Índice
Introdução
A clareza é um elemento fundamental na comunicação, mas, para além da sua função na transmissão de informações, há um ponto constitutivo em que a clareza, sempre relativa ao gênero discursivo que a pede, concretiza uma cena de enunciação em ato.
Ou seja, a clareza é um atributo do discurso inserido em seu gênero. Ela não é um acessório que facilita o entendimento, mas é um elemento central que ativa um gênero específico e, ao mesmo tempo, uma cenografia específica.
A lei da modalidade é uma das leis constitutivas do discurso. Ela expressa a necessidade de se observar que a clareza e economia na escolha da linguagem são elementos centrais na prática discursiva. O objetivo deste artigo é expô-la segundo a elaboração de Dominique Maingueneau.
A clareza
Segundo Maingueneau, as leis da modalidade são aquelas que prescrevem, dentro de um gênero do discurso, o uso de maneiras consideradas claras de pronúncia, de escolha das palavras, de complexidade na elaboração de frases e etc. Elementos que determinam o quão ajustado à não ambiguidade e ao entendimento claro que a produção verbal pode adquirir.
Ao mesmo tempo, essas leis também prescrevem o quão direta uma produção verbal deve ser para se enquadrar no gênero:
Um determinado número de leis da modalidade prescreve clareza (na pronúncia, na escolha das palavras, na complexidade das frases etc.) e, principalmente, economia (procurar a formulação mais direta). Essas normas são evidentemente relativas aos gêneros do discurso, pois não pode existir uma norma universal de clareza.[1]
Ou seja, as normas são relativas ao gênero do discurso, pois pertencem às regras que regem o próprio gênero: um artigo sobre filosofia e uma conversa de bar vão ser regidos de maneiras diferentes, exigindo diferentes níveis de clareza ou economia. A lei da modalidade é uma característica imanente ao discurso, é parte de sua constituição, é uma necessidade no nível discursivo e, talvez, possa-se dizer que é um excesso constitutivo da prática discursiva.
Desta forma, é possível afirmar que as normas relativas aos gêneros do discurso são manifestações particulares da lei da modalidade, são manifestações concretas da necessidade (e do excesso) em haver certo tipo de clareza e economia na prática discursiva.
Segundo Durante e Santana[2], a lei da modalidade prescreve clareza, “sendo assim, deve-se evitar a obscuridade de expressão, de forma a contribuir de maneira clara e ordenada em um diálogo”. Mas a obscuridade é, evidentemente, relativa ao gênero do discurso. O espaço que se abre para a clareza e para a obscuridade ocorre num jogo específico que existe nas próprias regras do gênero discursivo em questão.
Por exemplo, a publicidade suspende as leis usuais da modalidade para estabelecer um tipo de comunicação propositalmente distante da norma, estabelecendo uma comunicação obscura, mas que atende às regras de produção publicitária e, de certa forma, é até esperada pelos sujeitos interlocutores. A publicidade afirma um produto com mensagens indiretas para manter a atenção do público e conquistá-lo como possível consumidor, afinal, afirmar “compre este produto” é menos eficiente que afirmar “este produto mudará sua vida”, como os produtos da Apple são publicizados, por exemplo. Durante e Santana salientam que
o receptor do texto publicitário deve estar atento a estratégias de manipulação por meio das quais se ocultam informações relevantes ou se utilizam de linguagem imprecisa, o que pode gerar prejuízos ao consumidor.[3]
Ou seja, o interlocutor legítimo da publicidade é o sujeito consumidor que está inserido num jogo de manipulação e resistência, em que a publicidade pode manipular enquanto o consumidor precisa desviar das tentativas de manipulação publicitária. A mensagem, apesar de não precisar de clareza, tem em si uma obscuridade que é previsível ao próprio gênero publicitário, sendo assim, estabelece uma norma de clareza não usual, mas ainda adequada ao gênero.
O hermetismo
A lei da modalidade, de acordo com o que foi até aqui exposto, é relacionada à forma como o enunciador faz uso da língua. Espera-se, então, que o uso adequado da língua torne a linguagem clara e facilite a comunicação. Melo entende que:
Obscuridade e ambigüidade devem ser evitadas. Discursos extremamente herméticos podem prejudicar a compreensão do interlocutor. A linguagem do enunciador deve se adaptar à situação. Disso depende o sucesso da comunicação. Enfim, a lei da modalidade demanda uma adequação da linguagem no intuito de facilitar o entendimento da mensagem.[4]
Entretanto, eu complementaria a citação acima frisando que a facilidade no entendimento da mensagem é um tipo de facilidade presente no gênero do discurso, ou seja, a facilidade é a prática ideal do gênero do discurso entre interlocutores legítimos. Isso significa que a facilidade é uma facilidade para iniciados.
Há formas de transgressão da lei da modalidade, como o hermetismo:
Uma vez que um texto apresenta características próprias de um texto precioso, enriquecido por um excesso de figuras, por exemplo, ele corre o risco de se tornar aquilo que Maingueneau considera um “discurso privado”, ou seja, um discurso que restringe seu acesso a um grupo menor de leitores. Uma obra de difícil penetração exige mais empenho para chegar à compreensão, e pode, por vezes, afastar um leitor menos disposto.[5]
O hermetismo, então, como elemento que não exclui o texto hermético do gênero discursivo a que ele pertence, transgride a lei da modalidade, gerando um código que não é e não pretende ser fácil ao entendimento do leitor. É possível estabelecer uma leitura sociológica do hermetismo e compreender que a dificuldade produzida por este tipo de produção verbal é, ao mesmo tempo, uma barreira que cria exclusividade e gera o capital simbólico necessário para que os interlocutores sejam legítimos na troca verbal, entretanto, cabe a observação do hermetismo enquanto transgressão relativa ao gênero, mas que é a clareza necessária ao grupo exclusivo, compreendendo que esta clareza precisa demonstrar o capital simbólico acumulado que permite a participação dos interlocutores na conversa.
Fora de uma interação entre interlocutores legítimos, o hermetismo acaba deslegitimando a participação do sujeito que o expressa, na medida em que este tipo de capital simbólico perde seu valor.
Considerações finais
Entende-se, portanto, que as leis da modalidade são constitutivas aos gêneros do discurso e estabelecem normas para o uso da língua de tal maneira que a produção verbal seja clara e econômica.
Sendo assim, que a comunicação seja adequada ao gênero e, portanto, aos interlocutores legítimo seja em relação ao uso das palavras ou às formulações das frases, mantendo sua clareza e economia.
Referências
[1] MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação. 3ª ed. São Paulo: Cortez, 2004, p. 37.
[2] DURANTE, Denise; SANTANA, Katiuscia Cristina. Reflexões acerca do Princípio de Cooperação discursiva: Uma análise de anúncios publicitários do período pandêmico. Revista de estudos do discurso, nº 10 ano 2021.
[3] DURANTE, Denise; SANTANA, Katiuscia Cristina. Reflexões acerca do Princípio de Cooperação discursiva: Uma análise de anúncios publicitários do período pandêmico…
[4] MELO, T. C. A. de. Leis do discurso e suas transgressões no texto literário. Anais da VI SEVFALE. Belo Horizonte: UFMG, 2006, p. 1699.
[5] MELO, T. C. A. de. Leis do discurso e suas transgressões no texto literário… p. 1700.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.