Poder para Foucault – DROPS #1

O poder é entendido como aquilo que se faz nas relações sociais. O poder é praticado, é exercido. Assim, torna-se possível entender estratégias de poder mesmo sem a existência de um estrategista. A partir disso, o poder disciplinar, o biopoder e a noção de governamentalidade são apresentados.

Poder é relação em Foucault

Índice

Introdução

Em Michel Foucault, o poder circula, o poder não fica preso aos seus agentes, não é posse de seus sujeitos. Poder é exercício, poder é verbo. Poder é prática.

Viver em sociedade é, de qualquer maneira, viver de modo que seja possível a alguns agirem sobre a ação dos outros. Uma sociedade “sem relações de poder” só pode ser uma abstração (FOUCAULT, 1995, pp. 245-246).

Sendo assim, o entendimento do poder passa, também, por um novo tipo de olhar acerca de sua prática: um olhar que se repousa na periferia, que observa as diferentes técnicas de poder, diferentes mecanismos utilizados e que não necessariamente são centralizados, absorvidos ou utilizados por um órgão com o Estado.

Não se trata de negar a importância das instituições na organização das relações de poder. Mas de sugerir que é necessário, antes, analisar as instituições a partir das relações de poder, e não o inverso; e que o ponto de apoio fundamental destas, mesmo que elas se incorporem e se cristalizem numa instituição, deve ser buscado aquém (FOUCAULT, 1995, pp. 245).

Portanto: analisar o poder em sua concretude e em seu acontecimento.


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Poder como estratégia

Desta maneira, Foucault não entende o poder como 1) posse ou 2) essência, substância, artefato. A ideia de uma posse do poder trabalha como mecanismo discursivo para eternização das relações de dominação da estratégia de poder posta, na medida em que o poder tem sua característica positiva. Mas, principalmente, porque o poder tem nas suas manifestações de posse, formas terminais:

Dizendo poder, não quero significar “o Poder”, como conjunto de instituições e aparelhos garantidores da sujeição dos cidadãos em um Estado determinado. Também não entendo poder como modo de sujeição que, por oposição à violência, tenha a forma da regra. Enfim, não o entendo como um sistema geral de dominação exercida por um elemento ou grupo sobre outro e cujos efeitos, por derivações sucessivas, atravessem o corpo social inteiro. A análise em termos de poder não deve postular, como dados iniciais, a soberania do Estado, a forma da lei ou a unidade global de uma dominação; estas são apenas e, antes de mais nada, suas formas terminais (FOUCAULT, 1988, p. 88).

A análise do poder é uma análise da estratégia.

Esses efeitos, quando vistos em sua soma não-aritmética, quando vistos em relação e, assim, quando entendido que em relação, o conjunto se faz qualitativamente diferente daquilo que é possível analisar a partir de uma aproximação particular e individualizada, é possível compreender o poder enquanto estratégia sem estrategista.

Podemos chamar “estratégia de poder” ao conjunto dos meios operados para fazer funcionar ou para manter um dispositivo de poder. Podemos também falar de estratégia própria às relações de poder na medida em que estas constituem modos de ação sobre a ação possível, eventual, suposta dos outros. Podemos então decifrar em termos de “estratégias” os mecanismos utilizados nas relações de poder. Porém, o ponto mias importante é evidentemente a relação entre relações de poder e estratégias de confronto. Pois, se é verdade que no centro das relações de poder e como condição permanente de sua existência, há uma “insubmissão” e liberdades essencialmente renitentes, não há relação de poder sem resistência, sem escapatória ou fuga, sem inversão eventual; toda relação de poder implica, então, pelo menos de modo virtual, uma estratégia de luta, sem que para tanto venham a se superpor, a perder sua especificidade e finalmente a se confundir (FOUCAULT, 1995, pp. 248).

