Índice
Introdução
O estado de exceção configura-se como um momento singular na aplicação da lei, onde a própria norma se encontra suspensa. Trata-se de uma aplicação com força de lei que ultrapassa a necessidade de existir uma lei válida. Trata-se, portanto, de uma lei na prática, mas que não é lei validada por um estado de direito. Uma lei que não existe, ou uma aplicação de norma num momento de suspensão de norma. Uma aplicação com força de lei.
Segundo Giorgio Agamben, há uma necessidade específica: compreender o estatuto jurídico de uma norma aplicada num estado de exceção. Como conceber esta aplicação é um objetivo do autor italiano em Estado de exceção e será nossa base para o presente artigo.
A ditadura
Agamben realiza uma leitura de Carl Schmitt (1888 – 1985), jurista e teórico político alemão, centrada em seus livros A ditadura, de 1921 e Teologia política, de 1922. O estado de exceção é o objeto central deste olhar específico, em que Agamben compreende que, no primeiro livro, Schmitt apresenta o objeto por meio da descrição da ditadura.
A ditadura seria essencialmente um estado de exceção em que ocorre a suspensão do direito e poderia ser classificada de duas formas:
- Como ditadura comissária, “que visa a defender ou restaurar a constituição vigente”[1], e que o exemplo concreto no Brasil foi a ditadura militar ocorrida entre 1964 e 1985, cuja justificativa foi a manutenção da ordem sob suposta ameaça de uma revolução comunista.
- Como ditadura soberana, “na qual, como figura da exceção, ela alcança, por assim dizer, sua massa crítica ou seu ponto de fusão”[2], que pode ser exemplificado pela ditadura soviética de caráter leninista que ascendeu após a revolução de 1917.
Duas formas de abrir espaço para o estado de exceção que são manifestas num movimento de conservação da ordem e num movimento de transformação social. Segundo Agamben:
O aporte específico da teoria schmittiana é exatamente o de tornar possível tal articulação entre o estado de exceção e a ordem jurídica. Trata-se de uma articulação paradoxal, pois o que deve ser inscrito no direito é algo essencialmente exterior a ele, isto é, nada menos que a suspensão da própria ordem jurídica (donde a formulação aporética: “Em sentido jurídico […], ainda existe uma ordem, mesmo não sendo uma ordem jurídica”).[3]
Ou seja, enquanto a ditadura comissária utiliza de um direito já contemplado e, assim, constitucional, para estabelecer um estado de exceção, a ditadura soberana cria um estado de coisas que funciona como o berço de uma nova constituição. Se o estado de exceção da ditadura comissária se ancora na ordem jurídica justamente por ser estabelecido por meio do próprio direito, o mesmo não se pode falar sobre a ditadura soberana. A ancoragem acontece através de um operador específico: a distinção existente entre poder constituinte e poder constituído. O poder constituinte não aparece, nos escritos de Schmitt, como questão de força, pois o autor entende que há uma relação indissociável do poder constituinte com a constituição, na medida em que aparece como poder fundador, mesmo que a constituição vigente o negue[4].
Embora juridicamente “disforme” (formlos), ele representa “um mínimo de constituição” (ibidem, p. 145), inscrito em toda ação politicamente decisiva e está, portanto, em condições de garantir também para a ditadura soberana a relação entre estado de exceção e ordem jurídica.[5]
Assim, o estado de exceção é visto como uma instituição que surge justamente pelo abandono do espaço pela norma. Do ponto de vista jurídico-político, um abandono a partir de uma tomada de decisão: o soberano é o responsável por decidir sobre a emergência do estado de exceção. O espaço capturado pelo estado de exceção não está fora nem dentro da norma, trata-se de um espaço abandonado pela suspensão da norma que, em seu abandono e posterior inclusão enquanto espaço de exceção, demonstra que o soberano está fora da norma jurídica válida na medida em que é responsável pela decisão quanto à possibilidade da suspensão da norma. Justamente por isso, ele pertence a ela[6].
