Em Mal-Estar na Pós-Modernidade, Bauman explica a formação do estranho dentro de uma dada sociedade. Para ele, os estranhos nascem na própria construção da ordem, eles são aqueles que não estão planejados, são os que não se encaixam e por consequência desta falta de adaptação, são excluídos sistematicamente do convívio nos espaços sociais onde quem se enquadra convive.
Eles são perfeitos para sub-empregos, já que não são gente como a gente. Eles não se encaixam na estrutural cognitiva, na moral ou no senso estético dos sujeitos estabelecidos, são completos estranhos que precisam viver na marginalidade, pois é somente lá que não irão incomodar a vida plena e perfeita dos cidadãos de fato. A construção da ordem remete a um senso de higiene: a ordem é a limpeza e a desordem, o caos, é a sujeira – é aqui que as ações higienistas dos centros das grandes cidades acabam fazendo sentido.
Veja também: Bauman e a sociedade líquida
Os marginalizados são a sujeira que precisa ser limpa, é por isso que negros pobres são abordados pela polícia com mais frequência que brancos de classe-média. A polícia visa a sujeira, visa tudo aquilo que desestabiliza a ordem e não há nada mais desestabilizador do que os sujeitos que não se encaixam no ideal de pureza/limpeza que a construção de uma dada ordem social impõe. Os estranhos não são simplesmente excluídos, existem maneiras de fazer esta exclusão: por meio da antropofagia e da antropoemia.
A) A estratégia da antropofagia se resume em absorver o outro, até que ele se torne para do nós. As diferenças são eliminadas e o tecido social permanece o mesmo, sendo assim, toda ameaça é suprimida em favor da permanência da ordem.
B) A estratégia da antropoemia consiste em excluir o outro, para que ele não possa desestabilizar a ordem. Toda e qualquer comunicação é cortada com o outro, de modo que ele não possa interferir de nenhuma maneira na vida cotidiana daqueles que estão sob a ordem social.
Ambas as estratégias podem ser encontradas no bullying, como já descrito por Paulo Roberto Ceccareli, em que a perseguição sofrida pela vítima pretende anular sua diferença, realizando a antropofagia, ao mesmo tempo em que a vítima pode ser unicamente excluída do convívio entre os demais, conforme a estratégia antropoêmica.
Os linchamentos
Os excluídos da pós-modernidade são aqueles que não se enquadram na sociedade de consumo. São os consumidores falhos: aqueles que não podem consumir, que – apesar de estarem expostos aos mesmo estímulos de uma sociedade consumista, de terem nascidos e de serem criados em uma sociedade em que o ideal de vida é a busca individual pela felicidade baseado no consumo – não conseguem participar da vida de consumo, que não conseguem (por sua própria culpa) atingir um patamar de rendimentos que permita o consumo desregrado.
Ainda segundo Bauman, “todo tipo de ordem social produz determinadas fantasias dos perigos que lhe ameaçam a identidade. Cada sociedade, porém, gera fantasias elaboradas segundo sua própria medida – segundo a medida do tipo de ordem social que se esforça em ser”. Os medos internos de cada sociedade são projetados nos inimigos que tentam, a qualquer custo, desestabilizá-la. Em uma sociedade de consumo, o medo interno maior é o oposto ao ideal de vida na sociedade, é o não-consumo.
Se a busca pela felicidade é algo individual que tem como expressão máxima o consumo, então não consumir é como não poder alcançar a felicidade. É estar completamente fora do mundo. É aí que os maiores medos, as angustias e a raiva dos estabelecidos (e também daqueles que desejam ser estabelecidos, embora não seja de fato) é jogada contra o inimigo, contra os estranhos.
A função dos estranhos não é somente de exercer trabalhos mal-pagos, mas também de mostrar cotidianamente o que pode acontecer com aqueles que não quiserem se enquadrar na ordem. Eles são o exemplo prático da (dita) única alternativa à ordem social estabelecida. São utilizados como parte integrante do mecanismo de coerção social.
É claro que os linchamentos foram impulsionados pelo desfavor da grande mídia, mas a própria ação irresponsável de Rachel Sheherazade também tem base na sociedade em que vivemos. Ela não é culpada dos linchamentos, ela é parte dos linchamentos, ela foi o gatilho. Entretanto, a insegurança generalizada, a falta de padrões morais e de instituições que promovam a associação dos indivíduos (ao invés de unicamente promoverem a competição) também são responsáveis pela angústia e pelo medo generalizados.
Os alvos óbvios são os estranhos, os excluídos, aqueles que não podem participar da sociedade de consumo e que se mostram como o destino dos que estão em processo de exclusão: talvez seja por isso que os linchamentos acontecem com a plena participação de populares de camadas pobres (normalmente da mesma camada que o próprio linchado). Os linchadores, pode-se tentar interpretar, são aqueles que estão no limite da normalidade. São consumidores no limite da capacidade material, portanto, estão na corda bamba, qualquer mudança social pode acarretar em sua exclusão.
Ver o bandido é como ver o próprio futuro em potencial. O bandido é o outro que veste a mesma roupa que eu poderei vestir amanhã. Qual a reação em relação a tudo isso? A morte do bandido, a morte da possibilidade de existir isto que eu posso me tornar. Se ele não existe, eu fico calmo, por que essa possibilidade me parece mais distante.
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Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.
Belo exposto! Concordo com o ponto de vista. Numa sociedade onde consumo é sinônimo de felicidade, não ter dinheiro é ser excluído, ser marginalizado!
Que lucidez maravilhosa, texto devidamente favoritado, parabéns pela página 😉
Muito obrigado e volte aqui mais vezes 🙂