Da série “Janta Filosófica“.
Na Janta Filosófica #50 falamos sobre a fala homofóbica da cantora gospel Bruna Karla e tentamos destrinchar a lógica presente no discurso preconceituoso.
Entendemos que, nesta visão específica reproduzida pela cantora, ao homossexual resta a danação eterna que é, inclusive, mais intensa a cada nova “ajuda” que o cristão oferece ao homossexual para que “saia dessa vida”. Vem entender comigo este paradoxo.
O vídeo:
O áudio:
Veja abaixo a transcrição de um trecho:
Tudo se passa como se fosse uma questão individual. Na medida em que um escolhe ser gay, a outra escolhe não se relacionar com o gay. Além disso, escolhe também a maneira como interpretar o fenômeno da sexualidade: “o que Deus tem pra sua vida é libertação, algo que ele sonhou pra você”, ou seja, há na homossexualidade um quê de prisão. Jesus não sonhou a prisão, sonhou a liberdade, a prisão, o pecado, não é o destino sonhado por Jesus Cristo para as pessoas homossexuais, o que Jesus Cristo sonhou foi a libertação, ou seja, a purificação dos pecados, que pode ser entendido aqui como a consumação da heterossexualidade.
O caminho da homossexualidade é um caminho de morte eterna, segundo a cantora. É um inferno. O paraíso está ligado à heterossexualidade, mas não enquanto sexualidade, enquanto caminho de fé e obediência ao livro sagrado.
Para fechar esta introdução, durante a entrevista, a cantora afirma que esta é uma forma de amar. Ou seja, amar mostrando o caminho da fé. Dando a oportunidade do pecador de se livrar da prisão do pecado e se libertar nos braços de Jesus.
A homossexualidade não é entendida como sexualidade, mas como extensão das escolhas éticas que permitem a vida boa, que é a vida da fé.
Se entendemos a lógica da condenação homossexual, o ponto que me interessa é a separação subjacente à crítica entre o sujeito gay e o ato gay. Ao ato gay, recusa; ao sujeito gay, possibilidade de libertação. Eu considero extremamente importante esta separação entre o ato danoso e o sujeito passível de salvação.
Se tem aqui, na minha opinião, duas coisas: a possibilidade do sujeito se converter e a possibilidade de driblar uma ética do respeito do outro o transformando em respeito do indivíduo, que se traduz em respeito de si próprio, e que, nesse malabarista, se faz enquanto fortalecimento da própria opinião. Ou seja, ao mesmo tempo, a crítica ao ato gay não afasta um possível sujeito a ser salvo e trabalha perfeitamente com uma ética cosmopolita de respeito ao próximo invertendo as posições entre o eu e o próximo e fazendo do eu o próximo, e o próximo, um sempre eu.
Se tomar a empatia como signo para a existência desse respeito, tudo se passa como se a empatia fosse invertida. O pressuposto de quem se declara ao mundo é receber empatia, não é considerar a empatia para se declarar ao mundo. E a condenação à homossexualidade permanece com ares grotescos.
No jogo da condenação, o homossexual aparece como aquele que escolhe o caminho ímpio e que escolhe se manter neste caminho. Afinal, convenhamos, quantos ex gays existem? O caminho será da danação eterna não só porque se escolheu iniciá-lo, mas porque se escolheu manter-se nele. O oferecimento de ajuda do cristão homossexual, desta forma, é muito pior do que o silêncio. O oferecimento de ajuda para algo que não precisa de ajuda e que portanto não precisa de transformação e que na prática não se transforma (pelo menos não a partir da ótica da escolha).
A separação entre o ato gay e o sujeito gay é a condição de possibilidade justamente da condenação eterna de cada homossexual. individualmente. Isso significa a instrumentalização da conduta porque ela é observada segundo seus fins, não como resultado. Ou seja, a conduta é entendida como aquilo que pode ser explicada dentro de uma lógica de consumo. Como se explicar a prática de uma conduta fosse tão simples quanto explicar a escolha do sabor de um chocolate. Como se fosse gosto.
É justamente a metáfora do gosto que me parece essencial para compreender o funcionamento desta crítica. Trata-se de uma crítica ao, entre muitas aspas, gosto pela conduta. Uma crítica da escolha deste caminho como se fosse no nível de uma escolha feita a partir de uma tábula rasa, como se a escolha fosse uma dádiva divina entregue para que possamos fazer o melhor possível com ela. Uma escolha pré-determinada pela moralidade cristão, portanto. Uma falsa escolha. A metáfora do gosto me parece relevante porque é justamente sob a avaliação do julgamento, do gosto, que a malha cristã de critérios se faz imperiosa e, objetivamente, delimitada a própria condição de escolha entre o certo e o errado moral. Entre o caminho de deus e a danação eterna.
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Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.