Índice
Introdução
Há algo que transforma os objetivos e os objetos de cada campo social como dados da realidade indubitáveis. É justamente por isso que o niilismo não toma conta da realidade social, é por isso que as pessoas se movem para alcançar determinados objetivos e conquistar determinados objetos que só são válidos dentro do campo e não fazem o menor sentido fora dele.
A illusio é esta ligação do agente social com os pressupostos do campo social. É aquilo que liga o interesse individual (mesmo que desinteressado) com as práticas sociais previsiveis num campo fruto de estratégias de aquisição de consagração social. O objetivo deste artigo é expor a noção de illusio segundo Pierre Bourdieu.
Espaço social, campo social e doxa
Para Pierre Bourdieu, não existe essa coisa monolítica e totalizante chamada “sociedade”. Há espaços sociais constituídos por campos sociais e seus agentes que podem, evidentemente, interrelacionar-se e se ligarem por meio das designações políticas como “soberania”, “Estado”, ou por meio da geopolítica, como “território”, “território soberano”, etc.
A ficção de uma sociedade fechada e interligada gerando um ente totalizante é construída artificalmente por meio dos processos de imposição de limites da política e dos saberes de Estado, entretanto, em seu aspecto relacional e na manifestação concreta da vida dos agentes sociais, é necessário compreender inicialmente o espaço social como um plano aberto constituído por posições mais ou menos próximas ou distantes:
O espaço social é construído de tal modo que os agentes ou os grupos são aí distribuídos em função de sua posição nas distribuições estatísticas de acordo com os dois princípios de diferenciação que, em sociedades mais desenvolvidas, como os Estados Unidos, o Japão ou a França, são, sem dúvida, os mais eficientes – o capital econômico e o capital cultural (BOURDIEU, 2008, p. 19).
Para compreender o que é um espaço social, é necessário exibir como o autor representou sua análise da sociedade francesa em A Distinção (2007) com base em capital cultural e capital econômico:
Este esquema do espaço social distribui diferentes posições por meio de dados coletados através de pesquisa empírica. Trata-se, portanto, de um modelo científico de ciênciais sociais com objetivo de explicar as relações que se dão numa sociedade específica num dado momento histórico determinado.
Neste campo social, os agentes participam de diferentes campos sociais. Ou seja, essas posições distribuídas pelo espaço social representam as distâncias sociais entre os agentes que as ocupam, mas esses agentes estão inseridos dentro de seus campos de participação.
Por exemplo, um músico participa diretamente do campo artístico, um professor universitário participa do campo acadêmico, um padre participa do campo religioso e um publicitário participa do campo da comunicação e etc. Este campos não são construções intuitivas ou deduzidas dos setores produtivos da sociedade, mas são modelos construídos por meio de uma análise quantitativa relacionada aos hábitos e qualitativa relacionada às relações de poder que se estabelecem entre agentes e instituições, seja entre eles ou entre si.
Os campos se apresentam à apreensão sincrônica como espaços estruturados de posições (ou de postos) cujas propriedades dependem das posições nestes espaços, podendo ser analisadas independentemente das características de seus ocupantes (em parte determinadas por elas) (BOURDIEU, 2003, p. 119).
São estruturas dinâmicas que se observa pela relação entre os agentes e instituições mas que, também, se observa por meio da localização dos objetivos e objetos de desejo previsíveis em seu interior.
Ou seja, o campo univesitário, por exemplo, tem na originalidade, na proposta de um novo modelo explicativo como um objetivo que provoca consagração e, para alcançar este objetivo, é necessário ser aprovado nas diferentes instâncias de consagração social do campo, como ter artigos publicados em revistas de renome, ser coordenador de pesquisas relevantes em instituições renomadas, evidentemente ter um doutorado na área e etc.
Todo campo, por ser estruturado e por ter seus limites observáveis empiricamente, contém uma doxa, um “conjunto do que é admitido como óbvio” (BOURDIEU, 2003b, p.87) dentro de um campo social. Um conjunto de “pressupostos inseparavelmente cognitivos e avaliativos cuja aceitação é inerente à própria pertinência” (BOURDIEU, 2001, p. 122). Estes pressuspostos são “crenças fundamentais que nem sequer precisam se afirmar sob a forma de um dogma explícito e consciente de si mesmo” (BOURDIEU, 2001, p. 25).
