Homologia estrutural – Pierre Bourdieu

A homologia estrutural é uma forma específica de relação entre posições que se situa num nível não necessariamente consciente das ações, não interessado, baseado nas próprias lutas existentes no espaço social e que, de maneira oculta, interliga as práticas e as expectativas dos agentes sociais. A homologia, também, é o fato de que há elementos semelhantes estruturalmente entre diferentes campos autônomos, como uma forma específica de poder, uma forma específica de capital, uma doxa, etc.

Índice

Introdução

A teoria dos campos sociais de Pierre Bourdieu explica o jogo interno dentro dos campos, mas também promove uma explicação relação entre campos ou entre diferentes grupos no mesmo campo.

Na medida em que um campo social não existe de maneira isolada no espaço social, há relações que podem ser observadas entre campos. Nestes casos, o que se tem é a observação de similaridades estruturais entre campos, similaridades em relação aos funcionamentos que lhes são característicos. Para isso, Bourdieu dá o nome de homologia estrutural e o objetivo deste artigo é expor tal noção.

A homologia estrutural

A homologia estrutural se situa como uma semelhança entre campos diferentes, ou seja, é uma observação daquilo que é semelhante no bojo de totalidades diferentes.

A homologia pode ser descrita como uma semelhança na diferença. Falar de homologia entre o campo político e o campo literário significa afirmar a exitência de traços estruturalmente equivalentes – o que não quer dizer idênticos – em conjuntos diferentes. Relação complexa que vão se apressar em destruir os que têm o hábito de pensar em termos de tudo ou nada (BOURDIEU, 2004, p. 170).

Traços equivalentes, mas não idênticos. Semelhança e não identidade. A avaliação em termos de tudo ou nada é inábil para dar conta deste tipo de visão, pois o tipo de semelhança observada está nas estruturas e em seus funcionamentos que se manifestam pelas estratégias dos agentes.

Há elementos que são homólogos em todos os campos: a existência de uma doxa, de uma nomos, um poder simbólico praticado, um capital simbólico a ser acumulado, instituições de consagração, grupos dominantes, grupos dominados, etc.

De um certo ponto de vista, o campo literaŕio (ou o científico) é um campo como os outros (contra todas as formas de hagiografia ou, simplesmente, contra a tendência de pensar que os universos sociais onde são produzidas essas realidades de exceção que são a arte, a literatura ou a ciência só podem ser totalmente diferentes, diferentes sob todos os aspectos): trata-se de uma questão de poder – o poder de publicar ou de recusar a publicação, por exemplo -, de capital – o do autor consagrado que pode ser parcialmente transferido para a conta de um jovem escritor ainda desconhecido, por meio de um comentário elogioso ou de um prefácio; – aqui como em outros lugares observam-se relações de força, estratégias, interesses, etc (BOURDIEU, 2004, p. 170).

Há funcionamentos homólogos, como a aplicação das relações de força sobre os dominados, principalmente os novatos, que precisarão ser atingidos pelas formas de reconhecido para atingir determinado sucesso relativo dentro do campo, como um prefácio escrito por um autor já consagrado, publicação em editoras consagradas e etc. Essa aplicação das relações de força é justamente a aplicação do poder simbólico que se usa enquanto instrumento de dominação, mas que é também um alvo das próprias lutas no interior do campo, um alvo que os agentes sociais dedicam seu próprio trabalho e suas estratégias de sucesso.

Este tipo de funcionamento nos campos sociais e a possibilidade de relacionar campos diferentes a partir de suas homologias permite entender, inclusive, a relação entre autor e obra, na medida em que se distancia das tentativas de análise de biografia individual do autor para compreender a sua produção ou das tentativas de ler uma obra a partir da intertextualidade:

Porque é preciso fazer tudo isso ao mesmo tempo. Postulo que existe uma correspondência bastante rigorosa, uma homologia, entre o espaço das obras considerada nas suas diferenças, nos seus desvios (à maneira da intertextualidade), e o espaço dos produtores e das instituições de produção, revistas, editoras, etc. Às diferentes posições no campo de produção, tais como estas podem ser definidas levando-se em conta não só o gênero praticado, a categoria nesse gênero, identificada através dos lugares de publicação (editora, revista, galeira, etc.) e dos índices de consagração ou, simplesmente, da antiguidade de entrada no jogo, mas também os indicadores mais exteriores, como a origem social e geográfica, que se retraduzem nas posições ocupadas no interior do campo, correspondem as posições tomadas no espaço dos modos de expressão, das formas literárias e artísticas (alexandrino ou um outro metro, rima ou verso livre, soneto ou balada, etc.), dos temas e, evidentemente, de todos os tipos de índices formais mais sutis que a análise literária tradicional há muito tempo assinalou (BOURDIEU, 2004, p. 177).

