Há inconsciente em Saussure? – Michel Arrivé

O artigo presente discute os usos do conceito de inconsciente propostos por Saussure em seu Curso de Linguística Geral e em seus manuscritos. Percebe-se o uso da noção de inconsciente que seria análoga ao inconsciente descritivo de Freud e, num só trecho, do inconsciente tópico. Por fim, o uso de Saussure feito por Lacan em sua teoria do inconsciente revela uma transformação drástica do uso recorrente e do uso tópico feito pelo genebrino.

Da série “Saussure e a AD”.

Livro base deste artigo, foi publicado em 2010 (Clique na imagem para adquirir o livro).

O Curso de Linguística Geral foi proferido por Ferdinand de Saussure entre os anos de 1906 e 1911 na Universidade de Genebra. Neste início de século, Freud já havia publicado A Interpretação dos Sonhos (1900), Sobre a Psicopatologia da Vida Cotidiana (1901) e os Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade (1905), sendo assim, há uma coincidência histórica no desenvolvimento da obra de ambos. Aqui, veremos a possibilidade de encontrar em Saussure uma teoria do inconsciente ou, ao menos, um conceito operacionalizado em sua obra.

Não é novidade que psicanálise e linguística acabariam se encontrando em Lacan e na Análise do Discurso (AD), desenvolvida pelo grupo de estudos de Michel Pêcheux. O primeiro utiliza o modelo de pensamento proposto por Saussure para elaborar conceitos e reformular, a partir de Freud, uma nova interpretação da psicanálise; já o segundo buscou no sujeito do inconsciente uma solução ao sistema fechado e homogêneo que a AD estava presa em suas primeiras fases.

A preocupação do linguista Michel Arrivé na obra Em Busca de Ferdinand de Saussure, lançado pela editora Parábola e cedido ao Colunas Tortas, está justamente na possibilidade de se levantar o problema do inconsciente nos escritos de Saussure.

Para Arrivé, os usos do termo inconsciente e inconsciência são, em termos freudianos, usos do conceito descritivo. Ou seja, não são usos que pedem previamente o conhecimento da dinâmica do inconsciente e da consciência, nem mesmo precisam deste desenvolvimento teórico particularmente psicanalítico para serem eficientes. O conceito descritivo de inconsciente funciona para designar um fato psíquico que, mesmo não estando na consciência, mesmo não sendo lembrado, ainda tem efeitos na psique do sujeito.

Ao mesmo tempo, há uma segunda resposta possível para o problema do inconsciente: Arrivé ousadamente propõe classificar Saussure como um legítimo teórico do inconsciente ao lado de Freud. Tal ousadia é levada com suporte de Lacan, que defendeu tal argumento em seus Escritos, até o início dos anos 70. Segundo o psicanalista francês, A interpretação dos Sonhos seria fundamentalmente um livro com questões ligadas às palavras.

As formulações saussurianas sobre a linguagem correspondem às formulações freudianas sobre o inconsciente. Em suma, Saussure, sem saber, formula como Freud (antes ou depois dele, pouco importa) as leis do inconsciente[1].

Utilizando como fonte os manuscritos do Curso, Arrivé assinala que, em Saussure, os fatos da linguagem não estão a todo instante sob o crivo da consciência, então, os usos da língua são feitos sem reflexão prévia. As regras da língua estão inconscientes para os sujeitos falantes, que após as utilizarem podem refletir sobre o que foi dito, sobre como foi dito e sobre quando foi dito. Essa última fase, de reflexão, é consciente. Assim, há em Saussure um processo de inconsciência temporária que passa à consciência.

O uso do termo consciência latente, na versão publicada do Curso substituído por subconsciente, pode ser visto no capítulo V, Relações Sintagmáticas e Relações Associativas, quando as relações associativas passam a ter foco: estas dependem de uma relação diferente, já que os “grupos por associação mental não se limitam a aproximar os termos que apresentem algo em comum; o espírito capta também a natureza das relações que os unem”[2]. As relações sintagmáticas acontecem com a sucessão das palavras, já as relações associativas não precisam da linearidade para acontecer, já que uma palavra pode evocar diversas outras que não têm necessariamente o mesmo significado nem a mesma forma, de maneira sincrônica.

Portanto, a relação associativa entre parque, parco e parvo não depende do sentido que essas podem ter quando postas num mesmo conjunto linear, mas sim da associação possível que, no caso, está nos prefixos.

