Da subjetividade na linguagem – Émile Benveniste

Para Émile Benveniste, a linguagem é a condição de existência do "eu" na medida em que ele só é formado através da possibilidade do locutor se propôr como sujeito. Antes disso, há um momento de intersubjetividade, na medida em que o "eu" só poderá existir na presença de um "tu". O par "eu-tu" é necessário para a delimitação do eu, sendo assim, a intersubjetividade é elemento central na possibilidade de existência da subjetividade (e não o contrário). Por fim, é através de indicadores dêiticos que a subjetividade é emergida na enunciação.

Índice

Introdução

O problema da relação entre linguagem e subjetividade começa, para Émile Benveniste, com a dúvida sobre o próprio status da linguagem. Em Da subjetividade na linguagem[1], o autor explica sua teoria do sujeito com a negação de que a linguagem seria um instrumento descolado da própria constituição da subjetividade. Ao mesmo tempo, Kelly Werner[2] compreende que a própria subjetividade só tem condições de nascimento a partir da presença do outro, portanto, a intersubjetividade é seu momento anterior.

O objetivo deste artigo é expor a noção de subjetividade proposta por Benveniste, relacioná-la com a intersubjetividade, mais à frente será vista como pressuposto da subjetividade na linguagem, e terminar com a indicação da dêixis presente na teoria benvenistiana.


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Linguagem como condição da subjetividade

“Subjetividade na linguagem”. Veja aqui:

Para Benveniste, a noção da linguagem como instrumento é separadora, pois coloca o homem em oposição à natureza. É necessário pensá-la como um instrumento material para entender como esta oposição distancia dois elementos que são, na verdade, constituídos por relação mútua. A oposição entre homem e natureza deve ser pensada como uma oposição do homem àquilo que é já dado pela natureza em sua forma de uso definitiva: quando pensa-se em instrumentos concretos, compreende-se que a chave de fenda, o moinho e a roda não estão na natureza, na medida em que são fabricações.

A linguagem está na natureza do homem, que não a fabricou. Inclinamo-nos sempre para a imaginação ingênua de um período original, em que um homem completo descobriria um semelhante igualmente completo e, entre eles, pouco a pouco, se elaboraria a linguagem. Isso é pura ficção. Não atingimos nunca o homem separado da linguagem e não o vemos nunca inventando-a.[3]

Werner complementa:

De fato, essa concepção deixa o indivíduo à margem da linguagem, esconde o trabalhador de seu trabalho, mostrando apenas o produto dessa atividade nobre que é falar.[4]

Não se concebe um homem sozinho no mundo. Pelo contrário, o homem é encontrado sempre falando com outro homem, “a linguagem ensina a própria definição do homem”[5]. A observação da prática cotidiana da linguagem mostra uma troca entre falantes e, assim, também indica que há algo que se troca, daí parecer que a comunicação exigiria uma função instrumental da linguagem e que o vaivém de palavras seria uma amostra da instrumentalização de um objeto que se troca. Entretanto, a comunicação acontece somente quando a palavra está habilitada pela linguagem para ser trocada. A palavra é apenas sua atualização.

O homem, portanto, é um ser de linguagem, não um ser que instrumentaliza a linguagem para um fim definido num passo anterior à sua própria utilização. A linguagem e o homem fazem parte de uma mesma gênese, ela “viabiliza a existência de eu-tu, como sujeitos, mediante o respeito à condição de interação”[6], na medida em que o outro, como dito acima, é condição necessária para a prática da linguagem.

É na linguagem e pela linguagem que o homem se constitui como sujeito; porque só a linguagem fundamenta na realidade, na sua realidade que é a do ser, o conceito de “ego”.[7]

É na e pela linguagem que o locutor pode se propor como sujeito. Esta subjetividade de que Benveniste fala é diferente do sentimento de ser um sujeito, considerado pelo autor como reflexo da constituição do sujeito através da linguagem, mas é, por sua vez, “a unidade psíquica que transcende a totalidade das experiências vividas que reúne, e que assegura a permanência da consciência”[8].