A homologia entre o espaço das obras num campo literário ou acadêmico, por exemplo, com o campo dos produtores permite compreender as tomadas de posição de um escritor ou outro em relação aos seus concorrentes e, assim, compreender como que sua biografia (sob o conceito de “trajetória”) se relaciona com suas escolhas práticas de escrita ou de filiação.

Em outros termos, para ler adequadamente uma obra na singularidade de sua textualidade, é preciso lê-la consciente ou inconscientemente na sua intertextualidade, isto é, através do sistema de desvios pelo qual ela se situa no espaço das obras contemporâneas; mas essa leitura diacrítica é inseparável de uma apreensão estrutural do respectivo autor, que é definido, quanto às suas disposições e tomadas de posição, pelas relações objetivas que definem e determinam sua posição no espaço de produção e que determinam ou orientam as relações de ocncorrência que ele mantém com os demais autores e o conjunto das estratégias, sobretudo formais, que o torna um verdadeiro artista ou um verdadeiro escritor (BOURDIEU, 2004, p. 177-178).

Isso pois a tomada de posição de um escritor, por exemplo, é relacionada com as concorrências existentes entre sua posição social de classe, sua posição enquanto escritor do campo ou da cidade, além da própria maneira como, por homologia, essas oposições podem ser representadas dentro do campo literário ou acadêmico.

Banner sobre o curso Poder Disciplinar para Michel Foucault

Dominantes e dominados

Dentro de campos sociais, há dominantes e dominados, mas há, também, frações dominadas de grupos dominantes. Entre dominantes-dominados e dominados há uma relação que Bourdieu utiliza para exemplificar a homologia e a fragilidade de uma estratégia em conjunto. Bourdieu exemplifica com os dominantes-dominados do campo literário que, em momentos de estabilidade, se situam em contraposição aos dominantes, embora se contradigam em momentos de crise:

Essa posição contraditória de dominantes-dominados, de dominados entre os dominantes ou, para explorar a homologia com o campo político, de esquerda entre a direita, explica a ambiguidade de suas tomadas de posição, que está ligada a essa posição de apoio em falso. Revoltados contra o que eles chamam de “burgueses”, são solidários com a ordem burguesa, como se vê em todos os períodos de crise em que seu capital específico e sua posição na ordem social encontram-se realmente ameaçados (basta pensar nas tomadas de posição dos escritores, incluindo os mais “progressistas”, como Zola, diante da Comuna) (BOURDIEU, 2004, p. 175).

Está, aqui, uma crítica aos intelectuais orgânicos de movimentos revolucionários, pequeno-burgueses que se situam ideologicamente nas fileiras do proletariado. Para Bourdieu, aliaças que tomam como base esta homologia de posição são mais instáveis “do que as solidariedades baseadas na identidade de posição e, consequentemente, de condição e de habitus(BOURDIEU, 2004, p. 176).

Entre os porta-vozes de um grupo específico no campo político, por exemplo, há uma homologia com os agentes sociais de outros campos. O espaço social se corresponde ao campo político na homologia que parte das posições entre esquerda e direita, dominados e dominantes, de tal maneira que aquele que ocupa uma posição de esquerda com determinados valores e porta-voz de determinada ideologia, está para aquele que ocupa uma posição no espaço social relativa a essa oposição propriamente política. Ou seja, provavelmente, a fala pública de um deputado do PSOL contra um deputado do NOVO irá atender aos interesses de uma pessoa com certo capital cultural e posição dominada na classe dominante contra aqueles que estão numa posição dominante da classe dominante.

Há uma homologia. Isso quer dizer que, grosso modo, aquele que ocupa no jogo político uma posição de esquerda a está para aquele que ocupa uma posição de direita b, assim como aquele que ocupa uma posição de esquerda A está para aquele que ocupa uma posição de direita B no jogo social. Quando a quer atacar b para acertar contas específicas, ele atende aos seus interesses específicos, definidos pela lógica da concorrência no interior do campo político, mas, ao mesmo tempo, atende aos interesses de A. Essa coincidência estrutural dos interesses específicos dos mandatários e dos interesses dos mandantes está na base do milagre do ministério sincero e bem-sucedido. As pessoas que atendem bem aos interesses de seus mandantes são pessoas que atendem a si mesmas ao atendê-los (BOURDIEU, 2004, p. 200-201).

