Memória discursiva – Michel Pêcheux

A memória discursiva é o suporte semântico de um discurso, seu funcionamento se dá através da repetição de enunciados, que forma uma regularidade discursiva. Esta, por sua vez, invoca significados através dos pré-construídos estabelecidos nas séries enunciativas. O exemplo utilizado do discurso religioso na televisão demonstra uma tentativa de ruptura no discurso religioso, retirando seu traço tradicional de resignação e sofrimento.

Da série “Michel Pêcheux: Conceitos Fundamentais“.

Papel da memória
Livro Papel da Memória, com textos de diversos autores, incluindo Pêcheux. Primeira edição em 1999.

A memória tem um papel delicado na Análise do Discurso Francesa: Pêcheux precisa analisar o acontecimento discursivo, as mudanças que ocorrem num discurso e as novas significações que um acontecimento histórico invoca através das novas séries de enunciados que se formam a partir da desestabilização do que é dito normalmente.

Essa desestabilização ocorre justamente na memória discursiva, que “deve ser entendida aqui não no sentido diretamente psicologista da ‘memória individual’, mas nos sentidos entrecruzados da memória mítica, da memória social inscrita em práticas, e da memória construída do historiador”[1].

Acontecimento e memória se situam em locais diferentes: enquanto o primeiro causa uma mudança, modifica uma série de enunciados, o segundo representa a estabilização do discurso, a possibilidade de repetição. “A memória discursiva seria aquilo que, face a um texto que surge como acontecimento a ler, vem restabelecer os ‘implícitos’ (quer dizer, mais tecnicamente, os pré-construídos, elementos citados e relatados, discursos-transversos, etc.) de que sua leitura necessita”, afirma Pêcheux[2].

Como entender analise do discurso para Pecheux

No entanto, seguindo os passos do sociólogo da linguagem Pierre Achard, Michel Pêcheux conduz a hipótese de que não há em nenhuma parte, em nenhum local pronto para ser descoberto, esses implícitos sob o formato de um discurso estável. Há, na verdade, um efeito de série produzido através da repetição que criaria o que Achard chamou de “regularização”: os implícitos residiram nesta regularização “sob a forma de remissões, de retomadas e de efeitos de paráfrase”[3].

A regularização discursiva tende a formar uma “lei da série do legível”[4], que é sensível ao peso dos acontecimentos discursivos. A memória tem como tendência absorver o acontecimento, ou seja, colocá-lo dentro da regularidade já existente, torná-lo previsível e adequado. Porém, o acontecimento, quando consegue atravessar a memória, desloca e desregula os implícitos associados à série de enunciados que tenta lhe adequar. Memória e acontecimento entram em conflito.

Assim, há dois jogos de força na memória[5]:

  • um jogo de força que visa manter uma regularização pré-existente com os implícitos que ela veicula, confortá-la como “boa forma”, estabilização parafrástica negociando a integração do acontecimento, até absorvê-lo e eventualmente dissolvê-lo;
  • mas também, ao contrário, o jogo de força de uma “desregulação” que vem perturbar a rede dos “implícitos”.

Manter a regularização é repetir. A repetição, por sua vez, funda comutações e variações, e “assegura – sobretudo ao nível da frase escrita – o espaço de estabilidade de uma vulgata parafrástica produzida por recorrência, quer dizer, por repetição literal dessa identidade material”[6], ou seja, por repetição das mesmas palavras em condições de produção idênticas.

No entanto, a metáfora acontece como divisão da identidade material (uma das variações possíveis): as mesmas palavras podem se dividir num enunciado diferente, sob condições diferentes de produção. Neste momento, a memória se esburaca, a formação da paráfrase acontece depois de um movimento de repetição que Pêcheux chama de vertical, de variação de sentido.

A memória discursiva em discursos religiosos na televisão

Para ilustrar o conceito, consideramos que a análise de Patriota e Turton[7] sobre os discursos proferidos em programas de televisão será útil. Ambas analisaram seis programas cristãos e perceberam que “os seus locutores não abrem espaço para a questão do sofrimento humano como parte do processo que o discurso religioso sempre se preocupou em trabalhar”.