A estratégia se forma quando é perceptível um sentido específico na relação entre mecanismos de poder e técnicas de poder. Evidentemente, tanto técnicas de poder como mecanismos de poder devem ser entendidos como maneiras de se praticar o poder, na medida em que o poder, no olhar foucaultiano, deve ser visto enquanto relação. Tanto as técnicas como os mecanismos do poder se encontram imersos numa multiplicidade de correlações de forças:

Parece-me que se deve compreender o poder, primeiro, como a multiplicidade de correlações de força imanentes ao domínio onde se exercem e constitutivas de sua organização; o jogo que, através de lutas e afrontamentos incessantes as transforma, reforça, inverte; os apoios que tais correlações de força encontram umas nas outras, formando cadeias ou sistemas ou ao contrário, as defasagens e contradições que as isolam entre si; enfim, as estratégias em que se originam e cujo esboço geral ou cristalização institucional toma corpo nos aparelhos estatais, na formulação da lei, nas hegemonias sociais (FOUCAULT, 1988, pp. 88-89).

Isso leva a uma conclusão: não há “o” poder, há somente relações de poder espalhadas por toda a sociedade, porque produzidas por cada participante, por cada instituição, por cada átomo da sociedade.

Necessariamente, falar sobre poder é falar sobre relações de poder e, portanto, falar sobre “o poder da burguesia”, “o poder da categoria médica”, “o poder do Estado” é falar sobre uma resultante, sobre um efeito final de conjunto que as correlações de poder adquirem:

Onipresença do poder: não porque tenha o privilégio de agrupar tudo sob sua invencível unidade, mas porque se produz a cada instante, em todos os pontos, ou melhor, em toda relação entre um ponto e outro. O poder está em toda parte; não porque englobe tudo e sim porque provém de todos os lugares. E “o” poder, no que tem de permanente, de repetitivo, de inerte, de auto-reprodutor, é apenas efeito de conjunto, esboçado a partir de todas essas mobilidades, encadeamento que se apóia em cada uma delas e, em troca, procura fixá-las (FOUCAULT, 1988, p. 89).

“O” poder, portanto, não é uma coisa, mas uma situação. O que designamos como poder não é uma estrutura nem uma instituição, nem uma essência que cada indivíduo teria em si. Poder “é o nome dado a uma situação estratégica complexa numa sociedade determinada”(FOUCAULT, 1988, p. 89). Aqui, é possível entender a filiação nominalista de Michel Foucault para análise das relações de poder: trata-se de uma construção específica, historicamente determinada, a que nominamos poder, mesmo sem existir qualquer fixidez em sua forma ou em seu conteúdo.

Poder e verdade

O início das pesquisas genealógicas de Michel Foucault tiveram como base o entendimento do poder enquanto elemento de luta, de guerra, de dominação, enquanto elemento que se observa numa relação direta e que se manifestação através da aplicação de técnicas específicas.

Este tipo de olhar sobre o poder, por sua vez, tende a deslocar a questão sobre a legitimidade do poder, desta forma, a busca pelo exercício legítimo do poder, que concentrazia num sujeito específico ou em instituições específicas a possibilidade de sua prática é substituída por uma busca sobre as relações entre o exercício do poder e o direito enquanto discurso da verdade. Foucault entende que a questão tradicional da filosofia política poderia ser formulada “assim: como o discuro da verdade ou, pura e simplesmente, como a filosofia, entendida como o discurso por excelência da verdade, podem fixar os limites de direito do poder?” (FOUCAULT, 1999, p. 28).

Entretanto, em Poder Psiquiátrico, Sociedade Punitiva e Vigiar e Punir, o trabalho do autor inverteu a relação entre esses elementos, retirando a filosofia do política a função de fundamentar um exercício legítimo do poder e a inscrevendo como discurso da verdade praticado pelo próprio poder para se fazer legítimo.

Meu problema seria de certo modo este: quais são as regras de direito de que lançam mão as relações de poder para produzir discursos de verdade? Ou ainda: qual é esse tipo de poder capaz de produzir discursos de verdade que são, numa sociedade como a nossa, dotados de efeitos tão potentes? (FOUCAULT, 1999, p. 28).

Isso pois, o poder não é um objeto fixo a ser descrito por uma filosofia que supostamente teria a legitimidade de descobrir sua verdade. Ou seja, não caberia à filosofia política, em última instância, descobrir a verdade do poder, mas é o próprio poder que lança mão de discursos da verdade para se estabelecer. Até em seu uso cotidiano, é necessário se valer da verdade para exercer alguma poder: “somos submetidos pelo poder à produção da verdade e só podemos exercer o poder mediante a produção da verdade. Isso é verdadeiro em toda sociedade” (FOUCAULT, 1999, pp. 28-29). O que faz com que um pai exerça poder sobre um filho não é só a força bruta ou sua função econômica intrafamiliar, mas é também a moral que faz da família objeto inatingível pela criança, ao mesmo tempo, o discurso que torna a família responsável por um tipo de desenvolvimento humano preconizado até mesmo pelo pela lei. Cabe à criança obedecer, cabe ao pai dar-se como sujeito a ser obedecido.

