenas o exemplo de um fenômeno importante: o desenvolvimento, na época clássica, de uma nova técnica para a apropriação do tempo das existências singulares; para reger as relações do tempo, dos corpos e das forças; para realizar uma acumulação da duração; e para inverter em lucro ou em utilidade sempre aumentados o movimento do tempo que passa. Como capitalizar o tempo dos indivíduos, acumulá-lo em cada um deles, em seus corpos, em suas forças ou capacidades, e de uma maneira que seja susceptível de utilização e de controle? Como organizar durações rentáveis? As disciplinas, que analisam o espaço, que decompõem e recompõem as atividades, devem ser também compreendidas como aparelhos para adicionar e capitalizar o tempo.[4]

O tempo disciplinar é, então, um tempo que individualiza, separa o tempo vivido do tempo físico, imutável, da linha do tempo cronológica. É no Renascimento que emerge, corrobora Alfredo Veiga-Neto, e que começa a ter função primordial na individualização dos corpos[5]:

Mas dessa individualização não decorre que cada corpo tenha seu próprio tempo, separado e independente dos demais corpos. Ao contrário, no que diz respeito ao tempo —como também no que concerne a muitas outras variáveis, práticas ou atributos— a individualização não implica autonomização, mas tão somente uma facilitação para que cada corpo seja mais fácil, pontual e economicamente atingido e perpassado pelo poder disciplinar.

A disciplina que atinge o tempo de desenvolvimento de um aluno também atravessa o tempo de produção: a cronometragem dos movimentos é elemento essencial para a aplicação do tempo disciplinar para a docilização dos corpos. O corpo dócil é, também, um corpo treinado e tal corpo

permite um bom emprego do tempo, nada deve ficar ocioso ou inútil: tudo deve ser chamado a formar o suporte do ato requerido. Um corpo bem disciplinado forma o contexto de realização do mínimo gesto.[6]

Percebe-se, assim, que o tempo é valioso, “é proibido perder um tempo que é contado por Deus e pago pelos homens”[7], e a economia própria da disciplina visa inserir um princípio sempre crescente de sua utilização. Não há sobras, não há espaços para ócio, não há espaços para o vazio. É justamente no combate ao vazio que a cronometragem estabelece o valor da harmonia entre corpo e gesto, entre a habilidade de executar um ato e a eficiência desta execução.

Por isso, Anthony Giddens conclui que “o uso eficiente do corpo significa que nada permanece ocioso ou em uso; a atenção deve ser totalmente concentrada no ato em que o indivíduo está envolvido”[8]. Assim, nascem coordenadas milimétricas, minuciosas, que devem guardar todo movimento a uma harmonia geral visando a economia e a eficiência:

Maurício de Orange decompôs o manuseio do mosquete numa série de 43 movimentos separados, o do pique em 23, coordenados no âmbito de uma formação de soldados numa unidade de batalha.[9]

Todo detalhe é importante e pode ser cronometrado. Toda evolução individual é importante e pode ser separada por níveis através de uma sucessão serial cronológica. Desta forma, o exército e a escola mostram os primeiros passos do tempo disciplinar que enseja uma aplicação, mas também uma organização própria.

Como organizar o tempo?

Para Foucault, há quatro processos que a organização militar ensina para melhora da utilização do tempo e, também, para sua aplicação mais eficiente:

