Estratégia – Pierre Bourdieu

A estratégia "é produto do senso prático como sentido do jogo, de um jogo social particular, historicamente definido, que se adquire desde a infância, participando das atividades sociais" (BOURDIEU, 2004, p. 81). Sendo que senso prático é entendido como aquilo que, ao marcar o corpo, faz do corpo um suporte criativo de ações mais ou menos adequadas ao campo específico em que está inserido.

A noção de estratégia é o instrumento de uma ruptura com o ponto de vista objetivista e com a ação sem agente que o estruturalismo supõe (recorrendo, por exemplo, à noção de insconciente). Mas pode-se recusar a ver a estratégia como o produto de um programa insconciente, sem fazer dela o produto de um cálculo consciente e racional (BOURDIEU, 2004, p. 81).

Estratégia é um conceito de Pierre Bourdieu para descrever as tomadas de posição dentro de um campo específico. Esta explicação, focada nos aspectos sociológicos do fenômeno da prática, da ação, abdica de um olhar fundamentalmente estrutural e, portanto, não rejeita a necessidade de explicar as decisões do sujeito a partir de pesquisas empíricas e estatísticas. Ao mesmo tempo, também abdica de um olhar fenomenológico em que o sujeito seria concebido enquanto fonte criadora das ações, subjetividade incalculável.

A estratégia “é produto do senso prático como sentido do jogo, de um jogo social particular, historicamente definido, que se adquire desde a infância, participando das atividades sociais” (BOURDIEU, 2004, p. 81). Sendo que senso prático é entendido como aquilo que, ao marcar o corpo, faz do corpo um suporte criativo de ações mais ou menos adequadas ao campo específico em que está inserido.

A teoria da ação que Bourdieu propõe implica em dizer que a maior parte da ação humana está não na intenção do sujeito, mas no seu corpo. Naquilo que a gente tratou como disposições corporais. Então, a ação é diretamente tributária do conceito de habitus e portanto a ação é pré-reflexiva. Ela nunca é intencional. Ele chama essa ação de senso prático. O senso prático é uma visão quase corporal, é uma visão que não implica então a representação (MONTERO, 2021).

Desta forma, no interior do jogo social, o bom jogador é aquele que é capaz de reproduzir as regras fundamentais do jogo, pois incorpou em habitus sua doxa. Portanto, incorporou como um “sistema de disposições duráveis e transponíveis” (BOURDIEU, 1983, p. 65) todas as “crenças fundamentais que nem sequer precisam se afirmar sob a forma de um dogma explícito e consciente de si mesmo” (BOURDIEU, 2001, p. 25). O bom jogador é o jogo em carne.

O bom jogador, que é de algum modo o jogo feito homem, faz a todo instante o que deve ser feito, o que o jogo demanda e exige. Isso supõe uma invenção permanente, indispensável para se adaptar às situações indefinidamente variadas, nunca perfeitamente idênticas. O que não garante a obediência mecânica à regra explícita, codificada (quando ela existe). Descrevi, por exemplo, as estratégias de jogo duplo que consistem em “legalizar a situação”, em colocar-se ao lado do direito, em agir de acordo com interesses, mas mantendo as aparências de obediência às regras. O sentido do jogo não é infalível; ele se distribui de maneira desigual, tanto numa sociedade quanto numa equipe. Às vezes, ele falha, especialmente nas situações trágicas, quando então se apela aos sábios, que em Cabília em geral também são poetas, e sabem toma liberdade com a regra oficial, que permite salvar o essencial daquilo que a regra visava a garantir (BOURDIEU, 2004, p. 81).

A liberdade em relação às regras do jogo está contida justamente em seu interior, pois as regras do jogo não garantem atitudes concretas específicas e pré-definidas, mas uma matriz de ações possíveis no interior do jogo. A estartégia, portanto, é uma forma de lidar criativamente com as regras do jogo a partir de seu interior.