Acima de tudo, a consciência de si só é possível quando há um outro. Somente através do corte entre o eu e o outro é possível haver de fato um eu: “Essa condição de diálogo é que é constitutiva da pessoa, pois implica em reciprocidade – que eu me torne tu na alocução daquele que por sua vez se designa por eu[9]. A própria prática da linguagem se torna possível na medida em que o sujeito se propõe como eu no seu discurso.

Por isso, eu propõe outra pessoa, aquela que, sendo embora exterior a “mim”, torna-se o meu eco – ao qual digo tu e que me diz tu. A polaridade das pessoas é na linguagem a condição fundamental, cujo processo de comunicação, de que partimos, é apenas uma consequência totalmente pragmática.[10]

Assim, também fica perceptível que a subjetividade, conforme pensa Benveniste, não se limita ao eu, mas à relação de intersubjetividade estabelecida pelo par eu-tu, relação dialógica por natureza. Entende-se, com Werner[11], que o estabelecimento da relação de intersubjetividade é um momento anterior à própria gênese da subjetividade. E, assim como a enunciação só pode acontecer na presença de um outro real ou imaginário, a emergência da subjetividade também precisa deste elemento externo, independentemente de sua presença física[12], pois é ele que permite a autorreferência como eu.

A dêixis

Além de apontar a emergência da subjetividade através da linguagem (e da intersubjetividade), Benveniste declara quais títulos da linguagem a fundam. Os principais termos utilizados para descrever a subjetividade fazem parte deste arcabouço de títulos linguísticos que são seus fundadores: eu e tu. Ambos são formas linguísticas que indicam a “pessoa”, elemento presente em qualquer tipo de língua, em qualquer época. Todas as línguas contém signos que expressem a “pessoa”[13]. Adiante, outros indicativos de subjetividade serão mostrados, no entanto, este é o momento de introduzir outro conceito, cujo uso é tomado de empréstimo de Pires e Werner[14]: a dêixis como elemento para análise da representação da subjetividade em Benveniste.

A dêixis surge na capacidade humana de apontar, de dizer mostrando, de indicar, mas de sempre indicar para um outro, de se relacionar, então, com o outro. Pires e Werner tratam, desta forma, a dêixis como uma “categoria de linguagem, de enunciação e uma reveladora das subjetividades envolvidas”[15]. A dêixis é o signo linguístico que representa, aponta ou indica aquele que fala. Assim, entende-se que eu e tu, formas linguísticas que indicam a pessoa, fazem parte da dêixis própria da teoria da subjetividade proposta por Benveniste.

À frente, a conceituação da dêixis retornará. Neste momento, é importante compreender como ela se relaciona aos índices linguísticos de subjetividade que serão exibidos a partir do texto de Benveniste.

Eu e tu, diz o autor, se distinguem de todas as designações que a língua articula, pois não remetem a um conceito e nem a um indivíduo[16].

A que, então, se refere o eu? A algo de muito singular, que é exclusivamente linguístico: eu se refere ao ato de discurso individual no qual é pronunciado, e que lhe designa o locutor. É um termo que não pode ser identificado a não ser dentro do que, noutro passo, chamamos uma instância de discurso. É na instância de discurso na qual eu designa o locutor que este se enuncia como “sujeito”.[17]

E quando o locutor se enuncia como sujeito, quando se coloca como um eu, se torna capaz de se apropriar de toda a língua.

Além da referência a si mesmo, a indicação da subjetividade também acontece através da indicação do tempo e do espaço: as formas temporais (como os tempos verbais) e os índices de ostensão (como este, aqui e etc). Ambas as categorias, espaço e tempo, são dependentes da categoria de pessoa[18].

