O Homem dos Ratos – Sigmund Freud

Trata-se da história de um homem por volta dos vinte anos, que, além de se preparar para prestar uma prova que o habilitaria para a prática da advocacia, estava em treinamento militar. Em análise, além de contar sua história, expõe pensamentos obsessivos anteriores à dívida. Assim, o analista descobre as repetições e associações de termos que encadearam os sintomas neuróticos do paciente.

Índice

Introdução

O caso d’O Homem dos Ratos é paradigmático para o tratamento das neuroses obsessivas, que são partes integrantes da histeria. Segundo Sigmund Freud, são seus dialetos.

Trata-se da história de um homem por volta dos vinte anos, que, além de se preparar para prestar uma prova que o habilitaria para a prática da advocacia, estava em treinamento militar.

Em uma das manobras militares, ouve um oficial contar a história de um castigo praticado no Leste Europeu, que consistia em amarrar um balde com ratos nas nádegas das vítimas, para que tentassem abrir caminho roendo o corpo do sujeito. Mais tarde, recebe a notícia que o pince-nez que encomendou estava pronto, e o tenente “A” havia pago a despesa. Então, lhe ocorre o intrusivo pensamento de que, se não sanasse a dívida, a mesma punição que teve notícia seria aplicada a sua namorada ou ao seu pai, já falecido.

Com a emergências de angústias suscitadas pelas ações fracassadas para efetuar o pagamento, através da indicação de um amigo, vai ao consultório de Sigmund Freud. Em análise, além de contar sua história, expõe pensamentos obsessivos anteriores à dívida. Assim, o analista descobre as repetições e associações de termos que encadearam os sintomas neuróticos do paciente. 

Extratos do caso clínico

O rapaz apresentou-se a Freud alegando sofrer com obsessões desde a infância, embora com mais intensidade nos últimos quatros anos. Os principais aspectos de seus pensamentos intrusivos, que muito o desgastavam, consistiam em medos, impulsos compulsivos e proibições relacionadas a práticas insignificantes.

No mais, contou que havia experimentado tratamentos ineficientes, com exceção de uma experiência com hidroterapia, cujo resultado atribuiu às relações sexuais que mantinha na época.  Em seguida, emendou que no momento, seus encontros sexuais eram raros e que, na adolescência, a masturbação desempenhou um papel pequeno na sua vida sexual. Disse que iniciou este assunto pois conhecia as teorias freudianas, ainda que não as tivesse lido.

Enfim, a impressão de Freud consistiu em que se tratava de uma “pessoa de mente clara e sagaz”[1].

O início do tratamento

No dia seguinte, Freud iniciou o tratamento sob a condição do jovem dizer o que lhe viesse à mente, mesmo que fosse aparentemente desagradável ou irrelevante. Então, sinalizou que ele começasse sua fala conforme desejasse.

Eis que o paciente falou a respeito de um caro amigo. Em seguida, contou que, aos 14 anos, nutria admiração semelhante por um colega mais velho, no entanto, ao perceber que este amigo só lhe tratava bem para se enturmar por estar interessado em uma de suas irmãs, considerou-o responsável pelo “primeiro grande golpe de sua vida”[2].

Sexualidade infantil

Sem transição aparente, o paciente adentrou no assunto da sexualidade.

Disse que sua vida sexual começou cedo: por volta dos cinco anos, apresentava curiosidade a respeito do corpo de suas governantas. Chegou a imaginá-las nuas e a tocar algumas. Aos seis anos, já possuía ereções e entendia que eram conectadas aos seus pensamentos. Isso lhe afligia, pois imaginava que que seus pais conheciam seus pensamentos e que algo aconteceria se continuasse com imagens eróticas em mente, fato que entendeu como início de sua doença. Como ilustração, falou que ocupava-se imaginando a morte de seu pai, e assim Freud soube que ele já era falecido e ainda protagonizava seus pensamentos intrusivos (como aquele a respeito da punição com ratos).

O parecer do analista foi que, desde a infância, o caso se apresentava como neurose obsessiva. Ele constatou que a criança estava sob domínio do instinto sexual que culminou na ideia obsessiva apresentada no parágrafo anterior, cujo efeito consistia em medo obsessivo, explicação exemplificada em “se tenho esse desejo de ver uma mulher despida, meu pai deverá fatalmente morrer”[3].

Freud apontou que para mitigar a angústia, o rapaz já começava a gerar medidas de proteção, ou seja, impulsos para agir contra os fins imaginados.

O grande medo obsessivo

Neste momento, o rapaz relatou o evento que constituiu o motivo imediato de sua vinda à análise: o castigo dos ratos descrito no início deste artigo.