Somos forçados a produzir a verdade pelo poder que exige essa verdade e que necessita dela para funcionar; temos de dizer a verdade, somos coagidos, somos condenados a confessar a verdade ou a encontrá-la. O poder não pára de questionar, de nos questionar, não pára de inquirir, de registrar, ele institucionaliza a busca da verdade, ele a profissionaliza, ele a recompensa (FOUCAULT, 1999, p. 29).

Ele a recompensa como no caso dos cientistas e pesquisadores, como no caso dos juízes, como no caso dos pastores.

Temos de produzir a verdade como, afinal de contas, temos de produzir riquezas, e temos de produzir a verdade para poder produzir riquezas. E, de outro lado, somos igualmente submetidos à verdade, no sentido de que a verdade é a norma; é o discurso verdadeiro que, ao menos em parte, decide; ele veicula, ele próprio propulsa efeitos de poder (FOUCAULT, 1999, p. 29).

Pois é o discurso verdadeiro que valida a norma e legitima o exercício verdadeiro do poder, fundado numa relação de difícil dissociamento, de difícil desmembramento. Poder e verdade se relacionam de maneira mútua e, como resultado, fabricam formas de sujeição que ligam o sujeito à possibilidade da verdade e à possibilidade, então, de exercício do poder, mesmo que local:

Afinal de contas, somos julgados, condenados, classificados, obrigados a tarefas, destinados a uma certa maneira de viver ou a uma certa maneira de morrer, em função de discursos verdadeiros, que trazem consigo efeitos específicos de poder (FOUCAULT, 1999, p. 29)

E, especificamente no Ocidente, desde a Idade Média segundo Foucault (1999), o pensamento jurídico que supostamente elaborava a legitimidade do exercício do poder pelo soberano individualizado no rei era um tipo de instrumento do próprio poder régio. Ou seja, ele não vaticinava o poder régio em sua descoberta da legitimidade necessária para o exercício de um poder histórico, mas instrumentalizava a produção da verdade para que este tipo específico de poder fosse possível. Com a queda das monarquias e a emergência de regimes democráticos, mesmo assim a tradição política continuou em linearidade com o poder régio, na medida em que se esforçou para delimitar seus limites:

Para mostrar como se devia limitar esse poder do soberano, a quais regras de direito ele devia submeter-se, segundo e no interior de que limites ele deveria exercer seu poder para que esse poder conservasse sua legitimidade. O papel essencial da teoria do direito, desde a Idade Média, é o de fixar a legitimidade do poder: o problema maior, central, em torno do qual se organiza toda a teoria do direito é o problema da soberania (FOUCAULT, 1999, p. 31).

O discurso do direito e suas técnicas tendem a dissolver a relação de dominação existente na própria relação entre o saber jurídico e a prática do poder soberano: “o direito não é nem a verdade nem o álibi do poder. Ele é um instrumento ao mesmo tempo complexo e parcial do poder” (FOUCAULT, 2006, p. 247). No lugar da dominação, o discurso do direito colocam em jogo o direito legítimo da soberania e a obrigação legal da obediência (FOUCAULT, 1999).

Segundo Foucault, “o sistema do direito é inteiramente centrado no rei, o que quer dizer que é, em última análise, e evicção do fato da dominação e de suas consequências” (FOUCAULT, 1999, p. 31), ou seja, a genealogia do poder, ao inverter a filosofia política tradicional, busca a relação existente entre o poder que de fato é praticado com os discursos que o legitimam ou que lhe dão condição de existir.

Leis, regulamentos, instituições e aparelhos não reproduzem relações que são puramente de soberania, mas sim relações de dominação. Relações múltiplas de dominação espalhadas por toda a sociedade e que, portanto, não se concentram na figura do rei ou em sua função social e política. “Não, portanto, o rei em sua posição central, mas os súditos em suas relações recíprocas; não a soberania em seu edifício único, mas as múltiplas sujeições que ocorreram e funcionam no interior do corpo social” (FOUCAULT, 1999, pp. 31-32).

