Nanorracismo e futebol – Achille Mbembe

Apesar de utilizar abordagens "simplistas", o jornalismo é a ferramenta prática imediata mais eficiente à denúncia moral do racismo no futebol europeu. Ele consegue, por sua rapidez e distribuição, tornar a pauta relevante na discussão pública e gera possibilidade de evidenciar a presença do racismo e cobrar, a partir de dados concretos recolhidos pelos jornalistas, ações institucionais.

Da série “Necropolítica”.

Índice

Introdução

Para iniciar a reflexão sobre o nanorracismo no futebol, começo com o entendimento de Silvio Almeida acerca do racismo estrutural. Em seu livro Racismo Estrutural, o autor começa sua discussão definindo e delimitando três concepções de racismo: individualista, institucional e estrutural. O autor critica a concepção individualista por ser limitada como ferramenta de diagnóstico e por entregar soluções moralistas ou legalistas relacionadas ao problema do racismo. A concepção institucional, para Almeida, significa um avanço teórico, uma possibilidade de se observar o racismo fora do crivo da normalidade ou anormalidade individual, fora de uma perspectiva normativa médica ou moralista. A partir da visão institucional, já não é possível insistir numa cerca anormalidade individual do racismo, quase como uma busca pela patologia racista em âmbito individual.

Vimos que as instituições reproduzem as condições para o estabelecimento e a
manutenção da ordem social. Desse modo, se é possível falar de um racismo institucional, significa que a imposição de regras e padrões racistas por parte da instituição é de alguma maneira vinculada à ordem social que ela visa resguardar.[1]

Mas o foco na instituição tem um ponto cego: uma instituição não existe isolada do mundo e apartada da história. Uma instituição existe no miolo de uma história e de uma estrutura social.


Receba tudo em seu e-mail!

Assine o Colunas Tortas e receba nossas atualizações e nossa newsletter semanal!


Assim como a instituição tem sua atuação condicionada a uma estrutura social previamente existente – com todos os conflitos que lhe são inerentes –, o racismo que essa instituição venha a expressar é também parte dessa mesma estrutura.[2]

As perguntas que parece ser escondidas tanto pela concepção individualista como pela concepção institucional são: existe realmente uma sociedade que funciona, na realidade, enquanto condição inicial do desenrolar do presente? Ou seja, existe um mundo real que delimita a realidade para além dos pontos de ação humana (para além da ação individual ou das ações institucionais)? Silvio de Almeida esclarece estes pontos:

As instituições são apenas a materialização de uma estrutura social ou de um modo de socialização que tem o racismo como um de seus componentes orgânicos. Dito de modo mais direto: as instituições são racistas porque a sociedade é racista.[3]

Desta maneira, a sociedade é racista, ou seja, a estrutura social é organizada de tal forma que o racismo opera em suas hierarquias. As instituições são parte da sociedade e sua condição de possibilidade é uma estrutura social racista.

Racismo estrutural

Com isso, entende-se que uma instituição que não atua ativamente contra o racismo, ou seja, uma instituição isenta de tal atuação tende a ser, independentemente das intenções dos indivíduos que circulam e executam aquilo que a instituição opera, uma instituição racista.

Em uma sociedade em que o racismo está presente na vida cotidiana, as instituições que não tratarem de maneira ativa e como um problema a desigualdade racial irão facilmente reproduzir as práticas racistas já tidas como “normais” em toda a sociedade.[4]

Ou seja, o racismo presente na prática ilegal de impedir a entrada de pessoas negras em uma instituição privada (que, como exemplo abstrato podemos pensar em um bar) a partir de argumentos legalizadores da prática (“somente com nome na lista”) não está situado na consciência do segurança que impede a entrada de negros ou na consciência do dono do bar que toma esta decisão. Eles até podem ser racistas, podem ter opiniões racistas, enfim, mas o racismo está presente principalmente na própria possibilidade de fazer emergir de maneira velada a hierarquia social através de estratégias adaptadas à nossa cultura (como no exemplo: interditar a entrada sem explicitar que a interdição acontece por motivos raciais). A parca aplicação da lei em casos que passam por indiferentes instituições demonstra que a própria instituição é criada num berço racista: a título de exemplo, pesquisa coordenada pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) confirmou com dados a presença estrutural do racismo nas investigações policiais, reforçando a tese de que o problema está situado na estrutura da sociedade, não somente nas ações individuais.

um levantamento feito pelo Colégio Nacional das Defensoras e Defensores Públicos-Gerais (Condege) mostra que, entre as pessoas acusadas indevidamente com base em reconhecimento fotográfico realizado em delegacias – as quais acabaram sendo absolvidas na sentença –, 83% eram negras.[5]

Assim, o dever da instituição seria implementar medidas para evitar que as ações individuais racistas apareçam no fluxo normal de trabalho, fenômeno corriqueiro:

É o que geralmente acontece nos governos, empresas e escolas em que não há espaços ou mecanismos institucionais para tratar de conflitos raciais e sexuais. Nesse caso, as relações do cotidiano no interior das instituições vão reproduzir as práticas sociais corriqueiras, dentre as quais o racismo, na forma de violência explícita ou de microagressões – piadas, silenciamento, isolamento etc. Enfim, sem nada fazer, toda instituição irá se tornar uma correia de transmissão de privilégios e violências racistas e sexistas.[6]

O presente artigo pretende discutir justamente as “práticas sociais corriqueiras” de racismo, enquanto expressão do fenômeno mais profundo do racismo estrutural, desta maneira, entendendo “piadas, silenciamento, isolamento” enquanto práticas sociais.

