Índice
- Introdução;
- A especificidade do homo sacer;
- O bando soberano;
- A dimensão jurídico-política;
- Considerações finais;
- Referências.
Introdução
A figura do homo sacer é entendida por Giorgio Agamben como aquele que pode ser assassinado sem que tal ato seja considerado homicídio e, ao mesmo tempo, como aquele que não pode ser morto em sacrifício. Trata-se de uma figura do direito romano que contribui para entender os limites do soberano e as formas de produção de um sujeito que pode ser excluído dos limites da legitimidade de um sujeito de direitos.
Da maneira como é entendida por Agamben, é uma figura fundamental para a própria existência da soberania. Figura de exclusão total e, ao mesmo tempo, subserviência plena. Uma morte em vida que pode ser relacionada com a produção de sujeitos aptos à morte retratada por Achille Mbembe por meio de seu ensaio sobre a necropolítica. A indignidade da vida do homo sacer é fruto de um processo específico de inclusão através da exclusão e será retratada neste artigo a partir do livro Homo sacer: o poder soberano e a vida nua de Agamben.
A especificidade do homo sacer
Giorgio Agamben inicia sua explicação acerca do homo sacer com o verbete de Sexto Pompeu Festo[1], gramático romano do século II, acerca de uma figura específica do direito de sua terra natal, o sacer mons. Nesta figura, a sacralidade se liga à vida humana pela primeira vez e a insere numa contradição específica: o homem sacro, ao ser sacralizado, torna impunível sua morte.
Há um nível mais intrigante nesta contradição, pois além de autorizar sua morte na medida em que a torna impunível, também transforma o corpo, grosso modo, em tabu:
A contradição é ainda acentuada pela circunstância de que aquele que qualquer um podia matar impunemente não devia, porém, ser levado à morte nas formas sancionadas pelo rito (neque fas est eum immolari; immolari indica o ato de aspergir a vítima com a mola salsa antes de sacrificá-la).[2]
Ao mesmo tempo, o homo sacer poderia ser morto sem que seu assassino fosse considerado homicida, mas não poderia ser submetido à morte a partir de um rito sagrado. “Na definição de Festo, a especificidade do homo sacer: a impunidade da sua morte e o veto de sacrifício”[3], assinala Agamben. Desta forma, os dois termos que caracterizam esta figura entram em sua contradição baseada no ordenamento jurídico e religioso do Império Romano:
- O homo sacer era sacro, propriedade dos deuses, mesmo assim, qualquer um poderia matá-lo;
- Era atribuído a ele o status de homo sacer, logo, esta era uma condenação. Entretanto, tal condenação não permitia o sacrifício, não permitia a morte nas formas prescritas.
Tal figura se encontra no “cruzamento entre uma matabilidade e uma insacrificabilidade, fora tanto do direito humano quanto daquele divino”[4]. Um sujeito que não é mais sujeito de direitos, nem sujeito da religião. Não se encontra sob a proteção da esfera jurídica nem da esfera religiosa. Não é digno de nenhuma proteção, nem jurídica, nem divina. Não é digno da proteção do direito e, ao mesmo tempo, não é digno do sacrifício.
Agamben entende que esta contradição permite “lançar luz sobre uma estrutura política originária, que tem seu lugar em uma zona que precede a distinção entre sacro e profano, entre religioso e jurídico”[5], ou seja, uma estrutura que fundamenta e torna real a própria prática política do Estado soberano.
O bando soberano
O significado da palavra “sacro” levanta uma movimento duplo: a partir do orientalista do século XIX Robertson Smith, é possível compreender a aplicação do termo sacro na esfera religiosa como aquilo que leva a um tabu ao mesmo tempo em que poderia ser utilizada na doutrina semítica do santo. O sistema de tabu e a santificação se relacionam com o termo sacro de maneira concomitante.
Tal ambiguidade também é observada na definição do bando[6], termo de tradição hebraica, que era uma forma de consagração à divindade em que um pecador ímpio ou inimigos da comunidade e de Deus eram destinado à total destruição. Banir, assim, também poderia aparecer sob o conceito da consagração em que o sujeito consagrado, nas práticas antigas do hebraísmo, era destruído em conjunto com suas propriedades. Trata-se de uma exclusão da esfera religiosa que se faz através de uma inclusão na esfera política por meio da pena de morte.
Tem-se, assim, o encontro de três noções: a figura do homo sacer do direito romano arcaico, a figura da sacralidade no contexto religioso e a figura do tabu:
Uma figura enigmática do direito romano arcaico, que parece reunir em si traços contraditórios e por isso precisava ela mesma ser explicada, entra assim em ressonância com a categoria religiosa do sagrado no momento em que esta atravessa por conta própria um processo de irrevogável dessemantização que a leva a assumir significados opostos; esta ambivalência, posta em relação com a noção etnográfica de tabu, e usada por sua vez para explicar, com perfeita circularidade, a figura do homo sacer.[7]
Uma figura que expõe algo da dimensão jurídico-política. Que expõe certa origem do poder soberano, atuante através da transgressão da morte por se situar justamente fora do ordenamento jurídico na medida em que o institui.
A dimensão jurídico-política
Segundo Agamben, a caracterização do homo sacer permite compreender uma estrutura política originária, uma dimensão jurídico-política que é percebida por meio de sua implicação sobre a figura do sacer. O homo sacer não é somente um sujeito com direitos retirados, nem somente alguém recebendo punição religiosa:
no caso do homo sacer uma pessoa é simplesmente posta para fora da jurisdição humana sem ultrapassar para a divina. De fato, a proibição da imolação não apenas exclui toda equiparação entre o homo sacer e uma vítima consagrada, mas, como observa Macróbio citando Trebácio, a licitude da matança implicava que a violência feita contra ele não constituía sacrilégio[8].