Diz Werner e Pires:

A dêixis, como já citado, também denominada na obra de Benveniste, por “indicadores de subjetividade”, contém a categoria de pessoa o que dá a ela a característica de ser única, particular e pertencente ao discurso e não a uma realidade determinada.[19]

Por fim, a dêixis (ou os indicadores de subjetividade) é constituída também pelas formas de interrogação, asserção e intimação, através do modos optativo, subjetivo, etc. Todos eles enunciam uma atitude do enunciador e o demarcam no eu[20].

Considerações finais

A subjetividade, segundo Benveniste, é formada através da linguagem. Isso em sua descrição mais fundamental, não somente como representação do eu pela língua. Ou seja, o eu não é representado pela linguagem, como se já existisse antes dela, como se fosse o responsável por algum tipo de manipulação da linguagem, de uso instrumental e racional do signos linguísticos para seu próprio fim. O eu é formado através da prática da linguagem, através da possibilidade que o locutor tem em se colocar como sujeito e isso só pode ser feito na e pela enunciação.

Daí, segue que:

A instalação da “subjetividade” na linguagem cria na linguagem e, acreditamos, igualmente fora da linguagem, a categoria da pessoa. Tem além disso efeitos muito variados sobre a própria estrutura das línguas, quer seja na organização das formas ou nas relações da significação.[21]

A linguagem representa a realidade, no entanto, esta última só pode ser representada por um eu formado, inserido num espaço social em conjunto com um tu. A linguagem não representa o eu: para o locutor, ela funda sua própria subjetividade e permite que ele possa se apropriar da língua para então representar a realidade através de signos.

Referências

[1] BENVENISTE, Émile. Da subjetividade na linguagem IN Problemas de linguística geral II. Tradução de Eduardo Guimarães et al; revisão técnica de Eduardo Guimarães. Campinas SP: Pontes, 1974.

[2] WERNER, Kelly. A intersubjetividade antes da subjetividade na teoria da enunciação de Benveniste. Revista SIGNÓTICA, v. 18, n. 2, p. 397-411, jul./dez. 2006.

[3] BENVENISTE, Émile. Da subjetividade na linguagem… p.285.

[4] WERNER, Kelly. A intersubjetividade antes da subjetividade na teoria da enunciação de Benveniste… p. 397.

[5] BENVENISTE, Émile. Da subjetividade na linguagem… p.285.

[6] WERNER, Kelly. A intersubjetividade antes da subjetividade na teoria da enunciação de Benveniste… p. 398.

[7] BENVENISTE, Émile. Da subjetividade na linguagem… p.286.

[8] BENVENISTE, Émile. Da subjetividade na linguagem… p.286.

[9] BENVENISTE, Émile. Da subjetividade na linguagem… p.286.

[10] BENVENISTE, Émile. Da subjetividade na linguagem… p.286.

[11] WERNER, Kelly. A intersubjetividade antes da subjetividade na teoria da enunciação de Benveniste… p. 405.

[12] BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral II… p. 87.

[13] BENVENISTE, Émile. Da subjetividade na linguagem… p.287.

[14] PIRES, Vera Lúcia; WERNER, Kelly. A dêixis na teoria da enunciação de Benveniste. Revista Letras – Émile Benveniste: Interfaces Enunciação & Discursos, n° 33, Dez 2006, p.145-160.

[15] PIRES, Vera Lúcia; WERNER, Kelly. A dêixis na teoria da enunciação de Benveniste… p.146.

[16] BENVENISTE, Émile. Da subjetividade na linguagem… p.288.

[17] BENVENISTE, Émile. Da subjetividade na linguagem… p.288.

[18] BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral II… p. 85.

[19] PIRES, Vera Lúcia; WERNER, Kelly. A dêixis na teoria da enunciação de Benveniste… p.156.

[20] PIRES, Vera Lúcia; WERNER, Kelly. A dêixis na teoria da enunciação de Benveniste… p.156.

[21] BENVENISTE, Émile. Da subjetividade na linguagem… p.290.

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