Entretanto, em um trecho das fontes manuscritas, Saussure utiliza o inconsciente de outra maneira:

Toda regra, toda frase, toda palavra relativa às coisas da linguagem evoca necessariamente a relação a/b ou até mesmo a relação a/a’, sob pena de não significar nada se a analisarmos.

Com efeito, é precisamente porque os termos a e b são radicalmente incapazes de chegar como tais às regiões da consciência, que perpetuamente percebe apenas a diferença a/b, que cada um desses termos permanece exposto (ou se torna livre), naquilo que lhe concerne, a se modificar segundo outras leis, diversas das que resultariam de uma penetração constante do espírito.[3]

Os objetos são submetidos às leis diferentes da consciência e não chegariam a ela a partir de uma tomada de consciência. Complementa Arrivé:

Quais são, então, essas leis do inconsciente? São aquelas que determinam, independentemente de qualquer intervenção consciente do sujeito falante, a evolução dos objetos linguísticos, ou, pelo menos, de parte deles[4].

Aqui, vemos o uso do conceito de inconsciente tópico: nos desenvolvimentos da psicanálise, o inconsciente descritivo é logo substituído pelo conceito tópico, que aborda a relação na psique entre Consciente, Inconsciente e Pré-Consciente. Eles seriam sistemas com leis próprias e funcionamentos distintos. Saussure, em 1894 (já que o texto acima é parte de uma carta que seria enviada a Whitney) portanto, se aproxima das análises de Freud (do artigo O Inconsciente, de 1915). Antes de Freud, Saussure rascunhou o inconsciente tópico, a diferença é que, para o linguista, trata-se de um inconsciente estritamente linguístico, com objetos linguísticos.

Considerações finais

Já foi dito no início deste artigo sobre o uso de Lacan da obra de Saussure. Agora, compreendendo os dois usos de Saussure do conceito de inconsciente, um descritivo e utilizado ao longo da obra e o outro tópico utilizado em um trecho particular, podemos avançar em uma questão delicada, segundo Arrivé, mas que fecha a visão sobre o inconsciente que pode ser útil à Análise do Discurso: o uso de Lacan do algoritmo saussuriano é justo? Este uso está na clássica noção do inconsciente estruturado como uma linguagem.

Arrivé evidencia que Lacan não se atentou às elaborações que poderiam levar a uma teoria do inconsciente no Curso: sua formulação do inconsciente é oposta à de Saussure, já que o primeiro considera que a articulação significante é o que constitui o inconsciente estruturado como uma linguagem, ou seja, o inconsciente é estruturado como uma linguagem na medida em que é constituído por uma rede de significantes opostos (a articulação significante).

Ao contrário, para Saussure, não é a rede de significantes opostos que daria especificidade ao inconsciente, mas sim os próprios termos que, segundo o autor genebrino, são incapazes de chegar à consciência. A rede de diferenças, declara Arrivé, é o único elemento que pode ser “percebido” pela consciência.

Referências

[1] ARRIVÉ, Michel. Em busca de Ferdinand de Saussure. Trad. Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola Editorial, 2010, p.185.

[2] SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral. Tradução: Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blinkstein. 32ª edição. São Paulo: Editora Cultrix, 2010, p. 145.

[3] SAUSSURE, Ferdinand de. Fontes Manuscritas do Curso de Linguística Geral IN ARRIVÉ, Michel. Em busca de Ferdinand de Saussure. Trad. Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola Editorial, 2010, p.188.

[4] ARRIVÉ, Michel. Em busca de Ferdinand de Saussure. Trad. Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola Editorial, 2010, p.188.

2 Comentários

  1. Bem interessante seu artigo. Me chamou atenção a citação de Lacan que você se referiu:

    “As formulações saussurianas sobre a linguagem correspondem às formulações freudianas sobre o inconsciente. Em suma, Saussure, sem saber, formula como Freud (antes ou depois dele, pouco importa) as leis do inconsciente[1].”

    Pelo que eu entendi, é um citação de Lacan encontrada no livro do Arrivé. Como não tenho o livro não posso checar isso, mas não encontro essa citação diretamente em Lacan. Você saberia em que livro ou seminário ele teria dito isso?

Deixe sua provocação! Comente aqui!