Estar-fora e, ao mesmo tempo, pertencer: tal é a estrutura topológica do estado de exceção, e apenas porque o soberano que decide sobre a exceção é, na realidade, logicamente definido por ela em seu ser, é que ele pode também ser definido pelo oxímoro êxtase-pertencimento.[7]
O estado de exceção, assim como o homo sacer, está fora e pertence. Enquanto o estado de exceção está fora e pertence por ser a coluna central da definição do soberano, nas elaborações de Schmitt, o homo sacer é o resultado nos seres humanos desta aparente contradição entre pertencer e ser excluído. Entre pertencer através da exclusão.
A norma e a realização
Agamben compreende o estado de exceção também explicita uma oposição entre a norma e a realização, entre normas do direito e normas de sua aplicação. Trata-se, assim, de uma oposição entre o sistema jurídico e a realidade concreta em que este sistema pretende se fazer válido.
Inicialmente, as duas formas de ditadura que instituem o estado de exceção exemplificam:
- A ditadura comissária suspende a norma do direito, mas a mantém em vigor e, ao mesmo tempo, modifica as normas de aplicação, tornando-as autônomas. A norma pode ser suspensa sem deixar de ser válida para aplicação. “Representa, pois, um estado da lei em que esta não se aplica, mas permanece em vigor”[8].
- A ditadura soberana, pelo contrário, suspende a norma da antiga constituição, mantendo-a minimamente sob a forma do poder constituinte da nova constituição em gestação, mas mantém sua aplicação mesmo não estando formalmente em vigor.
Sendo assim, o soberano, ao decidir sobre o estado de exceção, suspende ou anula a norma. A suspensão, novamente comentando o texto de Schmitt, significa a “criação de uma situação que torne possível a aplicação da norma”. O soberano, então, estando fora porém implicado na lei, cria um espaço de exceção para torná-la real.
O estado de exceção separa, pois, a norma de sua aplicação para tornar possível a aplicação. Introduz no direito uma zona de anomia para tornar possível a normatização efetiva do real.[9]
Essa zona de anomia é exemplificada numa analogia com a linguística que eu vou inserir na íntegra:
A analogia estrutural entre linguagem e direito é aqui esclarecedora. Assim como os elementos linguísticos existem na língua sem nenhuma denotação real, que só adquirem no discurso em ato, também no estado de exceção a norma vige sem nenhuma referencia à realidade. Porém, assim como a atividade linguística concreta torna-se inteligível pela pressuposição de algo como uma língua, a norma pode referir-se a situação normal pela suspensão da aplicação no estado de exceção […] De modo geral, pode-se dizer que não só a língua e o direito, mas também todas as instituições sociais, se formaram por um processo de dessemantização e suspensão da prática concreta em sua referência imediata ao real. Do mesmo modo que a gramática, produzindo um falar sem denotação, isolou do discurso algo como uma língua, e o direito, suspendendo os usos e os hábitos concretos dos indivíduos, pôde isolar algo como uma norma, assim também, em todos os campos, o trabalho paciente da civilização procede separando a prática humana de seu exercício concreto e criando, dessa forma, o excedente de significação sobre a denotação que Lévi-Strauss foi o primeiro a reconhecer. O significante excedente – conceito-chave nas ciências humanas no século XX – corresponde, nesse sentido, ao estado de exceção em que a norma está em vigor sem ser aplicada.[10]
Assim, Agamben salienta que na doutrina moderna do direito, há uma diferenciação entre eficácia de lei, que são os efeitos jurídicos de todo ato legislativo válido, e força-de-lei, que é um conceito relativo, que localiza a lei em relação aos outros atos do ordenamento jurídico que podem ter força superior à lei, como a constituição, ou inferior a ela, como regulamentos promulgados pelo poder executivo. Entretanto, na prática, força-de-lei se refere não exatamente à lei, mas aos decretos “com força-de-lei” que o executivo pode promulgar em período de exceção. Força-de-lei, assim, define a possibilidade daquilo que não é a lei ter uma aplicação com sua “força”. Separa a essência da norma (que não é lei, mas tem sua força) e sua aplicação.
