Da série “As heterotopias“.
Um outro espaço é recorrentemente regido por um outro tempo. O quarto princípio da heterotopologia é relacionado ao tempo, “As heterotopias são frequentemente ligadas a recortes singulares do tempo”[1]. Nas palavras de Karoline Pereira, “são espaços que têm a característica de possuir uma cronologia diferente da normal”[2].
Michel Foucault apresenta os cemitérios, os museus e as bibliotecas como exemplos de uma categoria específica de heterotopias: as “do tempo”. Esta categoria se refere às heterotopias que acumulam o tempo num espaço delimitado e são localizadas em sociedades ocidentais modernas.
O entendimento do museu ou da biblioteca como um acúmulo público de conhecimento ou vestígios da vida humana em sua criatividade plena é recente:
Nos séculos XVII e XVIII, os museus e as bibliotecas eram instituições singulares; eram a expressão do gosto de cada um. Em contrapartida, a ideia de tudo acumular, a ideia de, em certo sentido, parar o tempo, ou antes, deixá-lo depositar-se ao infinito em certo espaço privilegiado, a ideia de constituir o arquivo geral de uma cultura, a vontade de encerrar todos os tempos em um lugar, todas as épocas, todas as formas e todos os gostos, a ideia de constituir um espaço de todos os tempos, como se este próprio espaço pudesse estar definitivamente fora do tempo, essa é uma ideia totalmente moderna: o museu e a biblioteca são heterotopias próprias à nossa cultura.[3]
A segunda categoria heterotópica utilizada por Foucault é relacionado ao inverso da apresentada anteriormente: não se trata mais de eternizar o mundo, de compilar o tempo no espaço e acumulá-lo, trata-se de um tipo de heterotopia crônica, situada sob o modelo da festa.
O teatro, seguramente, mas também as feiras, estes maravilhosos sítios vazios à margem das cidades, por vezes mesmo no centro delas, e que se povoam uma ou duas vezes por ano com barracas, exposições, objetos heteróclitos, lutadores, mulheres-serpentes e profetisas da boa fortuna. Mais recentemente, na história da nossa civilização, há colônias de férias; penso, principalmente, nas maravilhosas colônias polinésias que oferecem, às margens do Mediterrâneo, três curtas semanas de nudez primitiva e eterna aos habitantes de nossas cidades.[4]
Um tempo que acumula toda experiência possível e se eterniza no corpo do sujeito. Essas heterotopias compilam o tempo e aplicam uma grande injeção de experiência aos sujeitos. O tempo passa mais rápido, mas o sujeito se transforma para sempre após esta imersão episódica.
Karoline Pereira utiliza o carnaval como exemplo de heterotopia crônica (ou “de passagem”):
No Carnaval o sujeito pode ocupar várias posições diferentes, podendo ser o que quiser, seja um pirata, um pierrot, uma colombina, uma cigana, a presidente, ou até mesmo possuir a bunda de Paolla Oliveira. Como também há uma dispersão espacial em um mesmo Carnaval. Quem já foi ao Carnaval de Olinda, por exemplo, pode perceber que cada local, cada praça e cada rua – como os Quatro Cantos, a Praça do Jacaré, Rua 13 de Maio – possuem um público diferente.[5]
No Carnaval, o tempo se compila entre dois momentos delimitados, definidos pelas instituições religiosas e governamentais, mas marca o corpo dos sujeitos através de uma liberalidade de difícil acesso no restante do ano em ruas públicas.
Desta maneira, entende-se que, em relação ao tempo, as heterotopias podem condensá-lo e alargá-lo, mas também pode condensá-lo e torná-lo curto, rápido. A experiência do acúmulo e da pesquisa é contraposta pela experiência do sujeito num fluxo inesperado ou de difícil acesso de experiências novas.
A distorção do tempo não é inserida em termos psicológicos: para Michel Foucault, se trata antes de tudo de um ciclo temporal relativo à posição do sujeito no local e às possibilidades que este local entrega: na biblioteca, o tempo está acumulado e o sujeito-leitor é um pesquisador com um leque variado de itens para pesquisa; já na festa, no carnaval, o sujeito é participante e está no centro da realização do evento, sua atividade é relevante e constituinte desta heterotopia, já que o carnaval só pode existir através da existência de foliões, enquanto uma biblioteca sem leitores ainda é uma biblioteca à disposição de indiferentes sujeitos-leitores ocasionais.
Referências
[1] FOUCAULT, Michel. O corpo utópico / As heterotopias. Tradução de Salma Tannus Muchail. 1ª edição, São Paulo: N-1 edições, 2013, p. 25.
[2] PEREIRA, Karoline M. F. Corpo, interdição e heterotopia: a nudez do corpo da mulher no discurso da propaganda turística oficial brasileira. Dissertação de mestrado, Programa de pós-graduação em linguística do Centro de ciências humanas, Letras e Artes da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), 2015, p. 56.
[3] FOUCAULT, Michel. O corpo utópico / As heterotopias… p. 25.
[4] FOUCAULT, Michel. O corpo utópico / As heterotopias… p. 25-26.
[5] PEREIRA, Karoline M. F. Corpo, interdição e heterotopia: a nudez do corpo da mulher no discurso da propaganda turística oficial brasileira… p. 56.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.