Como já dito, ele passou os dias seguintes obsessivamente ocupado com a tarefa que se comprometeu a cumprir para evitar a punição que imaginara, sem sucesso. Sua maior perplexidade foi, ao encontrar o Tenente “A”, ouvir que a quantia havia sido paga pelo Tenente “B” e assim, entender que jamais poderia cumprir sua promessa com o primeiro oficial, pois seu juramento foi baseado em um equívoco, sendo, portanto, um tormento do qual não via fim, apesar de reconhecer que racionalmente não havia nenhum problema.

Iniciação na natureza do tratamento

Freud iniciou o quarto encontro perguntando como o paciente gostaria de começar a sessão, que lhe contou sobre a última doença de seu pai, seu tormento até então. Por ter dormido, não esteve presente na hora de sua morte, dor agravada ao saber que seu pai lhe chamara nos últimos dias. Por 18 meses, mal compreendeu seu óbito, esperando algumas aparições fantasmagóricas. A morte de uma tia foi o gatilho que lhe despertou ao ocorrido, cuja somatização o incapacitou de trabalhar.

O analista lhe apresentou um parecer:

“O afeto se justifica. O sentimento de culpa não está, em si, aberto a novas críticas. Mas pertence a algum outro contexto, o qual é desconhecido (inconsciente) e que exige ser buscado. O conteúdo ideativo conhecido só entrou em sua posição real graças a uma falsa conexão. Não estamos acostumados a sentir fortes afetos, sem que eles tenham algum conteúdo ideativo; e, portanto, se falta o conteúdo, apoderamo-nos, como um substituto, de algum outro conteúdo que seja, de uma ou de outra forma, apropriado, com a mesma intensidade com que a nossa polícia, não podendo agarrar o assassino certo, prende, em seu lugar, uma pessoa errada. Além disso, esse fato de existir uma falsa conexão é o único meio de se responder pela impotência dos processos lógicos para combater a ideia atormentadora”[4].

Na sessão seguinte, o rapaz considerou relevante a análise de Freud e apresentou dúvidas sobre como a informação dita poderia ser terapêutica. Então, lhe foi respondido que a descoberta do conteúdo inconsciente ao qual a autocensura estava ligada seria o elemento importante.

Já o encontro posterior foi iniciado com relatos sobre a infância do paciente. Além do medo de que seus pais adivinhassem seus pensamentos, foi doloroso imaginar a morte do pai. Também lembrava que, quando criança, gostava de uma garota que não lhe correspondia e tinha lembranças sobre ter vontade de casar e esbarrar em obstáculos financeiros: seu pai lhe disse que não tinham dinheiro para pagar o dote, o que fez com que desejasse seu desaparecimento. Ao afirmar que tal imagem era um temor e não uma vontade, Freud respondeu que, para a psicanálise, medos correspondem a desejos primeiros reprimidos. Incrédulo, afirmou que amava seu pai, obtendo como resposta que afetos assim intensos são precondições de ódio reprimido e, por conta disso, seria necessário descobrir sua fonte.

A seguir, discorrendo sobre essa parte da vida, ele relatou que seus desejos sexuais foram mais presentes na infância do que na puberdade. Freud e o rapaz entenderam que o pai poderia agir como uma interferência nestas vontades, por isso o desejo de livrar-se dele.

Na sétima sessão, retomou o assunto: não acreditava que nutria tal querer quanto ao pai. Ao ser convidado a rememorar outras agressividades do passado,  contou de um ato criminoso que cometeu e de impulsos vingativos não postos em prática destinados à mulher que não o correspondia.

Enfim, prosseguiu reconhecendo que sua doença se intensificou desde a morte do pai, através do sentimento suscitado pelo acontecimento.

Algumas ideias obsessivas e sua explicação

Freud iniciou o capítulo expondo que, uma vez que as ideias contém aparência de não possuir nem motivo nem significação, podem ser esclarecidas se suas relações temporais com as experiências do paciente forem traçadas, indagando quando foram suas primeiras aparições e em que situações retornam.

Como exemplo, relatou as ideias suicidas do paciente. Uma consistiu em cortar a garganta após imaginar que poderia matar a avó doente que ocupava a atenção da sua amante. O pensamento, via culpa, foi uma punição resultante da vontade não reconhecida de livrar-se da senhora.

Outro impulso que convém citar foi o acontecido em suas férias. Foi acometido pelo pensamento de estar gordo (dick) e dever emagrecer. Passou a afastar-se de sobremesas, andar na rua sem chapéu no calor e subir apressado uma montanha, onde ocorreu-lhe de se jogar. Em análise, notou que, na época, a amante se encontrava na companhia de seu primo apelidado de Dick, o que lhe causava ciúmes. O paciente, pois, desejou se livrar do sujeito, e para se punir, impôs seu emagrecimento e contatou a ideia suicida.