A força-de-lei, assim, é uma maneira de tornar possível a aplicação de uma norma que não é lei ter a validade de uma. Permite, assim, a estabilidade momentânea e as ações de um estado de exceção que separa a lei da força-de-lei, transferindo tal força para elementos jurídicos alheios à ela. O estado de exceção
define um “estado da lei” em que, de um lado, a norma esta em vigor, mas não se aplica (não tem “força”) e em que, de outro lado, atos que não tem valor de lei adquirem sua “força”. No caso extremo, pois, a “força-de-lei” flutua como um elemento indeterminado, que pode ser reivindicado tanto pela autoridade estatal (agindo como ditadura comissária) quanto por uma organização revolucionária (agindo como ditadura soberana).[11]
A essência de um estado de exceção, assim, não é tanto a confusão entre as ações do executivo que podem substituir as funções do legislativo, mas é justamente o isolamento da força-de-lei da lei, que permite uma ação concentrada numa figura administrativa, como um ditador e sua equipe no executivo, que representa a decisão do soberano sobre o fim do estado de exceção e sobre as condições da aplicação da norma numa nova constituição ou da constituição já estabelecida mas ameaçada, ou seja, na ditadura soberana ou na ditadura comissária.
Considerações finais
Assim, chega-se à definição do estado de exceção tendo em vista que a força-de-lei é um elemento fundamental em sua temporária vida:
O estado de exceção é, nesse sentido, a abertura de um espaço em que aplicação e norma mostram sua separação e em que uma pura força-de-lei realiza (isto é, aplica desaplicando) uma norma cuja aplicação foi suspensa.[12]
O soberano, por sua vez, é o agente de decisão que insere o estado de exceção como espaço para organização da posterior ordem social, mesmo que ele próprio exista sob uma ordem estabelecida, mas suspensa. O soberano é a potência de uma ordem jurídico-política, é a potência da existência de um ordenamento jurídico, mas é, também, parte de um resquício de ordem, na medida em que existe por meio de um reconhecimento jurídico. O soberano, fora e dentro da lei, estabelece um estado de exceção que aplica desaplicando uma norma.
Desse modo, a união impossível entre norma e realidade, e a consequente constituição do âmbito da norma, é operada sob a forma da exceção, isto é, pelo pressuposto de sua relação. Isso significa que, para aplicar uma norma, e necessário, em ultima análise, suspender sua aplicação, produzir uma exceção. Em todos os casos, 0 estado de exceção marca um patamar onde lógica e práxis se indeterminam e onde uma pura violência sem logos pretende realizar um enunciado sem nenhuma referencia real.[13]
O estado de exceção é o monstro necessário para que o paladino possa existir e cumprir sua função. É a ordem arbitrária ancorada na ordem jurídica em meio ao caos que é necessária para preparar a ordem jurídica estável.
A força-de-lei, por sua vez, é seu aspecto mais importante, pois o estado de exceção, ao aplicar a norma desaplicando-a, torna aquilo que não é lei constituído de força-de-lei, gerando um espaço de anomia para justamente permitir a existência de uma ordem jurídica estável posterior ou que o pressupõe.
Referências
[1] AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 53.
[2] AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção… p. 53.
[3] AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção… p. 54.
[4] AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção… p. 55.
[5] AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção… p. 55.
[6] AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção… p. 56-57.
[7] AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção… p. 57.
[8] AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção… p. 58.
[9] AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção… p. 58.
[10] AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção… p. 58-59.
[11] AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção… p. 60-61.
[12] AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção… p. 63.
[13] AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção… p. 63.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.