Este tipo de olhar que inverte a ordem da legitimidade do poder e busca as relações recíprocas entre poder, verdade e o direito enquanto forma de estabilização, foi praticado por meio de cinco precauções específicas:

Primeira precaução: “não se trata de analisar as formas regulamentadas e legítimas do poder em seu centro, no que podem ser seus mecanismos gerais ou seus efeitos de conjunto. Trata-se de apreender, ao contrário, o poder em suas extermidades, em seus últimos lineamentos, onde ele se torna capital, ou seja, tomar o poder em suas formas e em suas instituições mais regionais, mais locais” (FOUCAULT, 1999, p. 32). Esta primeira precaução conduz um olhar para a periferia do poder, às extermidades da rede de poder praticada. Isso significa que, mais que entender como o aparelho jurídico funciona cobrindo o território do Estado-nação, é mais importante compreender como as técnicas de suplício e punição eram praticadas num território específico, como elas se modificaram, quais eram suas regras ou funções e, por fim, como foram absorvidas pelo aparelho de Estado e utilizadas em função de uma justiça dominante.

Segunda precaução: “tratava-se de não analisar o poder no nível da intenção ou da decisão, de não procurar considerá-lo do lado de dentro, de não forumlar a questão (que acho labiríntica e sem saúda) que consiste em dizer: quem tem o poder afinal? O que tem na cabeça e o que procura aquele que tem o poder? Mas sim de estudar o poder, ao contrário, do lado em que sua intenção – se intenção houver – está inteiramente concentrada no interior de práticas reais e efetivas” (FOUCAULT, 1999, p. 33). Trata-se, assim, de um estudo que se faz na parte externa do poder, ou seja, nas práticas reais de poder que acontecem regularmente independentemente das intenções subjetivas dos sujeitos.

Interessa menos compreender porque uma pessoa ou outra quer dominar, porque um indivíduo tem vontade de dominar ou qual estratégia particular este indivíduo singular pensou, planejou e aplicou para isso. O que importa é como a relações de poder acontecem no mesmo momento de sua aplicação, no mesmo nível do próprio processo de sujeição que se aplica nos corpos, determina gestos e administra comportamentos. Esta precaução será melhor observada em História da Sexualidade 1: Vontade de saber e será exposta adiante neste artigo.

Terceira precaução: “não tomar o poder como um fenômeno de dominação maciço e homogêneo – dominação de um indivíduo sobre os outros, de um grupo sobre os outros, de uma classe sobre as outras” (FOUCAULT, 1999, p. 34). Ou seja, apesar de uma estratégia de poder ter efeitos globais, inicialmente, Foucault estava interessado em observar a microfísica do poder, ou seja, nas maneiras como o poder seguia e atravessava sujeito em sua microrrelações recíprocas, de mesmo nível, de mesma classe, mas também nas relações hierárquicas que não podem ser reduzidas a um modelo geral, relações que embasam, inclusive, um modelo global de estratégia que é sempre provisório, sempre disposto à mudança.

O poder, acho eu, deve ser analisado como uma coisa que circula, ou melhor, como uma coisa que só funciona me cadeia. Jamais ele está localizado aqui ou ali, jamais está entre as mãos de alguns, jamais é apossado como uma riquiza ou um bem. O poder funciona. O poder se exerce em rede e, nessa rede, não só os indivíduos circulam, mas estão sempre em posiçaõ de ser submetidos a esse poder e também de exercê-lo (FOUCAULT, 1999, p. 35).

Quarta precaução: “o importante é que não se deve fazer uma espécie de deducação do poder que partiria do centro e que tentaria ver até onde ele se prolonga por baixo”(FOUCAULT, 1999, p. 36). Esta precaução ampara a primeira, na medida em que, ao analisar as extremidades do poder, corre-se o risco de deduzi-lo daquilo que é pratica no centro. Ou seja, o centro do poder não é um local privilegiado de reprodução de um modelo do poder. O centro é privilegiado no exercício do poder, mas aquilo que seria seu “modelo”, sua estratégia, nasce da periferia, nasce de sua face externa, nasce dos pontos mais longínquos. Isso significa que é menos interessante observar a repressão da sexualidade infantil, por exemplo, como um resultado da aplicação de um objetivo da burguesia em tornar a classe operária produtiva e, assim, retirar tudo aquilo que não fosse diretamente relacionado a este objetivo.

