Da série “Fascismo“.
Uso racional da ideologia irracional no fascismo
O fascismo é constituído de uma ideologia pragmática radical que, por suas características, leva, na prática, o relativismo ao máximo. Um pico de irracionalidade. Entretanto, não é possível garantir foco e disciplina política sem um ponto de ancoragem. O filósofo Leandro Konder afirma que, sob o comando de Mussolini, a nação se tornou o mito fascista:
O mito é uma fé, é uma paixão. Não é preciso que seja uma realidade […] Mussolini fez dela [da nação] um mito, atribuindo-lhe uma unidade fictícia, idealizada […] explorada por outras nações.[1]
Mais tarde, Hitler também formou sua ideologia com uma referência sólida da nação. Se Mussolini teve em Enrico Corradini sua referência para formar uma unidade nacional, através da narrativa da “Itália proletária”, Hitler foi amparado por Arthur Moeller van den Bruck, apontando a proletarização da Alemanha pelos países vitoriosos da Primeira Guerra Mundial. Temos, portanto, duas ancoragens para atenuar o caráter irracional da ideologia fascista, sempre flexível em suas expressões e em seus objetivos.
O uso da nação como mito central não foi exclusividade fascista, mas parte do próprio período histórico em que se situavam. Stuart Hall explica:
As culturas nacionais são uma forma distintivamente moderna. A lealdade e a identificação que, numa era pré-moderna ou em sociedade mais tradicionais, eram dadas à tribo, ao povo, à religião e à região, forma transferidas, gradualmente, nas sociedades ocidentais, à cultura nacional.[2]
Desta forma, com exceção do mito nacional, ponto fixo da ideologia fascista, sua aparente irracionalidade tinha eficiência na função de controle social. Irracionalidade racionalmente instrumentalizada. Especificamente, a ideologia fascista era eficiente numa função político-econômica de controle de classe, diz Michael Parenti[3], cientista político estadunidense. É possível enumerar três elementos-chave suportados pela suposta ideologia irracional do fascismo:
- O culto ao líder: Il Duce e der Führer, na Itália e na Alemanha, respectivamente, acumulavam um volume de idolatria que, mais tarde, foi transferido (ou compartilhado) com o Estado, elemento de importância central nos dois regimes fascistas utilizados como exemplo acima.
Fascism preaches the authoritarian rule of an all-encompassing state and a supreme leader. It extols the harsher human impulses of conquest and domination, while rejecting egalitarianism, democracy, collectivism, and pacifism as doctrines of weakness and decadence.[4]
- Hostilidade à paz: para Mussolini, uma doutrina de paz é uma doutrina deprimente, na medida em que a conquista e a batalha elevam homens e nações ao seu pico de realização humana. De fato, Mussolini era fanático pela violência e os intelectuais futuristas, integrantes desde a fundação do movimento fascista, observavam uma beleza específica na guerra e na violência[5][6].
- Ênfase nos valores monísticos: os valores de culto da Alemanha fascista, o que liga este ponto ao primeiro, do culto ao líder, resume a ênfase em valores monísticos: “Ein Volk, ein Reich, ein Fuehrer” (um povo, um Reich, um líder). A contradição, característica básica da filosofia marxista, é escamoteada em detrimento da união das classes num povo sólido que se for pobre, será sentido como pobre por seu todo, por todas as classes, e se for rico, também deverá ser sentido como rico por todas as classes.
As classes, assim, não se opõem como parte do programa político fascista, apesar de serem consideradas ontologicamente antagônicas. Elas são controladas para se sentirem como parte de um todo harmônico.
Aqui, voltamos ao mito da nação, um mito que parecia anular o aspecto irracional da ideologia fascista. Parenti, por sua vez, a coloca como parte de seu irracionalismo: “this monism is buttressed by atavistic appeals to the mythical roots of the people. For Mussolini, it was the grandeur that was Rome; for Hitler, the ancient Volk”[7]. Tem-se uma maneira explícita de uso racional da irracionalidade ideológica do fascismo: o retorno ao momento perfeito num passado glorioso e à expressão perfeita do povo. Primeiro, uma tentativa de retorno ao passado imaginário glorioso da Roma Antiga; segundo, no retorno às raízes raciais. Trata-se de uma forma conservadora de ver o mundo como a decadência de um pico existencial anterior. O retorno ao pico de realização existencial e de potencialidade humana alcançada passa a ser o alvo de um projeto de longo prazo.
A nação como mito é o símbolo máximo da narrativa fascista. É o que une uma comunidade em torno de objetivos de futuro, que lhe impõe o objetivo de paz interna, mas de conquista e guerra quando voltado ao exterior da própria comunidade (os judeus e comunistas na Alemanha – estes últimos, também na Itália -, perseguidos por todo o Terceiro Reich, são exemplos).
Também há um uso instrumental do patriarcado sob a ideologia fascista. A primeira vítima do regime nazista, afirma Parenti, foi um grupo de nazistas homossexuais da Sturmabteilung (SA), incluindo seu líder, Ernst Roehm. A racionalidade do uso da homofobia é visto através das mudanças de posição do Partido Nazista: primeiro, sobre a homossexualidade aberta de Roehm, Hitler declarou que este tipo de questão pertence ao domínio privado. Depois, Hitler mudou de ideia. Antes de declarar sua segunda posição, é necessário entender o papel da SA.