O homo sacer se encontra num espaço de exceção, de dupla exclusão. O Estado soberano de exceção desaplica a lei a si próprio e, nesta condição, tem a possibilidade de aplicar a lei, estando num momento e espaço de desaplicação geral pois é sua presença que torna a lei aplicável, da mesma maneira o homem sacro “pertence ao Deus na forma da insacrificabilidade e é incluído na comunidade na forma da matabilidade. A vida insacrificável e, todavia, matável, é a vida sacra”[9].
Dupla exclusão e dupla inclusão. Ou melhor, uma inclusão que se faz através da exclusão: justamente por não pertencer ao sagrado, seu sacrifício não é possível; justamente por não pertencer à comunidade, sua morte não é homicídio. Na medida em que é sacro, pertence ao tabu sacrílego; na medida em que pode ser morto sem consequências aos assassinos, pertence à comunidade.
O homo sacer, assim, não é um sujeito ambíguo como o significado da sacralidade exposto anteriormente. Sua especificidade está no espaço jurídico-político que ocupa:
Aquilo que define a condição do homo sacer, então, não é tanto a pretensa ambivalência originária da sacralidade que lhe é inerente, quanto, sobretudo, o caráter particular da dupla exclusão em que se encontra preso e da violência à qual se encontra exposto[10].
O soberano, com sua possibilidade de, no estado de exceção, implicar suas decisões numa base de suspensão da lei, implica na aplicação da vida nua para aqueles que estão sob seu julgo[11]. São dois termos que se situam nos extremos do ordenamento jurídico, são correlatos “no sentido de que soberano é aquele em relação ao qual todos os homens são potencialmente homines sacri e homo sacer é aquele em relação ao qual todos os homens agem como soberanos”[12].
Segundo Agamben: “O homo sacer apresentaria a figura originária da vida presa no bando soberano e conservaria a memória da exclusão originária através da qual se constituiu a dimensão política”[13]. Exclusão originária, ou seja, exclusão que insere o sujeito na dimensão política ao possibilitar sua exclusão do ordenamento: o soberano pode matar ao, por exemplo, aplicar uma lei que prescreve a morte mas, acima de tudo, num estado de exceção, pode matar ao suspender o próprio ordenamento jurídico, estando ele próprio separado da necessidade deste ordenamento para se fazer presente. A aplicação do ordenamento sobre o soberano é feita pelo próprio soberano sobre suas instituições, ou seja, é uma aplicação fora das normas que, por sua vez, as institui.
Soberana é a esfera na qual se pode matar sem cometer homicídio e sem celebrar um sacrifício, e sacra, isto é, matável e insacrificável, é a vida que foi capturada nesta esfera [….] aquilo que é capturado no bando soberano é uma vida humana matável e insacrificável: o homo sacer.[14]
A esfera soberana é aquela, portanto, que produz seu corpos matáveis, que produz seu bando. “Sacra, isto é, matável e insacrificável, é originariamente a vida no bando soberano, e a produção da vida nua é, neste sentido, o préstimo original da soberania”[15].
Desta forma, a invocação de uma certa sacralidade da vida que seria valor de resistência contra o poder soberano de matar, em sua origem, faz valer uma sujeição específica da vida a um poder de morte. A sacralidade da vida, num caminho oposto ao de sua valorização, a coloca numa “irreparável exposição na relação de abandono”[16].
Esta estrutura política originária, fundamental, delimita o próprio nascimento do espaço político em sentido próprio, distinto do espaço religioso, de qualquer caracterização profana, de qualquer caracterização da ordem natural ou da ordem jurídica normal.
Considerações finais
A sacralidade aparece, então, como a implicação da vida nua, da vida do homo sacer, na ordem jurídico-política. O termo homo sacer é justamente a emergência da relação política originária que é incluída através da exclusão nesta ordem. A vida só é sacra quando presa à exceção soberana, ou seja, quando inserida no contexto político-jurídico de exceção, de inclusão neste contexto através da exclusão de suas possiblidades de assujeitamento pela esfera da política e do direito.
A fórmula do homo sacer, para além de qualquer significação religiosa, é a “formulação política original da imposição do vínculo soberano”[17].
Referências
[1] Tratado sobre o significado das palavras, de Sexto Pompeu Festo, verbete sacer mons: “At homo saccr is cst, quem populus iudicavit ob maleficium; neque fas est eum immolari, sed qui occidit, parricidi non damnatur; nam lege tribunicia prima cavetur ‘si quis eum, qui eo plebei scito sacer sit, occiderit, parricida ne sit’. Ex quo quivis homo malus atque improbus sacer appellari solet”.
[2] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002, p. 79.
[3] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua… p. 81.
[4] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua… p. 81.
[5] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua… p. 81.
[6] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua… p. 84.
[7] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua… p. 88.
[8] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua… p. 89-90.
[9] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua… p. 90.
[10] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua… p. 90.
[11] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua… p. 90.
[12] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua… p. 92.
[13] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua… p. 91.
[14] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua… p. 91.
[15] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua… p. 91.
[16] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua… p. 91.
[17] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua… p. 93.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.