  1. “Dividir a duração em segmentos”[10], assim, não se misturam os novatos e os experientes, que são separados através do tempo pré-determinado de formação e de desenvolvimento posterior. Os ensinamentos seguem uma linha serial em que, primeiramente, é ensinado a postura, depois a marcha, após isso o manejo das armas para, enfim, começar a prática do tiro. Um etapa só pode vir após a anterior estiver completa. Assim, são marcadas as “etapas de evolução, em cuja sequência todos os que recebem instrução devem progredir”[11].
  2. “Organizar essas sequências segundo um esquema analítico – sucessão de elementos tão simples quanto possível, combinando-se segundo uma complexidade crescente”[12]. Esta operação estabelece, assim, um esquema de carreira, de etapas de evolução que passam de atividades menos complexas para atividades mais difíceis, mas isso exige que ela tenha uma planejamento feito em “termos impessoais, sempre que possível desmembrado em suas operações mais elementares, as quais são então facilmente aprendidas por quem estiver recebendo a instrução”[13]. A dependência do desenvolvimento do aluno para com seu mestre é, então, evitada, já que  o plano de desenvolvimento impessoal é a regra.
  3. “Finalizar esses segmentos temporais, fixar-lhes um termo marcado por uma prova, que tem a tríplice função de indicar se o indivíduo atingiu o nível estatutário, de garantir que sua aprendizagem está em conformidade com a dos outros, e diferenciar as capacidades de cada indivíduo”[14]. Isso se dá através de um exame, que não só garante que todos os indivíduos se submeterão ao mesmo processo de avaliação, mas também separa-os através dos resultados colhidos pela examinação. “Os vários exames envolvidos na busca de uma carreira são graduados para que cada um possa ser realizado com êxito antes de o aprendiz poder passar a um outro”[15].
  4. “Estabelecer séries de séries; prescrever a cada um, de acordo com seu nível, sua antiguidade, seu posto, os exercícios que lhe convêm”[16]. Ou seja, tornar as tarefas de cada momento da série da “carreira” em séries de tarefas, também hierarquizadas. Isso promove uma forma de seleção e controle invejável: “na conclusão de cada série, alguns indivíduos podem ser contratados e encaminhados para um determinado grau, enquanto outros continuarão para obter graus superiores”[17], assim, o poder disciplinar intervém no detalhe, na linha fina de cada término e início de tarefa dentro de uma série planejada.

É assim que o tempo disciplinar adentra às instituições pedagógicas (mas não só nelas), separando o tempo de formação do tempo do já iniciado; organizando as atividades em escala de melhoria contínua, mas em etapas de aprimoramento com exames constantes; qualificando os indivíduos de acordo com o momento em que estão na série; exigindo engajamento do corpo de indivíduos submetidos à disciplina a uma constante carga de exercícios com participação regular ao longo do tempo, com objetivo de treinar a mente e o corpo. O exercício é uma maneira de exercer poder de longa duração cujo objetivo (que é o da perfeição) tende a nunca ser alcançado, assim, de uma sujeição que tende a nunca terminar[18][19][20].

O corpo é tratado como uma parte movente num composto mais amplo. A disciplina, em suma, demonstra as seguintes características principais: é “celular” (codificando as atividades de acordo com procedimentos programados); é “genética” (com relação às fases seriais); e é “combinatória” (unindo atividades humanas como os trajetos de uma máquina social).[21]

A união das atividades através de procedimentos programados, fases seriais e um trajeto maquinário bem definido depende do tempo linear proposto pelos procedimentos disciplinares: não há espaço para um outro tipo de tempo que não aquele pré-estabelecido, cujo caminho é único, insuperável. Cabe ao indivíduo passar por ele etapa a etapa.

Os procedimentos disciplinares se revelam um tempo linear cujos momentos se integram uns nos outros, e que se orienta para um ponto terminal e estável. Em suma, um tempo “evolutivo” […][As técnicas disciplinares] fazem emergir séries individuais: descoberta de uma evolução em termos de “gênese”. Progresso das sociedades, gênese dos indivíduos, essas duas grandes “descobertas” do século XVIII são talvez correlatas das novas técnicas de poder, mais precisamente, de uma nova maneira de gerir o tempo e torná-lo útil.[22]

Assim, entende-se que a historicidade evolutiva, a experiência evolutiva do tempo nas atividades cotidianas, é parte integrante de um modo de funcionamento do poder, um modo específico que tem as diferentes técnicas de sujeição em seu núcleo. Da mesma forma, a experiência do tempo a partir de uma “história-rememoração”, de uma história baseada nos atos passados, a partir da rememoração de crônicas, genealogias, proezas de reinos e atos, esteve ligada a uma modalidade de poder diferente, “dinástica” e solene. As temporalidades tendem a se substituir conforme a própria configuração da sociedade se modifica, conforme a configuração hegemônica do poder se altera.

