A genealogia do poder em Michel Foucault – DROPS #4

A criminologia tradicional, positivista, biologicista, pôde ser criticada através justamente da aplicação de uma genealogia do poder, da aplicação do procedimento foucaultiano de análise, de forma que foi possível encontrar o crime num jogo de relações de poder maior que as relações imediatas que se desenrolavam no momento do crime.

Índice

Introdução

O objetivo deste DROPS é relacionar a utilização da genealogia, procedimento nietzscheano, por Michel Foucault no livro Vigiar e punir: o nascimento da prisão, com as influências do autor à criminologia, que teve em sua obra citada anteriormente uma pesquisa com utilização de fontes primárias para o entendimento da delinquência.

Por fim, o objetivo é mostrar como a delinquência nasce a partir de um olhar biologicista e positivista acerca do sujeito, que se contrapõe ao olhar na Idade Clássica sobre o criminoso, considerado como aquele que escolhe o crime, portanto, como aquele que recusa uma ética e, justamente por sua recusa, é possível questionar sua razão.


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A genealogia do poder

Genealogia da disciplina em Michel Foucault

Inicialmente, a genealogia do poder de Vigiar e Punir permite se ter uma visão crítica sobre os acontecimentos a partir da observação de seu próprio desenrolar, no tempo de seu próprio acontecimento. É possível, assim, evitar teleologias que, de certa forma, determinariam o desenrolar da história a partir de estruturas já dadas.

A genealogia exige, portanto, a minúcia do saber, um grande número de materiais acumulados, exige paciência.[1]

História se constrói enquanto nós a construímos. Isso é interessante para perceber que a análise presente em Vigiar e Punir se apoia no passado com objetivo de, a partir de sua historicidade, entender justamente as consequências no presente da emergência dos dispositivos disciplinares. Trata-se de uma tentativa de analisar o nascimento da prisão a partir do estado de forças que se configurava nos séculos XVIII e XIX. A partir dessas análises foi possível elaborar, a noção de sociedade punitiva (que inclusive foi curso de Michel Foucault no Collège de France em 1973), que mais tarde daria lugar para a emergência formal da noção de sociedade disciplinar.

Ora, se o genealogista tem o cuidado de escutar a história em vez de acreditar na metafísica, o que é que ele aprende? Que atrás das coisas há “algo inteiramente diferente”: não seu segredo essencial e sem data, mas o segredo que elas são sem essência, ou que sua essência foi construída peça por peça a partir de figuras que lhe eram estranhas.[2]

Em A Sociedade Punitiva, por exemplo, Foucault empreende uma observação da estratégia de poder que pôde ser definida, no conjunto global de suas relações, como uma estratégia baseada na punição. Em Vigiar e Punir, por sua vez, a própria definição do cárcere é questionada, pois Foucault exibe as lutas pela definição dos objetivos, da função, e dos efeitos que se deveria esperar do cárcere. Por fim, o autor nos apresenta uma fabricação prisional que se tornou hegemônica: a genealogia do poder disciplinar revela uma prisão baseada na reforma. Trata-se de um tipo aparentemente diferente daquele visto no Brasil baseado em exclusão e expulsão que retira a possibilidade do encarcerado de fato conseguir voltar para uma função comum e adequada na sociedade. Um tipo que parece não prezar por qualquer reforma ou nem mesmo tentativa de inclusão, que seria papel central da reforma moral aplicada aos encarcerados pelo sistema prisional.

A investigação não é guiada pela verdade, não busca uma origem, até mesmo porque a busca pela origem é amplamente rejeitada por Michel Foucault, que a considera como um equívoco:

Fazer a genealogia dos valores, da moral, do ascetismo, do conhecimento não será, portanto, partir em busca de sua “origem”, negligenciando como inacessíveis todos os episódios da história; será, ao contrário, se demorar nas meticulosidades e nos acasos dos começos; prestar uma atenção escrupulosa à sua derrisória maldade; esperar vê−los surgir, máscaras enfim retiradas, com o rosto do outro; não ter pudor de ir procurá−las lá onde elas estão, escavando os basfond; deixar−lhes o tempo de elevar−se do labirinto onde nenhuma verdade as manteve jamais sob sua guarda.[3]

Cabe ao genealogista do poder, a partir do demorado conhecimento histórico adquirido, procurar os entraves, as surpresas, os abalos ou as continuidades que a história, na sua apreensão concreta, no desenrolar das lutas que lhe compõem, pode nos mostrar. E é a própria história, com suas lacunas e seus deslizes, com suas incoerências e contradições, ela própria é o corpo do devir.

A criminologia

Contribuições de Michel Foucault à criminologia

Sendo assim, a busca genealógica pelas estratégias de poder que conformam, produzem a realidade num espaço geográfico determinado passa pela recusa de uma teleologia ou de uma explicação já pronta, de um método restrito e irrefutável. Trata-se de uma busca que passa pela aceitação das lacunas da história, das rupturas enquanto elementos centrais (em conjunto com as tradicionais continuidades) da explicação histórica.