A própria entrada no campo acontece por meio da aceitação tácita da doxa, ou seja, de sua incoporação em habitus, “sistemas de disposições duráveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, isto é, como princípio gerador e estruturador das práticas e das representações” (BOURDIEU, 1983, p. 60).
Todo campo social, seja o campo cientifico, seja o campo artistico, o campo burocratico ou o campo politico, tende a obter daqueles que neIe entram essa relação com o campo que chamo de illusio (BOURDIEU, 2008b, p. 140).
A illusio, por sua vez, é um elemento que se relaciona com o campo, o habitus e a doxa.
Illusio
A illusio é o resultado da incorporação do habitus num campo específico e na transformação da doxa em regra consolidada, óbvia cuja verbalização é dispensável.
A illusio é estar preso ao jogo, preso pelo jogo, acreditar que o jogo vale a pena ou, para dizê-lo de maneira mais simples, que vale a pena jogar. De fato, em um primeiro sentido, a palavra interesse teria precisamente o significado que atribuí à noção de illusio, isto é, dar importância a um jogo social, preceber que o que se passa aí é importante para os envolvidos, para os que estão nele. Interesse é “estar em”, participar, admitir, portanto, que o jogo merece ser jogado e que os alvos engendrados no e pelo fato de jogar merecem ser perseguidos; é reconhecer o jogo e reconhecer os alvos (BOURDIEU, 2008b, p. 139).
A illusio não é disposta ao debate, pois é justamente a disposição em caminhar pela trajetória social previsível num campo por meio da tentativa de conquistar objetos e objetivos consagrados e consagrantes; ela se salva eficientemente quando não é posta em debate (BOURDIEU, 2001). Até mesmo as posições opostas num campo, a heterodoxia e a ortodoxia, são tacitamente concordantes em relação aos essencial:
Querer fazer a revolução em um campo é concordar com o essencial do que é tacitamente exigido por esse campo, a saber, que ele é importante, que o que está em jogo aí é tao importante a ponto de se desejar aí fazer a revolução. (BOURDIEU, 2008b, p. 140)
Desta forma, a essencialidade aprovada e tacitamente consentida do campo promove um jogo social com valor imanente. O jogo social no interior de um campo não tem valor externo ao campo, nem valor absoluto.
Cada campo impõe um preço de entrada lícito: “Que não entre aqui quem não for geômetra”, isto é, que ninguém entre aqui se não estiver pronto a morrer por um teorema. Se tivesse de resumir por meio de uma imagem tudo o que acabo de dizer sobre a noção de campo e sobre a illusio, que é tanto condição quanto produto do funcionamento do campo, evocaria uma escultura que se encontra na catedral de Auch, em Gers, sob os assentos do capítulo, e que representa dois monges lutando pelo bastão de prior. Em um mundo como o universo religioso, e sobretudo o universe monástico, que é o lugar por excelência do Ausserweltlich, do supra-mundano, do desinteresse no sentido ingênuo do termo, encontramos pessoas que lutam por um bastão que só tem valor para quem está no jogo, preso ao jogo (BOURDIEU, 2008b, p. 141).
Toda illusio compromete o agente social à doxa do campo:
Dito de outro modo, os jogos sociais são jogos que se fazem esquecer como jogos e a illusio é essa relação encantada com um jogo que é o produto de uma relação de cumplicidade ontológica entre as estruturas mentais e as estruturas objetivas do espaço social. Isso é o que quero dizer ao falar de desinteresse: vocês acham importantes, interessantes, os jogos que têm importância para vocês porque eles foram impostos e postos em suas mentes, em seus corpos, sob a forma daquiilo que chamamos de o sentido do jogo (BOURDIEU, 2008b, pp. 139-140).
Sendo assim, o desinteresse na participação de um jogo social específico, por exemplo, o desinteresse em conquistar prêmios acadêmicos mas a constante produção de artigos visando a originalidade demonstram que a declaração subjetiva de desinteresse demonstra a completa adequação ao campo e aos seus objetivos: justamente pela declaração de desinteresse nos prêmios, o que torna a produção acadêmica interessada de maneira abstrata no desenvolvimento da ciência, o interesse objetivo e tácito na consagração é pleno.