É mais interessante perceber como a burguesia coletou conhecimento a partir das prática de repressão das crianças, como a burguesia estudou as técnicas de poder por meio de sua aplicação nas crianças e por meio da delimitação da sexualidade infantil. Mais interessante que a sexualidade da criança eram as técnicas de poder sobre essa sexualidade. Mais interessnate que a repressão da masturbação infantil é a produção de saber sobre o corpo-espécie e sobre o corpo-indivíduo.

Quinta precaução: “é bem possível que as grandes máquinas do poder sejam acompanhadas de produções ideológicas. Houve sem dúvida, por exemplo, uma ideologia da educação, uma ideologia do poder monárquico, uma ideologia da democracia parlamentar, etc. Mas, na base, no ponto em que terminam as redes de poder, o que e forma, não acho que sejam ideológicas […] São instrmentos efetivos da formação e de acúmulo de saber, são métodos de observação, técnicas de registro, procedimentos de investigação e de pesquisa, são aparelhos de verificação”(FOUCAULT, 1999, pp. 39-40). O poder, para funcionar, coloca em circulação certos saberes que não são parte de um edifício ideológico, que funcionam não como amparos da soberania, mas que exercem relações de dominação, para a organização de modos de sujeição que só podem ser vistos por meio da análise dos dipositivos de saber.

Cinco proposições sobre o poder

A partir do entendimento de que o poder é o nome que se dá a uma situação estratégica específica, determinada no tempo e no espaço, Michel Foucault estabelece, em História da Sexualidade 1: Vontade de saber, cinco proposições que contribuem para compreender seu funcionamento (FOUCAULT, 1988, pp. 89-91):

  1. Que o poder não é algo que se adquira, arrebate ou compartilhe, algo que se guarde ou deixe escapar“. O poder, portanto, não é uma coisa, mas é o efeito de relações de força e, a partir de um olhar macro, é o efeito de conjunto das relações de poder numa situação estratégica específica, que emerge a partir dos inúmeros pontos de exercício do poder.
  2. Que as relações de poder não se encontram em posição de exterioridade com respeito a outros tipos de relações (processos econômicos, relações de conhecimentos, relações sexuais), mas lhes são imanentes“. O poder, assim, está em todas as relações, pois é o efeito imediato das desigualdades, dos desequilíbrios de cada relação social e, ao mesmo tempo, é a condição de possibilidade destas diferenciações. Isso significa que as relações de poder não se situam num nível de superestrutura, pois são imanentes às próprias relações sociais, atuando de maneira produtiva.
  3. Que o poder vem de baixo; isto é, não há, no princípio das relações de poder, e como matriz geral, uma oposição binária e global entre os dominadores e os dominados, dualidade que repercuta de alto a baixo e sobre grupos cada vez mais restritos até as profundezas do corpo social“. A microfísica do poder que se situa na instituição familiar, na instituição escolar ou em grupos restritos servem de suporte a efeitos de poder que atravessam o corpo social. Ou seja, a estratégia de poder não modela o exercício do poder em um grupo ou outro, mas é, também, amplificado por eles. O exercício que se manifesta no direito que define o que é uma família é fruto de correlações de força microscópicas no seio da sociedade e que, através das diferentes estratégias de poder ou das diferentes tomadas de posição no interior dessas estratégias, modificam concretamente um texto jurídico.
  4. Que as relações de poder são, ao mesmo tempo, intencionais e não subjetivas“. Evidentemente, o exercício do poder passa por uma série de cálculos, uma série de intencionalidades em todas as suas manifestações, mas, ao mesmo tempo, isso não significa que o poder (como estratégia e como relação imanente às relações sociais) resulta de uma escolha, de um estrategista individual. “A racionalidade do poder é a das táticas muitas vezes bem explícitas no nível limitado em que se inscrevem — cinismo local do poder — que, encadeando-se entre si, invocando-se e se propagando, encontrando em outra parte apoio e condição, esboçam finalmente dispositivos de conjunto”, ou seja, a racionalidade do poder é produto das lutas entre táticas explícitas localmente. Ao mesmo tempo, as relações de poder dão condição para o exercício microfísico: a necessidade de uma hierarquia em empresas não foi inventada por uma pessoa e nem é reinventada a cada nova empresa que nasce, mesmo assim, as decisões políticas dentro das empresas ainda pertencem a um nível de intencionalidade. Ou seja, a intencionalidade de um exercício concreto e local do poder tem como base as relações entre saber e poder que já permitem (e prescrevem) a própria hierarquia e tornam previsíveis as tomadas de decisão em seu nível conceitual, abstrato, geral. Ainda assim, continuando neste exemplo concreto, não há inventores da necessidade da hierarquia empresarial, ela é a condição da emergência de uma administração específica em uma empresa.
  5. Que lá onde há poder há resistência e, no entanto (ou melhor, por isso mesmo) esta nunca se encontra em posição de exterioridade em relação ao poder“. O campo estratégico das relações de poder permite a observação de inúmeros pontos de resistência, na medida em que a característica da relação de poder é a condução de uma conduta praticada por um sujeito livre. Sem a resistência, não existe poder, pois aí, não existiriam sujeito aptos à recusa. Desta forma, a resistência não é concentrada, assim como o poder, mas é difusa e, por sua vez, pode ser concentrada a partir da organização intencional dos sujeitos resistentes. As resistências são o outro termo das relações de poder, não se situam fora e nem funcionam de maneira distinta. Assim como o poder forma um tecido espesso que atravessa aparelhos de Estado, as resistência atravessam os indivíduos e as estratificações sociais e “é certamente a codificação estratégica desses pontos de resistência que torna possível uma revolução, um pouco à maneira do Estado que repousa sobre a integração institucional das relações de poder”.