O jogo político não é definido, então, pela consciência ou pela filiação voluntária dos agentes a cerca tomadas de posição, mas é definido pelas próprias regras do campo político. “Esse espaço político tem uma esquerda, uma direita, com os porta-vozes dos dominantes e os porta-vozes dos dominados; o espaço social também possui seus dominantes e seus dominados; e esses dois espaços se correspondem” (BOURDIEU, 2004, p. 200-201).

A homologia é aquilo que torna possível dizer que um político de esquerda do PSOL está atendendo aos interesses de moradores do reduto cultural do bairro da Santa Cecília na região central de São Paulo, mesmo que não conheça tal região e nem mesmo pense sobre ela na hora de tomar posição no jogo político. O inverso também é verdadeiro:

Em virtude da homologia, os agentes que se contentam em obedecer ao que lhes impõe sua posição no jogo atendem, justamente por isso e de quebra, às pessoas a que eles supostamente prestam serviços. O efeito de metonímia permite a universalização dos interesses particulares de dirigente partidário, permite atribuir os interesses do mandatário aos mandantes que ele supostamente representa (BOURDIEU, 2004, p. 200-201).

Os agentes, assim, não obedecem aos mandantes, muito menos esses obdecem aos mandatários, mas, na homologia, os interesses tendem a se relacionar pelas posições que os agentes ocupam dentro dos campos. Tudo se passa como se o dirigentes obedece aos interesses de sua classe e como se o membro da classe fosse defendor do mandante, enquanto ambos são agentes constituídos de habitus que os ligam por meio do sistema relacional dos campos.

Considerações finais

Na medida em que a homologia estrutural é esta relação entre campos ou entre posições que se pode observar nas práticas e nos sentidos que elas adquirem em relação, é possível, por fim, compreender que entre prestadores e consumidores, produtores e clientela, há também um homologia:

Há muitos casos como esse, nos quais os mandantes e os mandatários, os clientes e os produtores, estão numa relação de homologia estrutural. É o caso do campo intelectual, do campo do jornalismo: considerando que o jornalista do Nouvel Obs está para o jornalista do Figaro, assim como o leitor do Nouvel Obs está para o leitor do Figaro, quando ele e compraz em acertas contas com o jornalista do Figaro, ele está agradando ao leitor do Nouvel Obs, sem nunca procurar diretamente agradar-lhe. Trata-se de um mecanimo muito simples, mas que desmente a repreentação comum da ação ideológica como serviço ou servilismo interessados, como submissão interessada a uma função: o jornalista do Figaro não é o escrevinhador do episcopado ou lacaio do capitalismo, etc.; ele é, primeiro, um jornalista que, de acordo com o momento, é obsedado pelo Nouvel Observateur ou pelo Libération (BOURDIEU, 2004, p. 202).

Um jornalista da Revista Fórum, quando responde a uma posição tomada por um editorial da Folha de São Paulo, não está atendendo diretamente aos interesses de seus leitores, mas, na medida em que a Fórum está localizada num campo de esquerda, a própria resposta exigida na participação do campo jornalístico é uma tomada de posição que satisfaz o leitor de esquerda da Fórum. O desinteresse interessado, ou o interesse desinteressado, é a magia específica que traduz uma ligação estrutural que dissimula o próprio compromisso do jornalista com seus consumidores.

A homologia estrutural é, então, uma forma específica de relação entre campos ou posições que se situa num nível não necessariamente consciente das ações, não interessado, baseado nas próprias lutas existentes no espaço social e que, de maneira oculta, interliga as práticas e as expectativas dos agentes sociais. A homologia, também, é o fato de que há elementos semelhantes estruturalmente entre diferentes campos autônomos, como uma forma específica de poder, uma forma específica de capital, uma doxa, etc.


Receba tudo em seu e-mail!

Assine o Colunas Tortas e receba nossas atualizações e nossa newsletter semanal!


Referências

BOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. Tradução Cássia R. da Silveira e Denise Moreno Pegorim. Revisão técnica Paula Montero. 1ª ed. São Paulo: Brasiliense, 2004.

Deixe sua provocação! Comente aqui!