Nanorracismo

Segundo Achille Mbembe, o nanorracismo é justamente esta forma cotidiana de racismo expressada

nos gestos aparentemente inócuos do dia a dia, por causa de uma insignificância, uma afirmação aparentemente inconsciente, uma brincadeira, uma alusão ou uma insinuação, lapso, uma piada, algo implícito e, que se diga com todas as letras, uma malícia voluntária, uma intenção maldosa, um menosprezo ou um estorvo deliberados, um obscuro desejo de estigmatizar e, acima de tudo, de agredir, de ferir e humilhar, de profanar aquele que não consideramos como sendo dos nossos.[7]

Este nível, facilmente confundido com o nível individual do racismo, nasce como possibilidade concreta do racismo presente no Ocidente. E, na prática, a função do nanorracismo é mitigar as possibilidades de uma vida plena para seus alvos:

Sua função é transformar cada um de nós em celerados com luvas de pelica. É colocar em condições intoleráveis o maior número possível daqueles e daquelas que consideramos indesejáveis, encurralá-los cotidianamente, infligir-lhes reiteradamente um número incalculável de golpes e feridas, privá-los de qualquer direito adquirido, enfumaçar a colmeia e aviltá-los a tal ponto que não lhes reste escolha além da autodeportação.[8]

A luva de pelica impede a reação, a transforma em anormalidade: a polidez do nanorracismo sufoca. Os efeitos do nanorracismo são presente no corpo, no elemento tangível, mas também no elemento intangível, como a autoestima e a dignidade. Numa era de autenticidade e individualidade, a mitigação da autoestima e da dignidade impede a própria vida de ser realizada, transforma a tarefa de se localizar no mundo numa tarefa de se localizar dentro da hierarquia racista presente na sociedade.

Futebol

Ribeiro e Pimenta entendem que no racismo presente nos esportes na Europa é necessário levar em consideração o passado colonial do continente e a alta no fluxo migratório nas últimas décadas.

O desporto, em particular o futebol, é um dos campos de “transferências culturais” por excelência. A inclusão de “não-semelhantes” nas equipas europeias monocromáticas é uma prática que nasce no tempo colonial e que continua no período das pós independências. O recrutamento de talentos futebolísticos em África não desacelerou com a queda do domínio das colónias, verificando-se, desde a década de 1990, um aumento da migração de jogadores africanos para a Europa, sobretudo com destino a França, Portugal e Bélgica.[9]

Focando na realidade portuguesa, os autores compreendem que a integração de jogadores advindos das ex-colônias deu espaço para a expressão do racismo através de práticas cotidianas e inseridas num contexto institucional que as faz parecer subproduto natural da cultura:

O impacto da admissão e integração de jogadores oriundos das ex-colónias nas equipas nacionais dos países pós-imperiais ecoa nos mais diversos discursos. Para além das atitudes violentas das subculturas constituídas pelos adeptos hooligans ou ultras, nos anos 80-90, as reverberações insultuosas vindas dos adeptos ou público em geral ecoam nos estádios, intensificando-se os insultos dirigidos aos jogadores negros.[10]

Posso citar casos recentes de racismo no futebol europeu:

  1. Vinicius Jr, jogador brasileiro, foi alvo em 2022 de insultos racistas por conta de suas comemorações. Foi chamado de “macaco” pela torcida do Atlético de Madrid;
  2. Daniel Alves, jogador também brasileiro, foi alvo de racismo em 2014 quando lhe jogaram uma banana enquanto se preparava para cobrar um escanteio. No momento, o jogador pegou a banana do chão e a comeu.
  3. Roberto Carlos, em 2011, lateral-esquerdo brasileiro, também foi alvo de uma banana jogada das arquibancadas quando jogava na Rússia. Ele abandonou o jogo.
  4. Muntari, jogador de Gana, foi alvo de racismo em 2017, quando a arquibancada do Cagliari, time italiano, o ofendeu em partida que defendia a camisa do Pescara.
  5. Ainda no campeonato italiano, Matuidi foi alvo de ofensas racistas em dois jogos, contra o Cagliari e o Hellas Verona. Aconteceu em 2018 e o jogador defendia a Juventus neste ano.

O Brasil, ex-colônia, também é recheado de casos de racismo. Em 2020, 31 casos foram registrados, mas em 2021 o número cresceu 106%, chegando a 64 casos. Em 2022, até agosto do presente ano, o número de casos já chegou a 64 com tendência para novo aumento até o fim do período[11]. Entretanto, suas raízes precisam ser vistas a partir das próprias especificidades do país e de sua longa história de escravização.