Poder é verbo

Não há posse do poder, mas exercício. Eterno exercício que independe, no limite, das vontades individuais ou da consciência individual para desencadear efeitos.

O exercício do poder não é simplesmente uma relação entre “parceiros” individuais ou coletivos. é um modo de ação de alguns sobre outros. O que quer dizer, certamente, que não há algo como o “poder” ou “do poder” que existiria globalmente, maciçamente ou em estado difuso, concentrado ou distribuído: só há poder exercido por “uns” sobre os “outros”; o poder só existe em ato, mesmo que, é claro, se inscreva num campo de possibilidade esparso que se apoia sobre estruturas permanentes (FOUCAULT, 1995, p. 242).

O poder também não se opõe à verdade. Para Foucault, a verdade como a entendemos só garante sua imperiosidade a partir de uma circulação em conjunto com o poder.

A verdade científica necessidade de uma sociedade centralizada nos processos de descobrimentos da verdade baseados em métodos e metodologias positivas, de tal maneira que a descoberta da verdade através de métodos e metodologias diferentes são excluídas da discussão pública séria. Transformam-se em esoterismo, fetiche, ilusão, senso comum, etc.

Através da imperiosidade discursiva da verdade, a legitimidade do poder torna-se cognoscível para quem conduz e para quem é conduzido:

A “conduta” é, ao mesmo tempo, o ato de “conduzir” os outros (segundo mecanismos de coerção mais ou menos estritos) e a maneira de se comportar num campo mais ou menos aberto de possibilidades. O exercício do poder consiste em “conduzir condutas” e em ordenar a probabilidade. O poder, no fundo, é menos da ordem do afrontamento entre dois adversários, ou do vínculo de um com relação ao outro, do que da ordem do “governo” (FOUCAULT, 1995, p. 243-244).

O poder como aquilo que acontece numa prática sobre a prática do outro. Poder não mata, poder domina, explora, mas também guia, cria condições de existência, cria o mundo para ser vivido.

Considerações finais

Para Michel Foucault, a relação de poder é imanente, generalizada, mas sem um conteúdo fixo, uma estrutura permanente. O poder se localiza justamente em sua prática, no imediato da ação, na correlação das forças colocadas em jogo em uma situação ou em um contexto macro.

Desta forma, investigar o poder não é buscar sua origem ou entender quem detém sua posse: é investigar seu funcionamento, as diferentes táticas em luta, as diferentes possibilidades de resistência e, por fim, as diferentes estratégias que percorrem pela sociedade (ou que delimitam um objeto específico a ser analisado).