Ainda relacionado com a mulher, vale ressaltar o episódio em que estava na estrada a esperando e, ao ver uma pedra, a tirou do caminho por pensar que poderia lhe causar um acidente. Ao considerar a ação absurda, sentiu-se obrigado a colocar o objeto na posição inicial. Como infere Freud, “atos compulsivos como este, em dois estádios sucessivos, quando o segundo neutraliza o primeiro, constituem uma típica ocorrência nas neuroses obsessivas”[5].

O conflito entre amor e ódio, enfim, revelou-se bastante presente quanto a amada. O paciente percebeu que, desde que ela recusara sua proposta, havia períodos em que parecia amá-la, e outros, ser indiferente em relação a ela – fato que servia como resistência à pauta de encaminhamentos mais nítidos ao relacionamento. Assim, em suas fantasias, reconheceu sede de vingança, ainda que esta ficasse inativa em sua presença e aparente quando separados.

A causa precipitadora da doença

Freud propôs-se a fazer um exame mais detalhado da causa da doença.

Atentou-se à história do sujeito e percebeu que, quando era novo, soube de um atrito no feliz casamento de seus pais. O objeto desta tensão foi o cortejo do pai a uma moça sem recursos, antes de se casar com sua mãe. Após sua morte, a mãe lhe contou que havia discutido com parentes ricos e que um primo sugeriu, após conclusão de sua educação, seu casamento com uma filha dele em troca de negócios na firma. Este plano desencadeou um conflito quanto a permanecer fiel com sua amada ou seguir os passos do pai conforme o desejo da família. Eis que adoeceu, portanto, evitou seu posicionamento.

Adveio, então, um período obscuro no tratamento, que contou com uma fantasia de transferência: ao cruzar com a filha do analista, imaginou que Freud, cuja riqueza e posição estimava, queria torná-lo seu genro. Como exemplo de sua maneira de tratar o assunto, eis o sonho de que estava em frente à garota, que apresentava estrume no lugar dos olhos. A interpretação apresentada pelo analista fora que “ele se casava com minha filha, não por causa de seus ‘beaux yeux’, mas sim pelo seu dinheiro.” [6]

Conclusão

É inferido que o conflito nas raízes de sua doença, originado na infância, consistia em uma luta entre a persistente influência dos desejos de seu pai e suas próprias inclinações amorosas. Assim, a intensidade dos pensamentos sobre a morte do pai está relacionada com ter desejado seu desaparecimento enquanto buscava simpatia da menina que admirava. No mais, ele foi obstáculo ao relacionamento atual, por dizer que seria feito de tolo.

Alguns anos após seu falecimento, ao ter uma relação sexual pela primeira vez, em um eco e uma elucidação das ideias obsessivas da infância, pensou ‘que maravilha! Por uma coisa assim alguém é até capaz de matar o pai!’[7].

No mais, foi visto que o comportamento autoerótico do paciente fora incomum. Ele não praticava a masturbação na adolescência, tendo impulsos em direção ao ato após a morte de seu pai, entretanto, a partir de então, envergonhava-se nas raras vezes em que se tocou. Ao ser questionado sobre o auto erotismo, contou que se seguiam a momentos que vivia ou lia coisas belas, tendo em comum a proibição e o desafio a uma ordem.

Depois de um caminho transferencial doloroso, o paciente se convenceu de era necessário investigar os elementos inconscientes da relação com o pai. Assim, abriu-se caminho para a solução da ideia do rato.

Primeiro, constatou-se que assuntos militares o levavam a um estado de identificação inconsciente com o pai. Por anos, ele fez serviço militar e compartilhou com o filho histórias da época. Percebeu-se, pois, que possuíam relação com a questão dos ratos: quando fora responsável por controlar uma pequena soma de dinheiro, perdeu-a em um jogo de cartas – foi um ‘spielratte’ [um rato de jogo]. Então, recebeu de um de seus camaradas um empréstimo que não conseguiu reembolsar por não encontrá-lo após o fim da temporada de serviço. Dessa forma, quando o paciente ouviu o mando do capitão, inconscientemente carregando críticas ao caráter do pai, remeteu-se a essa dívida jamais liquidada.