Mas essa liberdade de invenção, de improvisação, que permite produzir a infinidade de lances possibilitados pelo jogo (como no xadrez), tem os mesmos limites do jogo. As estratégias adaptadas quando se trata de jogar o jogo do casamento cabila, no qual a terra e a ameaça de partilha não intervêm (devido à indivisão na partilha igual entre os agnatos), não conviriam no caso de se jogar o jogo do casamento bearnês, no qual é preciso salvar antes de tudo a casa e a terra (BOURDIEU, 2004, pp. 81-82).

É possível perceber que a noção de estratégia não é devedora ou salvadora de uma fenomenologia na medida em que ela não se situa na oposição entre o indivíduo e a sociedade, não é devedora da noção de influência, que determinaria a separação entre indivíduo e sociedade de tal maneira que o contato seria somente por meio de influência externas à interioridade individual calcada na consciência.

Aqui, sociedade não é percebida como aquilo que reprime a liberdade do indivíduo, como aquilo que impede a ação livre; nem mesmo a ação livre é uma noção válida para compreensão das estratégias que são postas em jogo. Segundo Bourdieu:

Percebe-se que não se deve colocar o problema em termos de espontaneidade e coação, liberdade e necessidade, indivíduo e social. O habitus como sentido do jogo é jogo social incorporado, transformado em natureza. Nada é simultaneamente mais livre e mais coagido do que a ação do bom jogador. Ele fica naturalmente no lugar em que a bola vai cair, como se a bola o comandasse, mas, desse modo, ele comanda a bola. O habitus como social inscrito no corpo, no indivíduo biológico, permite produzir a infinidade de atos de jogo que estão inscritos no jogo em estado de posibilidades e de exigências objetivas; as coações e as exigência do jogo, ainda que não estejam reunidas num código de regras, impõem-se àqueles e somente àqueles que, por terem um sentido no jogo, isto é, o senso da necessidade imanente do jogo, estão preparados para percebê-las e realizá-las (BOURDIEU, 2004, p. 82).

É perceptível o descolamento das práticas de uma ontologia e epistemologia individualistas na medida em que é possível quantificar e perceber suas regularidades.

E as regularidades que e podem observar, graças à estatística, são o produto agregado de ações individuais orientadas pelas mesmas coações objetivas (as necessidades inscritas na estrutura do jogo ou parcialmente objetivadas em regras) ou incorporadas (o sentido do jogo, ele próprio distribuído de modo desigual, porque em toda parte, em todos os grupos, existem graus de excelência) (BOURDIEU, 2004, p. 82).

Desta forma, liberdade e coação estão unidas numa perspectiva em que o sujeito é constituído pelos campos sociais que participa. Esta participação lhe é incorporada em habitus que permite a livre e coagida ação no interior de um campo. Uma liberdade que existe na adequação fundamental ao próprio jogo. Uma estratégia para garantir a vitória no campo universitário, por exemplo, que envolveria participar de grupos de estudos com professores renomados, tê-los como orientadores, escrever dissertação e tese sobre temas atuais com autores contemporâneos e, por fim, conquistar publicações em revistas de renome, é uma estratégia livre e coagida, traduz uma trajetória normatizada mas, ao mesmo tempo, desejada, cujo valor intrínseco não precisa ser declarado.

Referências

BOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. Tradução Cássia R. da Silveira e Denise Moreno Pegorim. Revisão técnica Paula Montero. 1ª ed. São Paulo: Brasiliense, 2004.

BOURDIEU, Pierre. Esboço de uma teoria da prática IN ORTIZ, Renato (Org.). Pierre Bourdieu: Sociologia. São Paulo: Ática, 1983.

BOURDIEU, Pierre. Meditações pascalianas. Tradução Sergio Miceli. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. 2001.

MONTERO, P. Teoria e histórias da antropologia: Pierre Bourdieu e a Antropologia. Canal do IFCH – UNICAMP no YouTube, 2021. Disponível em <<https://www.youtube.com/live/75FSp05KF8o?si=HUT2rJ6PRaF-ILIz>>. Acesso em 09 de setembro de 2024.

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