Considerações finais

Com o desenvolvimento dos procedimentos disciplinares, tem-se a necessidade de um novo arranjo temporal para a prática de adestração dos indivíduos. Entende-se que este novo modelo de tempo, chamado de tempo disciplinar, é de caráter evolutivo e linear. Seu objetivo é, acima de tudo, manter o indivíduo ocupado e produtivo, torná-lo mais útil com a atribuição de tarefas planejadas e com a aplicação de exames para a hierarquização dos grupos de indivíduos qualificados em cada etapa da série evolutiva que devem passar.

O tempo disciplinar não é um modo de operação planejado e pensado como um tipo perfeito de modelo para a produção, nem mesmo é uma qualidade natural da realidade ou uma categoria do pensamento humano. É um tempo social, um tempo de experiência cotidiana que emerge no momento de criação de aperfeiçoamento das técnicas disciplinares e da implementação dos procedimentos disciplinares em suas respectivas instituições sociais responsáveis pela sujeição dos corpos e formação dos indivíduos. Responsáveis, portanto, por marcar no corpo as condutas necessárias para a alta utilidade através de mecanismos eficientes.

Referências

[1] FOUCAULT, Michel. Os corpos dóceis IN Vigiar e Punir: o nascimento da prisão. 20ª ed. São Paulo: Vozes, 1999, p.132.

[2] FOUCAULT, Michel. Os corpos dóceis… p.133.

[3] FOUCAULT, Michel. Os corpos dóceis… p.133.

[4] FOUCAULT, Michel. Os corpos dóceis… p.133. Negritos inseridos por nós.

[5] VEIGA-NETO, Alfredo. Espaços, Tempos e Disciplinas: as crianças ainda devem ir à escola? Texto para o Simpósio Espaços e tempos escolares, no 10º ENDIPE, Rio de Janeiro, 31 de maio de 2000. Disponível em <<https://bit.ly/2M4n2En>>. Acesso em 28 mai 2020.

[6] FOUCAULT, Michel. Os corpos dóceis… p.130.

[7] FOUCAULT, Michel. Os corpos dóceis… p.131.

[8] GIDDENS, Anthony. Notas críticas: Foucault sobre distribuição de tempo e de espaço IN A constituição da sociedade. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p.175.

[9] GIDDENS, Anthony. Notas críticas: Foucault sobre distribuição de tempo e de espaço… p.175.

[10] FOUCAULT, Michel. Os corpos dóceis… p.134.

[11] GIDDENS, Anthony. Notas críticas: Foucault sobre distribuição de tempo e de espaço… p.176.

[12] FOUCAULT, Michel. Os corpos dóceis… p.134.

[13] GIDDENS, Anthony. Notas críticas: Foucault sobre distribuição de tempo e de espaço… p.176.

[14] FOUCAULT, Michel. Os corpos dóceis… p.134.

[15] GIDDENS, Anthony. Notas críticas: Foucault sobre distribuição de tempo e de espaço… p.177.

[16] FOUCAULT, Michel. Os corpos dóceis… p.134.

[17] GIDDENS, Anthony. Notas críticas: Foucault sobre distribuição de tempo e de espaço… p.177.

[18] FOUCAULT, Michel. Os corpos dóceis… p.135.

[19] GIDDENS, Anthony. Notas críticas: Foucault sobre distribuição de tempo e de espaço… p.178.

[20] FOUCAULT, Michel. Os corpos dóceis… p.137.

[21] GIDDENS, Anthony. Notas críticas: Foucault sobre distribuição de tempo e de espaço… p.178.

[22] FOUCAULT, Michel. Os corpos dóceis… p.136.

 

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