Os ratos, portanto, tomaram uma série de significados simbólicos. A punição com ele incitou seu erotismo anal, que desempenhou importante papel em sua infância e se mantivera ativo, por muitos anos, por via de uma constante irritação sentida por vermes. Outro significado a eles atribuído foi o de “dinheiro” -‘Ratten’ [‘ratos’] associado a ‘Raten’ [‘prestações’] – correlacionando assuntos por intermédio da associação dos termos. Ademais, o pedido que o capitão lhe fez para reembolsar as despesas relativas ao pacote serviu para fortalecer a significação monetária de ratos, mediante outra ponte verbal, ‘Spielratte’, que reconduziu à dívida contraída por seu pai no jogo[8]. Por fim, dado que os ratos são portadores de doenças, empregava-os como símbolos de seu pavor de contrair uma infecção sifilítica, que ocultava as dúvidas relativas ao estilo de vida que seu pai levou em seu tempo de serviço militar. Por outro lado, o próprio pênis é um portador de infecção sifilítica; dessa forma, ele podia considerar o rato como um órgão sexual masculino[9], associação também ao erotismo anal pois o órgão pode ser comparado com um verme que, tal como os ratos, enfiavam-se em ânus.

O último esclarecimento se deu quando emergiu na análise a Mulher-Rato de O Pequeno Eyolf, de Ibsen, e foi impossível evitar a inferência de que em muitas das formas assumidas pelos seus delírios obsessivos os ratos tinham ainda outro significado, o de crianças[10]. Foi apenas então que o paciente, simpático à paternidade, revelou que sua amada era estéril.

Investigando lembranças, descobriu-se que, uma vez em que visitou o túmulo de seu pai, o paciente viu um grande animal que imaginou ser um rato saindo da cova onde supostamente devorou parte do cadáver. Pensando que esses roedores não agem impunemente, sendo perseguidos pelos humanos, e, vendo-se como também asqueroso e sujo, deles apiedou-se.

Pois, somente com essa análise foi possível compreender o processo pelo qual a ideia obsessiva se formou. Na parada onde ouviu sobre a punição com ratos, além de chocar-se com a crueldade, conectou o fato com a lembrança de morder alguém na infância. O capitão, por defender ações como esta, tornou-se um substituto de seu pai, atraindo sua repulsa. Já a ideia de que o castigo poderia ser aplicado a alguém de seu apreço pôde ser traduzida por “‘é preciso que lhe façam também a mesma coisa!’, dirigido àquele que narrou a história, e através dele, a seu pai”[11]. Com a entrega do pacote pelo qual as taxas eram devidas, nascida das agitações de seu complexo paterno e de sua lembrança da cena de sua infância, formou em sua mente uma resposta parecida com ‘Está bem. Reembolsarei o dinheiro ao Tenente “A” quando meu pai e a dama tiverem filhos!’, ou ‘Tão certo quanto meu pai e a dama possam ter filhos, eu lhe pagarei!’[12].

Além da antiga luta contra a autoridade do pai, havia a variável de que, com a distância da amada, o paciente pensou em se relacionar com outras mulheres. O final da manobra militar, a hesitação em ir à Viena e o juramento representaram, em um só quadro, os conflitos sobre manter-se obediente ao pai e fiel à dama.

Como observação a mais, Freud citou suas teorias sexuais da infância: uma de que os bebês nascem pelo ânus, outra que homens têm filhos como as mulheres. Em conformidade com as técnicas de interpretação dos sonhos, “a noção de vir para fora do reto pode ser representada pela noção oposta de mover-se para dentro do reto (como na punição com ratos), e vice-versa”[13].

Por fim, quando as soluções foram expostas ao rapaz, o “delírio que o paciente sofria sobre os ratos desapareceu”[14].

Referências

FREUD, Sigmund. Notas sobre um caso de neurose obsessiva (1909) IN: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. X. Rio de Janeiro: Imago, 1996

[1] FREUD, Sigmund. Notas sobre um caso… p. 95.

[2] FREUD, Sigmund. Notas sobre um caso… p.95.

[3] FREUD, Sigmund. Notas sobre um caso… p 97.

[4] FREUD, Sigmund. Notas sobre um caso… p 105.

[5] FREUD, Sigmund. Notas sobre um caso… p 114.

[6] FREUD, Sigmund. Notas sobre um caso… p 118.

[7] FREUD, Sigmund. Notas sobre um caso… p 119.

[8] FREUD, Sigmund. Notas sobre um caso… p 124.

[9] FREUD, Sigmund. Notas sobre um caso… p 124.

[10] FREUD, Sigmund. Notas sobre um caso… p 125.

[11] FREUD, Sigmund. Notas sobre um caso… p 126.

[12] FREUD, Sigmund. Notas sobre um caso… p 126.

[13] FREUD, Sigmund. Notas sobre um caso… p 127.

[14] FREUD, Sigmund. Notas sobre um caso… p 127.

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