A regularidade é abalada, portanto, com o discurso tradicional do sofrimento. “Há alguns elementos que não podem surgir na superfície discursiva, tão somente porque se eles aparecerem representarão um perigo real e um considerável desequilíbrio para o discurso em questão”[8].

Os programas analisados, em clima de intimidade, retiram a resignação e a necessidade de aguentar o sofrimento, ambos presentes no discurso religioso tradicional, “constituindo assim, uma prática totalitária, na medida em que opera na substituição de um determinado modo de pensar e leva os indivíduos à perda da memória do significado que anteriormente o discurso religioso possuía”[9].

Desta forma, a ideia de uma religião que guia para o paraíso no pós-vida é rompida pela ideia de uma religião que traz benefícios imediatos. A memória da religião enquanto discurso de penitência em vida e projeto de longo prazo é rompida por séries de enunciado que se rearranjam para tornar a religião, uma garantia imediata de prosperidade.

Isso se dá em enunciados como:

Pode ser que aos olhos humanos não tem jeito mesmo! Pode ser que aos olhos humanos, a hora já tenha passado… Pode ser que aos olhos humanos, já acabou de vez, encerrou, lacrou… Tem um Deus que chega na hora que só ele pode chegar. Não é para ressuscitar. É pra fazer nova coisa! Não tem nem o que ressuscitar, tá tudo morto, enterrado. Deus chega faz novo e cumpre as promessas da sua vida! Fortalece o teu coração! A vitória é tua em nome de Jesus![10]

Ou então,

Deus quer te dar prosperidade! Deus quer te dar honra nesta terra e Deus quer que você viva a palavra de Isaías 1:19: ‘Se me ouvirdes e credes comereis o melhor desta terra!’. O Senhor, Ele ordena a benção e você vai viver isso, em nome do Senhor Jesus![11]

Ambos impregnam o discurso religioso de potencial de curto prazo e fornecem esperança a cada fiel que o escuta, já que colocam sobre as mãos deles, individualmente, a responsabilidade de se ligar com Deus e o retorno que essa ligação pode dar.

Considerações finais

A memória discursiva é o suporte semântico de um discurso, seu funcionamento se dá através da repetição de enunciados, que forma uma regularidade discursiva. Esta, por sua vez, invoca significados através dos pré-construídos estabelecidos nas séries enunciativas.

Sua função, por sua vez, é a de estabilizar um discurso, no entanto, é uma estabilização frágil, que pode ser quebrada a cada novo acontecimento discursivo.

Referências

[1] PÊCHEUX, M. Papel da Memória. IN: Papel da Memória. Pierre Achard et al. Tradução: José Horta Nunes. 1ª edição. Campinas, SP: Pontes, 1999, p.49-50.

[2] PÊCHEUX, M. Papel da Memória… p.52.

[3] PÊCHEUX, M. Papel da Memória… p.52.

[4] PÊCHEUX, M. Papel da Memória… p.52.

[5] PÊCHEUX, M. Papel da Memória… p.53.

[6] PÊCHEUX, M. Papel da Memória… p.53.

[7] PEREIRA PATRIOTA, Karla Regina Macena; TURTON, Alessandra Navaes. Memória discursiva: sentidos e significações nos discursos religiosos da TV. Ciênc. cogn., Rio de Janeiro , v. 1, p. 13-21, mar. 2004.

[8] PEREIRA PATRIOTA, Karla Regina Macena; TURTON, Alessandra Navaes. Memória discursiva: sentidos e significações nos discursos religiosos da TV… p. 16.

[9] PEREIRA PATRIOTA, Karla Regina Macena; TURTON, Alessandra Navaes. Memória discursiva: sentidos e significações nos discursos religiosos da TV… p. 17.

[10] PEREIRA PATRIOTA, Karla Regina Macena; TURTON, Alessandra Navaes. Memória discursiva: sentidos e significações nos discursos religiosos da TV… p. 18.

[11] PEREIRA PATRIOTA, Karla Regina Macena; TURTON, Alessandra Navaes. Memória discursiva: sentidos e significações nos discursos religiosos da TV… p. 18.

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