A noção de interesse opõe-se à de desinteresse, mas também à de indiferença. Podemos estar interessados em um jogo (no sentido de não lhe ser indiferentes), sem ter interesse nele. O indiferente “não vê o que está em jogo”, para ele dá na mesma; ele está na posição do asno de Buridan, ele não percebe a diferença. É alguém que, não tendo os princípios de visão e de divisão necessários para estabelecer as diferenças, acha tudo igual, dá tudo na mesma. O que os estóicos chamavam de ataraxia é indiferença ou serenidade da alma, desprendimento, não desinteresse (BOURDIEU, 2008b, p. 140).
A illusio contrapõe a ataraxia estoica, na medida em que compromete cada agente social nos campos em que participa. Illusio é justamente estar envolvido. Trata-se de conhecer, reconhecer e apontar para os alvos que existem no jogo e, na medida em que há uma concorrência, disputar a vitória no campo contra os concorrentes. Os alvos só existem por meio da illusio para as pessoas que estão presas ao jogo, que estão envolvidas em sua dinâmica.
Os agentes parece desprovidos de interesse na conquista dos alvos justamente por este desinteresse ser a calcificação da existência do campo, ser a expressão da imanência de sua relevância e sua consolidação enquanto um campo com capital simbólico específico que, para os que estão dentro, parece ser dado.
As pessoas, enquanto agentes sociais,
tendo a disposições para reconhecer os alvos que aí estão em jogo, estão prontas a morrer pelos alvos que, inversamente, parecem desprovidos de interesse do ponto de vista daquele que não está preso a este jogo, e que o deixa indiferente. Podemos assim recorrer à palavra investimento, em seu duplo sentido, psicanalítico e econômico (BOURDIEU, 2008b, p. 140).
O investimento declarado por Bourdieu é relativo à libido, ou seja, à própria disposição em viver e sublimar a energia biológica para objetos sociais, “Libido seria tambem inteiramente pertinente para expressar o que chamei de illusio ou investimento” (BOURDIEU, 2008b, p. 141). A illusio é um investimento socialmente direcionado, uma forma de concretiza a própria energia libidinal em objetos sociais e formas socialmente construídas. Trata-se, justamente, da pertinência do social na existência humana.
Considerações finais
A illusio é uma disposição inculcada que liga o agente social e seu habitus com o campo social a que ele pertence. A partir da illusio, o agente participa, se envolve no jogo, dispõe-se a morrer pela vitória no jogo ou simplesmente pela permanência consolidada do jogo social dentro de um campo. Cabe à sociologia identificar esta illusio:
Uma das tarefas da sociologia e a de determinar como o mundo social constitui a libido biológica, pulsão indiferenciada, em libido social, especíca. De fato, existem tantos tipos de libido quanta de campos: o trabalho de socialização da libido e, precisamente, o que transforma as pulsões em interesses específicos, interesses socialmente constituídos que apenas existem na relação com um espaço social no interior do qual certas coisas são importantes e outras são indiferentes, para os agentes socializados, constituídos de maneira a criar diferenças correspondentes as diferenças objetivas nesse espaço (BOURDIEU, 2008b, pp. 141-142).
Cabe à análise da illusio, o entendimento daquilo que naturaliza certas disposições específicas que tendem a fazer entido de maneira restrita aos participantes e, ao fazer sentido, gera distinção social.
Rerefências
BOURDIEU, Pierre. Esboço de uma teoria da prática IN ORTIZ, Renato (Org.). Pierre Bourdieu: Sociologia. São Paulo: Ática, 1983.
BOURDIEU, Pierre. Meditações pascalianas. Tradução Sergio Miceli. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. 2001.
BOURDIEU, Pierre. Questões de sociologia. 1ª edição, Fim de Século: Lisboa, 2003.
BOURDIEU, Pierre. Por uma sociologia dos sociólogos IN Questões de sociologia. Portugal, Lisboa: Fim de século, 2003b.
BOURDIEU, Pierre. Distinção: uma crítica social do julgamento. São Paulo: Editora Zouk, 2007.
BOURDIEU, Pierre. Espaço Social e espaço simbólico IN Razões práticas: sobre a teoria da ação. 9ª edição, Campinas: Papirus, 2008.
BOURDIEU, Pierre. É possível um ato desinteressado? IN Razões práticas: sobre a teoria da ação. 9ª edição, Campinas: Papirus, 2008b.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.