A criminologia retirou da genealogia do poder de Foucault um método, uma maneira de olhar e uma maneira de encontrar o crime como fator social, histórico, cultural. Segundo Guilherme Fernandes:

Primeiro, uma contribuição histórica: um trabalho de pesquisa feito em arquivos, com fontes primárias que é o Vigiar e Punir, em que ele traz a formação do pensamento criminológico. Não onde habitualmente se pensa que ele surgiu, como na academia. Ele surgiu no seio do sistema carcerário em parte formado pelos agentes penitenciários que passaram a deter a verdade sobre o crime, ou seja, se a pessoa é periculosa, há inclusive uma verdade contábil acerca de seus desvios a partir de registros. A verdade do cárcere se sobrepõe até mesmo à verdade jurídica.[4]

O Vigiar e Punir levou o olhar social à criminologia em conjunto com uma aplicação de um procedimento filosófico e político, de tal maneira que de fato se torna possível estudar crimes, suas emergências, seus efeitos, mas a partir das relações que são construídas entre o agente criminoso, o mundo que o cerca, as relações em que este sujeito criminoso está inserido, a maneira como o próprio sistema penal e o aparelho judiciário que lhe pertence produzem a subjetividade do criminoso e etc.

A delinquência

Delinquência e loucura em Michel Foucault

No trabalho de Foucault acerca da emergência do sistema prisional, o delinquente aparece como aquele que circula pelo sistema carcerário, que desempenha uma função em relação ao aparato prisional. O delinquente, de fato, aprende a ser criminoso na prisão, pois lá passa a ter o conhecimento específico da atividade e se junta a grupos de criminosos, consegue adquirir e desempenhar funções economicamente positivas fora da prisão, mas nunca dentro da lei. Uma série de ilegalidades, como a prostituição, eram gerenciadas pela delinquência parisiense no século XIX.

Em A Sociedade Punitiva, Foucault declara que:

O que essa análise tem de especial é que fixa a posição, o papel e a função da delinquência, não em relação ao consumo, à massa de bens disponíveis, mas em relação aos mecanismos e processos de produção; por outro lado, no exato momento em que os fisiocratas definem o delinquente [pelo ângulo da] produção, também o caracterizam como inimigo da sociedade: é a própria posição do delinquente relativamente à produção que o define como inimigo público.[5]

Nesta genealogia do poder, os delinquentes são relacionados aos processos de produção e não mais de consumo, eles são os que não produzem e, por isso, roubam, traficam e etc. A vagabundagem era considerada matriz geral da delinquência. “O essencialmente punível é a vagabundagem; o ingresso no mundo da delinquência está no fato de vaguear, de não estar fixado a uma terra, de não ser determinado por um trabalho”[6].

Além do elemento criminoso, há uma determinada ligação com a loucura. Segundo Vinicius:

Acredito que posso começar dizendo que há algo como uma recusa ética fundamental entre o louco e o criminoso que faz do internamento, um lugar em que podem circular em conjunto. A percepção vigente delineava a escolha como chave de interpretação do sujeito: da mesma forma que se poderia não escolher roubar ou matar o  rei, se poderia, assim escolher pela razão. Um criminoso comum poderia ser colocado no internamento em conjunto com um louco justamente por essa recusa ética fundamental.[7]

A figura específica do delinquente surge após a Idade Clássica. Desta vez, não mais como escolha e, assim, sem a sombra da loucura, mas como determinação biológica a partir de uma leitura positivista criminológica: traços congênitos que poderiam ser observados a partir de testes laboratoriais. Ao mesmo tempo, o elemento político e racial surge explicitamente: a ciência positivista aplicou seus métodos primeiramente em pessoas negras, tanto na Europa como no Brasil.

Desta forma, a criminologia tradicional, positivista, biologicista, pôde ser criticada através justamente da aplicação de uma genealogia do poder, de forma que foi possível encontrar o crime num jogo de relações de poder maior que as relações imediatas que se desenrolavam no momento do crime. Se o criminoso sentava-se ao lado do louco na Idade Clássica por um fator de recusa ética fundamental e, portanto, a partir disso, poderia ser entendido como aquele que deveria agir corretamente; no nascimento das ciências, o delinquente passa a ser elemento a ser analisado e, nele, será possível encontrar as determinações biológicas de sua prática criminosa.

Figuras do desatino

Referências

[1] FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a genealogia, a história IN: Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 2000.

[2] FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a genealogia, a história…

[3] FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a genealogia, a história…

[4] Contribuições de Foucault à criminologia. Canal do Colunas Tortas. Acesso em 31 mar 2022. Disponível em <<https://youtu.be/yRPVWApl-aw>>.

[5] FOUCAULT, Michel. A Sociedade Punitiva. Curso no Collège de France (1972-1973). São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 43.

[6] FOUCAULT, Michel. A Sociedade Punitiva… p. 44.

[7] Contribuições de Foucault à criminologia…

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