Foi o primeiro grupo paramilitar do Partido Nazista, utilizado principalmente para confrontos de rua contra comunistas e sindicalistas. Representavam uma força pseudo-revolucionária que, na retórica, se posicionava contra o capital financeiro. Conforme seu número de membros aumentou, chegando aos três milhões em 1933, tornou-se desconfortável aos poderosos da indústria e do exército regulá-la e controlá-la, até que Hitler, quando subiu ao cargo de chanceler, utilizou o próprio poder do Estado para diminuir a influência da SA, expondo a sexualidade de Roehm como fator inadequado para a ideologia nazista e o executando com cerca de 300 outros membros. A homossexualidade era um pretexto retórico para a caça e execução dos membros: muitos não eram homossexuais, como Gregor Strasser, propagandista nazista veterano suspeito por ter desvios esquerdistas[8].
Evidentemente, esta característica homofóbica não era novidade no partido, apesar de ser novidade seu uso como instrumento para caça de opositores. O líder da Schutzstaffel (SS), que acabou incorporando o efetivo da SA restante, após a execução de seus líderes, considerava a homossexualidade como uma ameaça à comunidade alemã e à fibra moral dos homens da nação. “In time, Himmler succeeded in extending the oppression of gay beyond the SA leadership. Thousands of gay civilians perished in SS concentration camps”[9].
A concentração estratégica no patriarcado era essencial na medida em que o regime fascista tinha como necessidade primária um vasto número de soldados e trabalhadores do setor militar. Assim, mulheres não podiam ter a liberdade de escolher a quantidade de filhos que deveriam ter e, por sua vez, os homens eram içados à responsabilidade de serem, rigorosamente, maridos, pais e soldados.
Ao mesmo tempo, o uso racional do patriarcado era razoável dentro da visão fascista de que a igualdade seria uma ameaça ao controle social e aos privilégios de classe e origem que tais regimes precisavam conservar (tanto por sua ideologia como por seus financiadores). As constrições sociais impunham responsabilidades tanto aos homens como às mulheres: aos homens, havia o tripé de responsabilidade conforme apresentado no parágrafo anterior, já às mulheres, a obrigação de seguir o planejamento familiar da ideologia fascista por terem como responsabilidade manter a estrutura familiar viva. Esta estrutura era parte integrante da estrutura da própria sociedade vislumbrada no imaginário fascista.
Os fascistas, então, através do uso instrumental do patriarcado, conseguiam manter o controle social em sentido amplo: controle de tensões e controle dos recursos humanos em instituições (mais homens, mais soldados e mais trabalhadores). Sendo assim, temos a seguinte referência comparativa entre o papel do homem e da mulher nos “valores da família” que a ideologia fascista suportava:
- Aos homens, a necessidade de 1) ser marido, portanto, de ser responsável por formar famílias; 2) ser pai, portanto, de concretizar a formação da família e vislumbrar a continuação; e 3) ser soldado, logo, de participar de uma instituição social vital para a manutenção do Estado nazista.
- Às mulheres, a necessidade de: 1) ser mãe, portanto, alinhar as expectativas de reprodução que a ideologia fascista passa ao homem; 2) não abdicar do papel de esposa (e mãe), na medida em que esse papel é o suporte central na existência da família; e 3) ser responsável pela manutenção da família, já que essa é a instituição que pode declarar a falência da nação fascista.
Considerações finais
Quando Parenti cita o uso irracional da ideologia fascista, o uso da palavra “irracional” está ligado à completa flexibilidade desta ideologia, mas também à ilusão perpetrada por ela, que está fora de qualquer historiografia racional, baseada em fatos e num vislumbre do futuro. É por isso que o mito nacionalista aparece também como uma parte irracional da ideologia fascista, porque é um mito sem base na realidade (voltar a um momento de expressão perfeita da própria singularidade é até mesmo uma forma de niilismo diferente das identificadas por Nietzsche) e, ao mesmo tempo, instrumentalizado em vista do controle social.
O pragmatismo radical, que recebe retórica revolucionária (como os SA com aversão ao capital financeiro), parece um método revolucionário de transformação social, mas traduz os anseios das classes dominantes e conserva valores completamente tradicionais. A “nova ordem” que a ideologia fascista dizia trazer era uma ilusão irracional, no entanto, não é possível dizer que seu uso também era irracional.
Referências
[1] KONDER, Leandro. Introdução ao fascismo. Rio de Janeiro: Edições do Graal, 1977, p. 11.
[2] HALL, Stuart. As culturas nacionais como comunidades imaginadas IN A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução Tomaz Tadeu da Silva, Guacira Lopes Louro. 11ª ed. Riod e Janeiro: DP&A, 2006, p.49.
[3] PARENTI, Michael. Blackshirts and reds. 10ª ed. Editora City Lights Books: San Francisco, 1997.
[4] PARENTI, Michael. Blackshirts and reds… p. 12.
[5] PARENTI, Michael. Blackshirts and reds… p. 12.
[6] PAXTON, Robert O. A anatomia do fascismo. São Paulo: Paz e Terra, 2007, p. 18.
[7] PARENTI, Michael. Blackshirts and reds… p. 12.
[8] PARENTI, Michael. Blackshirts and reds… p. 14-15.
[9] PARENTI, Michael. Blackshirts and reds… p. 15.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.