Ribeiro e Pimenta compreendem o papel de denúncia do jornalismo generalista e esportivo, também entendem que a presença da denúncia exibe a presença da pauta racial no olhar dos jornalistas:

Verifica-se que os meios de comunicação se afiguram mais eficazes na ação denunciadora dos racismos no desporto, em particular no futebol. Se é verdade que ainda são necessárias ações contínuas de combate contra o racismo no seio da sociedade civil, também é verdade que os meios de comunicação generalistas e desportivos têm um papel imediato na denúncia moral do racismo no desporto, em particular no futebol.[11]

As conclusões positivas estão justamente no âmbito individual: o jornalismo é eficiente em realizar uma denúncia moral e a existência em massa deste tipo de cobertura “revela a consciencialização dos jornalistas para o racismo enquanto crime moral e público nas sociedades atuais”[12]. Eu adicionaria um ponto estrutural: revela também a existência da pauta racial como elemento obrigatório no campo jornalístico. Não é mais possível ignorar o racismo, apesar da forma de usa abordagem ser.

Considerações finais

Apesar de utilizar abordagens “simplistas”, o jornalismo é a ferramenta prática imediata mais eficiente à denúncia moral do racismo no futebol europeu. Ele consegue, por sua rapidez e distribuição, tornar a pauta relevante na discussão pública e gera possibilidade de evidenciar a presença do racismo e cobrar, a partir de dados concretos recolhidos pelos jornalistas, ações institucionais.

Para além das vítimas do racismo, o a prática jornalística europeia “pouco se acrescenta à real percepção do sucedido com a participação de outros dirigentes, responsáveis ou até mesmo testemunhas (jogadores) que pudessem alargar a discussão”. O racismo, assim, é um alvo externo, que se deve falar, mas não é entendido como estrutural, sendo assim, alvo preferivelmente interno. A discussão moral possibilita a denúncia do outro, permite a individualização do racismo, mas não abre caminho para seu entendimento estrutural. O importante papel de descrever casos concretos acaba sendo limitado à visão individualista e não sistêmica de sociedade executada pelos veículos de comunicação. Com este efeito, o nanorracismo é denunciado como alvo pertencente a alguém, mas não é denunciado em seu nível profundo.

O nanorracismo é o racismo tornado cultura e respiração, em sua banalidade e capacidade de se infiltrar nos poros e veias da sociedade, neste momento de embrutecimento generalizado, de descerebração mecânica e de enfeitiçamento em massa.[13]

Ou seja, justamente quando não é denunciado em sua raiz, o nanorracismo torna o racismo parte da cultura e da respiração, parte do dia a dia da vida como ela parece ser. A possibilidade de esgotar a análise do racismo a partir de uma concepção individualista é a condenação da sociedade ao racismo. É, no limite, sua proteção.

Referências

[1] ALMEIDA, S. . Racismo estrutural. [Structural Racism]. São Paulo: Pólen, 2019, p.31.

[2] ALMEIDA, S. . Racismo estrutural… p. 31.

[3] ALMEIDA, S. . Racismo estrutural… p. 31.

[4] ALMEIDA, S. . Racismo estrutural… p. 32.

[5] O negro como alvo: a questão do racismo estrutural nas investigações criminais. Site do STJ. Acesso em 7 de dezembro de 2022. Disponível aqui.

[6] ALMEIDA, S. . Racismo estrutural… p. 32.

[7] MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade. São Paulo, SP: N-1 edições, 2020, p. 98-101, 105. Acesso em 7 de dezembro de 2022. Disponível em <<https://colunastortas.com.br/nanorracismo-por-achille-mbembe-drops/>>.

[8] MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade… p. 98-101, 105.

[9] RIBEIRO, Fabio; PIMENTA, Susana. A mediatização do “racismo”?. Revista Motrocidade. Vol. 18 No. SI (2022): Sport, Culture and Communication. Acesso em 7 de dezembro de 2022. Disponível em <<https://revistas.rcaap.pt/motricidade/article/view/27799>>.

[10] RIBEIRO, Fabio; PIMENTA, Susana. A mediatização do “racismo”?…

[11] Casos de racismo no futebol brasileiro em 2022 igualam número de todo o ano passado. Martín Fernandez, Raphael Zarko e Ronald Lincoln Jr., GE – Globo. Acesso em 7 de dezembro de 2022. Disponível em <<https://ge.globo.com/rj/futebol/noticia/2022/08/24/casos-de-racismo-no-futebol-brasileiro-em-2022-igualam-numero-de-todo-o-ano-passado.ghtml>>.

[11] RIBEIRO, Fabio; PIMENTA, Susana. A mediatização do “racismo”?…

[12] RIBEIRO, Fabio; PIMENTA, Susana. A mediatização do “racismo”?…

[13] MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade… p. 98-101, 105.

Deixe sua provocação! Comente aqui!