Referências

FOUCAULT, Michel. Sujeito e poder IN P. Rabinow & H. Dreyfus, Michel Foucault – uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica (pp. 231-249). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1988.

FOUCAULT, Michel. Ditos e Escritos IV, Estratégia, poder-saber. Tradução: Vera Lúcia Avellar Ribeiro. 2ª edição, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.

FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). Tradução: Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

Anexo

FOUCAULT, Michel. Ditos e Escritos IV, Estratégia, poder-saber. Tradução: Vera Lúcia Avellar Ribeiro. 2ª edição, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006, p. 247-249.

Poderes e estratégias

Por que o poder é tão regularmente decifrado nos termos puramente negativos da lei de interdição? Por que o poder é imediatamente refletido como sistema de direito? Dir-se-á sem dúvida que, nas sociedades ocidentais, o direito sempre serviu de máscara para o poder. Parece que essa explicação não é inteiramente suficiente. O direito foi um instrumento efetivo de constituição dos poderes monárquicos na Europa, e durante séculos o pensamento político foi ordenado ao problema de soberania e de seus direitos. Por outro lado, o direito, sobretudo no século XVIII, foi uma arma de luta contra esse mesmo poder monárquico que dele se serviu para afirmar-se. Enfim, ele foi o modo de representação principal do poder (e por representação não se deve entender tela ou ilusão, mas modo de ação real).

O direito não é nem a verdade nem o álibi do poder. Ele é um instrumento ao mesmo tempo complexo e parcial do poder. A forma da lei e os efeitos de interdições que ela porta devem ser recolocados entre muitos outros mecanismos não jurídicos. Assim, o sistema penal não deve ser analisado pura e simplesmente como um aparelho de interdição e de representação de uma classe sobre uma outra, nem tampouco como álibi que abriga violência sem lei da classe dominante: ele permite uma gestão política e econômica através da diferença entre legalidade e ilegalismo. Do mesmo modo para a sexualidade: a interdição não é, sem dúvida, a forma mais importante segundo a qual o poder a investe.

[…]

Parece que o poder “já está sempre ali”: que nunca estamos “fora”, que não há “margens” para a cambalhota daqueles que estão em ruptura. Mas isso não quer dizer que se dava admitir uma forma incontornável de dominação ou um privilégio absoluto da lei. Que nunca se possa estar “fora do poder” não quer dizer que se está inteiramente capturado na armadilha.

Eu sugeriria, de preferência (mas estas são hipóteses a serem exploradas):

  • Que o poder é coextensivo ao corpo social: não há, entre as malhas de sua rede, praias de liberdades elementares;
  • Que as relações de poder são intrincadas em outros tipos de relação (de produção, de aliança, de família, de sexualidade) em que desempenham um papel ao mesmo tempo condicionante e condicionado;
  • Que elas não obedecem à forma única da interdição e do castigo, mas que são formas múltiplas;
  • Que seu entrecruzamento delineia fatos gerais de dominação, que esta dominação se organiza em estratégia mais ou menos coerente e unitária; que os procedimento dispersados, heteromorfos e locais de poder são reajustados, reforçados, transformados por essas estratégias globais, e tudo isso com numerosos fenômenos de inércia, de intervalos, de resistências; que não se deve, portanto, pensar um fato primeiro e maciço de dominação (uma estrutura binária com, de um lado, os “dominantes” e, do outro, os “dominados”), mas, antes, uma produção multiforme de relações de dominação, que são parcialmente integráveis a estratégias de conjunto;
  • Que as relações de poder “servem”, de fato, porém não por que estão “a serviço” de um interesse econômico dado como primitivo, mas porque podem ser utilizadas em estratégias;
  • Que não há relações de poder sem resistências; que estas são tão mais reais e eficazes quanto mais se formem ali mesmo onde se exercem as relações de poder; a resistência ao poder não tem que vir de fora para ser real, mas ela não é pega na armadilha porque ela é a compatriota do poder. Ela existe tanto mais quanto ela esteja ali onde está o poder; ela é, portanto, como ele, múltipla e integrável a estratégias globais.

A luta de classes pode, portanto, não ser a “ratio do exercício do poder” e ser, todavia, “garantia de inteligibilidade” de algumas grandes estratégias.

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